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On-line ISBN 978-85-60944-06-4
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An. 5 Col. LEPSI IP/FE-USP 2004
O infantil: das psicologias à psicanálise
Simone Kubric
Mestranda em Psicologia da Educação na Faculdade de Educação da USP
Neste trabalho pretendemos apresentar sinteticamente dois entendimentos distintos do termo infantil: um entendimento psicológico e um entendimento psicanalítico. Nosso objetivo é mostrar que estas distintas compreensões podem ter diferentes efeitos na maneira pela qual os adultos lidam (ou não) com as crianças.
O infantil das psicologias
Para explicitarmos o que consideramos como sendo o entendimento psicológico do termo infantil, precisamos, em primeiro lugar, esclarecer a que nos referimos quando falamos de psicologias. Tratamos por psicologias todas as teorias cujo objeto de estudo é a consciência e/ou o comportamento do homem, ou melhor, do indivíduo.
São muitas e diversas as correntes psicológicas, bem como seus autores e obras. Porém, neste trabalho não temos a intenção de nos deter particularmente em nenhum deles. Isso porque o que nos interessa é um certo discurso de tom psicológico que atualmente está presente em grande parte das orientações feitas a pais e professores e que versa sobre como se relacionar e como agir com as crianças para que elas se desenvolvam adequadamente. Esse discurso consiste em um amálgama de diferentes fontes teóricas raramente mencionadas, que tem sido proferido nos consultórios e nas escolas pelos mais diversos especialistas (desde psicólogos, psicopedagogos, médicos, fonoaudiólogos, fisioterapeutas e assim por diante), bem como veiculado pela mídia e até pelos documentos oficiais da educação em nosso país.
O discurso psicológico a que me refiro apresenta ao público o infantil na categoria de adjetivo, isto é, como aquilo que caracteriza a criança e seus atributos. E quais seriam os atributos das crianças? Capacidades humanas em potência, ou seja, capacidades que devem se desenvolver a fim de que as crianças tornem-se adultos. Em outras palavras, o discurso psicológico considera que as crianças são naturalmente dotadas de capacidades, aptidões ou elementos que ao longo do tempo amadurecem, evoluem, se aperfeiçoam.
Dois exemplos podem ser apresentados para ilustrar a circulação deste entendimento psicológico do termo infantil. O primeiro, consiste de um fragmento de um fascículo especial da revista Seu Filho e Você que, apesar de não ter sido retirado da mais recente edição, é uma amostra importante do conteúdo voltado para pais e mães que se pode encontrar atualmente nas bancas de jornal: "Em cada um dos seis fascículos você aprenderá como estimular positivamente os elementos chaves do desenvolvimento infantil: motricidade, coordenação olhos-mão, linguagem, aprendizado e vida social e afetiva de seu bebê. Ao descobrir as aptidões de seu filho em cada fase de desenvolvimento dos primeiros 15 meses e incorporar as sugestões de atividades que apresentamos ao dia-a-dia de seu bebê, você se tornará uma supermãe e um superpai de uma criança criada para vencer" (2003, p. 6).
Um segundo exemplo também bastante significativo é a forma pela qual os Referenciais Curriculares Nacionais para a Educação Infantil definem o que significa educar: "educar significa propiciar situações de cuidados, brincadeiras e aprendizagens orientadas de forma integrada e que possam contribuir para o desenvolvimento das capacidades infantis" (1998, p. 23). E, mais ainda, o documento diz que "neste processo, a educação poderá auxiliar o desenvolvimento das capacidades de apropriação e conhecimento das potencialidades corporais, afetivas, emocionais, estéticas e éticas, na perspectiva de contribuir para a formação de crianças felizes e saudáveis" (1998, p. 23).
O que os dois exemplos mencionados acima tem em comum é o fato de usarem o termo infantil – em um tom que remete o leitor a teorias da psicologia genética – para qualificar as capacidades maturacionais próprias das crianças. Além disso, colocam o adulto no lugar de colaborador do desenvolvimento infantil, responsável por garantir que este processo aconteça sem percalços.
O emprego do termo infantil como um qualificativo circunscrito em uma lógica desenvolvimentista revela que o discurso psicológico a que nos referimos entende o infantil como um "a menos" em uma escala evolutiva. Isto implica que tudo aquilo que é caracterizado como infantil é considerado passível de superação. Desta forma espera-se que a criança deixe de ser infantil para poder se tornar um adulto plenamente desenvolvido, ou, se quisermos, adultos "felizes e saudáveis", "vencedores". Esse deve ser o ponto de chegada do seu crescimento supostamente normal e natural. Esse é o destino almejado pelo discurso psicológico para os pequenos. E, como vimos nos dois exemplos citados anteriormente, resta aos adultos auxiliarem as crianças neste processo, ou seja, contribuir para que permaneçam na adequada rota do desenvolvimento.
