5O infantil: das psicologias à psicanáliseA instituição da adolescência e a educação author indexsubject indexsearch form
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On-line ISBN 978-85-60944-06-4

An. 5 Col. LEPSI IP/FE-USP 2004

 

O manejo da transferência em atendimento psicanalítico na enfermaria de um hospital

 

 

Sueli Pinto Minatti

Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica da PUCSP

 

 

A situação que nos anima neste texto tenta caminhar da palavra, que cessa num período de crise (Berlinck, 2004), à transferência, como combustível para um movimento que aciona sonhos e fantasias, fazendo aparecer o sujeito desejante.

As personagens são Vitória e sua filha de 6 anos, com diagnóstico de câncer em estágio avançado.

Para esta escrita fomos inspirados pelo personagem Dora, em Freud, no texto Fragmento da análise de um caso de histeria (1905[1901]), cuja análise da interrupção do tratamento gerou, em Lacan, dentre vários, o texto de 1951, Intervenção sobre a transferência. Tentamos articular o conceito transferência ao de sujeito.

Freud, na análise do caso citado, considera, mas não põe foco, à Dora de tantos anos, por exemplo, a pessoa. Interessava-lhe o sujeito desejante1, que se anunciava em Dora, apresentada pela queixa olha o que fazem comigo; resolva isso para mim; eu não tenho nada com essa confusão onde me meteram2. Esse que se queixa reluta em pensar ou em acreditar que possa pensar além daquele pensamento no qual está inserido e, aparentemente, perfeitamente acoplado; um pensamento muito bem arranjado numa trama quase perfeita. Só não completamente perfeita porquanto denunciada por uma queixa.

Trazemos o caso Vitória apostando numa articulação possível por meio de dobradiças3 em brechas desde onde pode haver um convite para o despontar do pensamento criativo, apostando que se ele desponta uma vez pode fazê-lo outras vezes.

Vamos à Vitória.

Ao final de uma sessão marcada pela analista por ‘continuamos na próxima semana’, essa mãe, cujo apelo maior é assegurado no ‘Olha como está minha filha’ diz ‘Mas esta história não é real; a senhora gosta de histórias que não são reais?’

A imagem - olha como ela está - só tem sentido se for tomado como pedido. Diferente do que é apenas mostrado – e pode ser visto –, portando, dessa forma, uma consistência paralisante em que nada mais precisa ser buscado. No Seminário 1, Lacan fala em "esforço de pensamento" como instrumento para um "progresso no mundo simbólico" (Lacan, 1953/1954, p. 304), ou seja, um desdobramento dialético, que possibilitaria desvendar a verdade do sujeito em meio à força do discurso social. Em 1951 Lacan apresentara a promoção da dialética, utilizando, como exemplo, o caso Dora, que se oferece como objeto de uma troca. Freud promove a inversão, implicando-a na desordem da qual ela se queixava, inaugurando a diferença de se contar com um psicanalista.

A queixa, então, pode ser uma fala que remete ao sujeito, se ela for considerada, conduzida e sustentada por uma aposta na via do desejo.

Em tratamento psicanalítico em instituição, tal como nos encontramos4, em que a irregularidade - de horário, local, número de sessões, intervalos entre elas - é constante, privilegiamos o setting, definido como a utilização da transferência. A transferência é condição para se pensar um tratamento, ou a possibilidade de um tratamento. "No começo da psicanálise é a transferência" (Lacan, 1967, p.252). Cada encontro – dentro do campo psicanalítico – é o encontro feito sob transferência.

Tomemos Freud. Em Sobre o início do tratamento (1912[1913]), ele analisa a transferência no processo psicanalítico como uma relação amorosa e artificial que contraria as normas sociais. Esse amor aí manifesto é uma repetição, assim como todo amor, e reproduz protótipos infantis. A forma de resposta a tal amor, pelo analista, deve ser não respondendo diretamente a ele, mas deixando que ele se manifeste para que seja analisado; isto é o que permite o restabelecimento da paciente. "É, portanto, tão desastroso para a análise que o anseio da paciente por amor seja satisfeito, quanto que seja suprimido"(Freud 1915, p.183).

A base do amor são as transferências; e as transferências geram demandas.

Esse é tema recorrente na literatura, nos cenários cinematográficos, nos relatos de pacientes no consultório e instituição, na vida. Desde Platão.

Depois de laboriosa reflexão diz Zeus: "Acho que tenho um meio de fazer com que os homens possam existir, mas parem com a intemperança, tornados mais fracos. Agora com efeito, continuou, eu os cortarei a cada um em dois, e ao mesmo tempo eles serão mais fracos e também mais úteis para nós, pelo fato de se terem tornado mais numerosos; e andarão eretos, sobre duas pernas." (...) Por conseguinte, desde que a nossa natureza se mutilou em duas, ansiava cada uma por sua própria metade (...) (Platão, 1999, p. 127/128).

Cada um ansiando por sua própria metade vai ensaiando diferentes formas ao transferirem a outros algo de si mesmo.

Como dizer dessa apropriação da transferência no campo do social para a construção do campo da psicanálise?

A via do amor, num tratamento psicanalítico, pode ter um encaminhamento através do conceito sujeito suposto saber, formulado por Lacan. A suposição de saber, por aquele que o apresenta é, na psicanálise, devolvido a seu autor para que ele produza um saber sobre seu sofrimento. "Trata-se de uma ilusão na qual o sujeito acredita que sua verdade encontra-se já dada no analista e que este a conhece de antemão (Quinet 1998, p. 30/31)."

Devolver ao autor, o sujeito, o que é dele, é tarefa do psicanalista.

Retornemos a Vitória. Ela pouco demandava além do campo mostrado e olhado do corpo, como queixa. Ela e sua filha tinham uma à outra. Ambas perdidas diante do abismo anunciado num prognóstico fatal.

Ao final da sessão marcada pela analista por ‘continuamos na próxima semana’, essa mãe – cercada de dados emergentes sobre o estado grave da filha e que falou durante toda a sessão sobre suas próprias aventuras infantis – diz: ‘Mas esta história não é real; a senhora gosta de histórias que não são reais?’

Ela só tinha podido, em entrevistas anteriores, falar brevemente - não muito mais que cinco minutos - das dificuldades a respeito da enfermidade da filha. Falas breves, entrecortadas por constantes olhares entre mãe e filha e por pedidos, olha como ela está. Pedido feito a quem se aproximasse. Ainda, pedidos constantes a respeito do saber, que vai atribuindo ao outro - O que mais quer saber?, e o apelo Não quero que minha filha morra; eu só tenho ela, respondido pela própria filha Não vou morrer, mãe.

Essa entrevista teve duração de aproximadamente uma hora, começando com a filha brincando ao lado da mãe, ao mesmo tempo que a instigando a contar algumas anedotas5 familiares. Conta pra ela, mãe, o que sua mãe dizia sobre.... À medida que a mãe vai caminhando, no encadeamento dos relatos de cenas compostas por sua família de origem, a filha faz silêncio e faz parecer que está completamente absorta em seus brinquedos. Continuamos na próxima semana pareceu, pela fala da mãe, ter um efeito de corte, instaurando dois tempos. Um, marcado pela crueldade da morte e da perda do bem mais precioso. O outro, instigado pela filha, colocava em cena uma saída criativa ao medo da morte, pela transcendência que a filha retorna à mãe, convidando-a a acompanhá-la. O corte marca a cena e coloca a mãe diante do, agora, Outro6, com a pergunta Agradei? O que você espera de mim? Há isto, interessa?

A mãe anuncia o medo da morte da filha, como ferida exposta, e é animada pela própria filha, esta que diz Não vou morrer, mãe, a enveredar pelos caminhos de suas fantasias, num longo relato absorto e envolvente, cuja origem está no seu papel de filha e nos entrelaçamentos entre ser filha e ser mãe. Portanto, tem medo da morte de quem? Quem teme perder?

Brecha a essa dialética posicional aparece na estranheza, diante do corte, colocando-a entre um antes e um depois, em que aquele antes não mais será o mesmo diante desse vislumbre.

Lacan, no seu seminário 8, A transferência, utiliza-se de O banquete, de Platão, para falar desse objeto, agalma, que reflete algo indefinível e atraente ao mesmo tempo. O psicanalista sabe que o sujeito visualiza agalma e é esse que vislumbra, seu alvo. A respeito do pedido de Alcibíades a Sócrates, Lacan diz "Não é a ascese, nem a identificação a Deus que deseja Alcibíades, mas esse objeto único, esse algo que ele viu em Sócrates e do qual Sócrates o desvia, porque Sócrates sabe que não o tem" (Lacan, 1960/1961, p. 161).