O infantil da psicanálise
Assim como iniciamos a primeira parte deste trabalho esclarecendo a que nos referíamos ao falar de psicologias, iremos também pontuar nossa referência psicanalítica. Diferentemente das psicologias, a psicanálise não tem como objeto de estudo o indivíduo, sua consciência e o seu comportamento. A teoria psicanalítica, inventada por Sigmund Freud no início do século XX, versa sobre o inconsciente, sobre a hipótese de um aparelho psíquico dividido em diferentes instâncias. Para Freud, inconsciente não é o simples contrário da consciência, mas um sistema de representações (inscrições) dinâmicas, latentes e ativas que determinam a própria vida psíquica. Ou seja, as noções centrais da teorias psicanalítica são radicalmente contrárias à idéia psicológica de um indivíduo humano senhor de sua consciência e de seu comportamento.
Além disso, nossa referência psicanalítica considera o importante "retorno à Freud" realizado por Jaques Lacan. É a partir de uma leitura lacaniana da psicanálise que trabalhamos com o operador "sujeito do desejo" e com a idéia de que o inconsciente está estruturado como uma linguagem.
Nesta perspectiva, o infantil é entendido de um modo bastante diverso das psicologias. No início dos escritos psicanalíticos, Freud também relacionou o termo infantil aos atributos das crianças e àquilo que seria próprio da infância, mas no posterior desdobramento da teoria, distanciou-se de idéias possivelmente desenvolvimentistas e passou a entender o infantil como sendo as inscrições que marcam o psiquismo desde muito cedo (e não mais como um qualificativo relativo aos pequenos). Tais inscrições, ativas no "núcleo" do inconsciente, insistiriam ao longo de toda a vida psíquica, sem serem jamais suplantadas por meio de desenvolvimentos quaisquer.
A seguinte explanação de Joel Birman pode nos ajudar a precisar melhor o sentido que o infantil adquire na psicanálise: "Assim, se ao longo dos escritos inaugurais de Freud, publicados na última década do século XIX, a infância já era uma referência constante para dar conta das neuroses e das demais perturbações psíquicas, foi sem dúvida com a publicação de A interpretação dos sonhos [1900] e dos Três ensaios sobre a teoria sexual [1905] que a tese em pauta ganhou mais fôlego e consistência. Contudo é preciso considerar que neste novo patamar teórico do discurso freudiano, que se identifica como a constituição da psicanálise no sentido estrito, se enunciou um paradoxo. Este revela a oposição entre os registros da infância e do infantil, assim como, o deslocamento de Freud de uma indagação do primeiro para o segundo. [...] Nesta perspectiva, a infância foi remanejada na sua significação, pois se deslocou do registro genético e cronológico para o funcionamento psíquico. Foi aqui que se constituiu propriamente o conceito de infantil, marcando sua diferença com a noção evolutiva de infância. Existiria assim um infantil no psiquismo que seria irredutível a qualquer dimensão cronológica e evolutiva. Vale dizer, foi pressuposta a existência de um infantil que não se dissolveria na infância cronológica do sujeito" (1997).
De outra forma, mas apontando para a mesma problemática, Bernardo Tanis faz o seguinte questionamento: "Como compreender o infantil em seu estatuto psicanalítico? Trata-se de uma interiorização ponto por ponto da infância? Ou serão fases de desenvolvimento preestabelecidas que obedecem a uma ordem cronológica que, se não satisfeita, desencadeia as patologias como falhas no desenvolvimento? Ou, como dissemos anteriormente, seguindo um modelo freudiano, o infantil só poderá ser compreendido se estudarmos os modos singulares de o sujeito se constituir em relação a uma memória e uma temporalidade que obedecem a uma causalidade não-linear de composição?" (1995).
Concordando com a segunda alternativa apontada por Tanis, podemos dizer que a psicanálise não entende o infantil como um germe do adulto, ou seja, como aquilo que se desenvolveria gradativa e linearmente na direção de uma suposta forma ideal de homem, conforme a concepção veiculada pelo discurso psicológico já mencionado. Para a psicanálise, o infantil é um conceito da classe dos substantivos, e não dos adjetivos. O infantil psicanalítico tem presença constante na fantasmática e nos sintomas do sujeito do desejo, seja ele pequeno ou grande, isto é, mais novo ou mais velho. Isso não significa dizer que a passagem do tempo seja considerada sem efeitos, mas julgamos que estes efeitos estariam ligados, sobretudo, à força das narrativas que se constroem ao longo do devir temporal. Ou seja, efeitos ligados à história elaborada sobre si pelo sujeito do inconsciente. História, novela, tecida pelo sujeito na tentativa de simbolizar, de apreender as inscrições psíquicas infantis que o marcam e às quais ele não tem acesso.