A filha parece vislumbrar agalma e, ao mesmo tempo, oferece essa experiência à mãe, tirando-a da concretude cruel da morte. O vislumbre da filha coloca, também, a mãe em marcha, colocando-a, sobretudo, diante de seu desejo, caminho de busca desse objeto. Tirando-a do encantamento paralisante.

Em reunião de grupo com profissionais7 da enfermaria e os acompanhantes, estes são questionados, dando sugestões sobre o funcionamento do serviço. Em dado momento há referência à doença e ao doente. Vitória mantém-se calada e quando requisitada por um participante dirige-se à psicanalista dizendo "Ela sabe". Este dito pode ser considerado num desdobramento "Ela sabe o que eu sei."

Estar atento ao desejo do sujeito, nos ensinou Freud, faz a produção da psicanálise a cada entrevista. Vitória vai usando, pelo exercício do seu pensamento, movimentado pelo desejo, diante da presença da psicanalista, o que vai sendo suposto a partir, não só da sua presença, mas também, e principalmente, de suas intervenções. Uma dessas intervenções foi o silêncio permissor do entrelaçamento mãe/filha. Silêncio escutado pela filha, e que fez eco na mãe enquanto mãe e enquanto filha.

O que instaura um antes e um depois é o apontamento do analista com valor de ato8, efeito de corte. Nesse a fantasia, por um momento, aproxima-se da realidade, fazendo aparecer uma ponte. Tal ato é possível porque este – que se constitui psicanalista nesse instante – sabe que se trata de outra coisa. Ele está atento a quem pede e não ao quê é pedido, conforme diz Lacan a respeito do posfácio de Fragmento da análise de um caso de histeria, discutindo a análise que Freud faz da interrupção do caso Dora, dando-nos pistas dos caminhos de um tratamento psicanalítico.

Só o sujeito pode dar novos encaminhamentos àquilo que era considerado destino.

Quem deseja em Dora? Pergunta Lacan.
Quem deseja em Vitória? Perguntamos nós.

Ao perguntar Isto interessa?, Vitória aponta um caminho que essa, que escolhe isto, e não outra coisa, aponta. Isto pôde ganhar perspectiva para ser oferecido porque foi fantasiado, sonhado, absorvido, num relato que ganha uma dimensão de Quem sou? Filha? Mãe?

Sob transferência, esse poder que lhe é retornado9, permite tentar dizer, fazendo escolhas, dirigidas pela investigação de saber, fazendo surgir É isto? E isto? Isto agrada? O que você quer?

É o desejo que mantém a direção fora dos efeitos da demanda.

Em meio à crise surgem intervalos, sobram perguntas que ousam despontar, se houver ouvinte. Queremos marcar que há o sujeito que fala, que investiga. E há o psicanalista que diz escuta o que você está dizendo, apostando na apropriação do sujeito em sua produção. Essa produção coloca em ação a regra fundamental da psicanálise – fale tudo o que lhe vem à mente – caminhando em direção àquilo que vislumbra, utilizando-se do psicanalista como instrumento para essa caminhada. O que vai implicando, para seu autor, o próprio exercício de autoria no que se refere aos efeitos de sua palavra.

Freud promove inversões, implicando Dora na desordem da qual ela se queixava (Lacan, 1951), tirando da trivialidade e do absurdo o pensamento isolado e colocando-o, pelo uso da transferência em psicanálise, em cadeia e em conjunto, constituindo elo eficaz, conforme Freud mesmo havia formulado no capítulo II de sua obra A interpretação dos sonhos, época em que atendia Dora.

Encarado isoladamente, um pensamento pode parecer muito trivial ou absurdo, mas pode tornar-se importante em função de outro pensamento que suceda a ele, e, em conjunto com outros pensamentos que talvez pareçam igualmente absurdos, poderá vir a formar um elo muito eficaz (Freud, 1900, p. 137).

Queremos finalizar dizendo que, nesses atendimentos clínicos, em instituição, marcados pela irregularidade, principalmente sob vicissitudes do tratamento oncológico, focamos uma direção de tratamento na fundação enquanto instituição do sujeito. Visamos sempre um começo e um caminho que se desenha a partir desse começo. A transferência faz o sujeito querer continuar sua pesquisa incluindo, na sua narrativa, os tropeços, começo da queda do ideal.