Implicações
Como vimos, uma vez entendido como adjetivo, o infantil psicológico é tudo aquilo que deve ser superado em direção a um estágio mais desenvolvido. O ponto de chegada, ou seja, o estágio desenvolvido, está definido a priori por muitos manuais de psicologia genética que se encontram à disposição dos educadores e terapeutas, ou por versões menos acadêmicas e precisas, encontradas em revistas para pais ou em diretrizes para a prática docente. Neste veículos, o discurso de tom psicológico prevê o destino desenvolvido dos pequenos, amarrando-os a determinadas rotas de crescimento.
Por outro lado, entendido como substantivo, o infantil psicanalítico é o núcleo do inconsciente. Não há possibilidades de superação deste infantil, não há possibilidades de anulação ou controle dos seus efeitos. Mas são justamente as inscrições que insistem no psiquismo do sujeito que permitem que ele engendre uma narrativa particular e singular para sua vida.
Para explicitar melhor a tamanha distinção entre estes dois entendimentos do infantil e suas implicações, utilizaremos aqui uma explicação feita por Marilena Chaui que problematiza as noções de progresso e desenvolvimento de forma a mostrar que o que está por traz deste tipo de concepção é justamente a tentativa de impedir o acontecimento da história, através da imposição escamoteada de um destino.
Nas palavras de Chaui: "Talvez uma das formas mais extraordinárias pela qual a ideologia neutraliza o perigo da história esteja em uma imagem que costumamos considerar como sendo a própria história ou a essência da história: a noção de progresso. Contrariamente ao que poderíamos pensar, essa noção tem em sua base o pressuposto de um desenvolvimento temporal de algo que já existira desde o início como germe ou larva, de tal modo que a história não é transformação e criação, mas explicitação de algo idêntico que vai apenas crescendo com o decorrer do tempo. Outra noção que visa escamotear a história sob a aparência de assumi-la é a noção de desenvolvimento. Nesta, pressupõe-se um ponto fixo, idêntico e perfeito, que é o ponto terminal de alguma realidade e ao qual ela deverá chegar normativamente. O progresso, colocando a larva, e o desenvolvimento, colocando a "boa forma" final, retiram da história aquilo que a constitui como história, isto é, o inédito e a criação necessária de seu próprio tempo e telos. Colocando algo antes do processo (o germe) ou depois do processo (o desenvolvido), a ideologia tem sérios compromissos com os autoritarismos, uma vez que a história de uma sociedade passa a ser regida por algo que ela deve realizar a qualquer preço. Passa-se da história ao destino" (1980) .
Fazendo uma analogia com o pensamento de Chaui sobre a sociedade, podemos dizer que a (psico)lógica desenvolvimentista acaba estabelecendo um destino para as crianças (o de adulto plenamente desenvolvido), na tentativa (escamoteada pela suposta naturalidade do desenvolvimento) de controlar e prever seu crescimento de acordo com uma rota predefinida, afastando a possibilidade de que cada um componha sua história singular. Ou seja, que cada sujeito viva as suas vicissitudes. E é precisamente aqui que marcamos uma diferenciação da perspectiva psicológica com a psicanalítica.
A aplicação do entendimento do infantil psicológico à educação tem como consequência a instituição e a padronização de etapas a serem vividas pelas crianças rumo a um destino ortopedicamente previsto. Mais ainda, tem como consequência a determinação e a delimitação da ação do adulto em relação às crianças: os grandes devem apenas colaborar para que as pequenos cumpram seus destinos supostamente naturais. E o que acontece com aqueles que escapam, que desviam da rota? Certamente devem ser reinseridos, ou, como se costuma dizer atualmente, devem ser incluídos, (muitas vezes a qualquer custo) nas "classes regulares".
Por outro lado, sem pretender que suas teorias sejam aplicadas às práticas educativas, o que a psicanálise pode apontar é que o infantil é da ordem da singularidade e não é passível de manejo, de controle, fora da situação analítica. A psicanálise permite então que façamos um importante alerta ético á educação: alerta contra as tentativas ideológicas da (psico)pedagogia de estabelecer rotas e destinos para a vida dos jovens e pequenos seres humanos com os quais nos deparamos em nossos lares, nas escolas e nos consultórios.
Referências bibliográficas:
BIRMAN, Joel. (1997) Além daquele beijo!? – sobre o infantil e o originário em psicanálise. In: Santa Roza, Elisa. Da análise na infância ao infantil na análise; prefácio de Joel Birman (pp. 7-37). Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 1997.
BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de Educação Fundamental. Referencial curricular nacional para a educação infantil. Brasília: Ministério da Educação e do Desporto, Secretaria de Educação Fundamental, 1998. Volume 1: Introdução.
CHAUI. Marilena. (1980) Cultura e democracia – o discurso competente e outras falas. 10ª edição. São Paulo: Cortez, 2003.
SEU FILHO E VOCÊ, Rio de Janeiro, K Editores, ano 2, nº 23, março de 2003.
TANIS, Bernardo. (1995) Memória e Temporalidade: sobre o infantil em Psicanálise. São Paulo: Casa do Psicólogo.