 

Referências bibliográficas

BERLINCK, Manoel Tosta. Estados Gerais e a situação da Psicanálise no Brasil. Debate realizado em 31 de agosto no Centro de Estudos Psicanalíticos. São Paulo. 2001.

----------------------------------. Aula Inaugural do Laboratório de Psicopatologia Fundamental. PUC/SP. Março de 2004.

CHEMAMA, Roland. Dicionário de psicanálise. Porto Alegre. Editora Artes Médicas. 1995.

FREUD. Sigmund. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro. Imago Editora. 1996.

----------------------. (1900). A interpretação dos sonhos. Vol. IV.

----------------------. (1905[1901]). Fragmento da análise de um caso de histeria - posfácio. Vol. VII.

---------------------. (1913[1912]). Sobre o início do tratamento (Novas recomendações sobre a técnica da psicanálise I). Vol. XII.

--------------------. (1915[1914]) (Observações sobre o amor transferencial (Novas recomendações sobre a técnica da psicanálise III). Vol. XII.

---------------------. (1938) Esboço de psicanálise. Cap. VI - a técnica da psicanálise. Vol. XXIII.

JERUSALINSKY, Julieta. A intervenção do clínico no marco da estimulação precoce. In: Enquanto o futuro não vem. Salvador. Ágalma Psicanálise Editora. 2002.

LACAN, Jacques. (1951). Intervenção sobre a transferência. In Escritos. Jorge Zahar Editor. Rio de Janeiro. 1998.

---------------------. (1953/1954). O seminário, livro 1.

---------------------. (1960/1961). O seminário, livro 8. A transferência. Rio de Janeiro. Jorge Zahar Editor. 1997.

---------------------. (1961/1962). O seminário, livro 9. A Identificação. Centro de Estudos Freudianos do Recife. Publicação para circulação interna. 2003.

--------------------. (1967). Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola. In Outros Escritos. Rio de janeiro. Jorgr Zahar Editor. 2003.

LIMA, Hildebrando de. Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro. Editora Civilização Brasileira. 11ª. Edição.

PLATÃO. O Banquete, ou Do Amor. 9ª edição. Rio de Janeiro. Bertrand Brasil. 1999.

QUINET, Antonio. Função das entrevistas preliminares. In As quatro mais uma condições de análise. Jorge Zahar Editor. Rio de Janeiro. 1998. A transferência faz o sujeito querer continuar sua pesquisa incluindo, na sua narrativa, os tropeços, começo da queda do ideal.

 

 

1 Ainda que não formulasse "sujeito desejante". Essa formulação aparece após Lacan. Desejo pode ser definido como "falta inscrita na palavra". (Chemama, p. 42).
2 Este não é um enunciado de Dora, mas nossa leitura do que diz Dora.
3 Metáfora utilizada por Julieta Jerusalinsky para pensar o "ofício do clínico" na clínica de bebês e que nos auxilia a transmitir essa clínica. J.Jerusalinsky refere-se à utilização original em Lacan, 1961/1962 (Jerusalinsky, 2002).
4 Estes atendimentos têm sido feitos na enfermaria de um hospital que atende casos de oncologia e hematologia infanto-juvenil.
5 "Anedota: relato rápido de um fato jocoso; particularidade engraçada, histórica ou lendária" (Lima, Pequeno dicionário brasileiro da língua portuguesa).
6 Para a definição de Outro escolhemos o Seminário 9. Nesse, Lacan define Outro como a possibilidade da passagem de uma localização dada pela imagem para um lugar em que algo dessa imagem se perde e se fala para ele, para o sujeito.
Esse Outro que o sujeito atribui ao alheio é si próprio da forma menos reconhecida e mais estranha; o que Freud chamou inconsciente.
7 Os profissionais que estavam naquela reuniâo: terapeuta ocupacional, assistente social, enfermeira, nutricionista e psicóloga.
8 "Ato psicanalítico: Intervenção do analista no tratamento enquanto (ela) constitui o enquadramento do trabalho psíquico e possui um efeito de travessia" (Chemama, 1993, p. 18).
9 Referência ao poder atribuído ao analista em Freud (1938).