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On-line ISBN 978-85-60944-06-4

An. 5 Col. LEPSI IP/FE-USP 2004

 

Efeitos de um diagnóstico de transtorno de conduta para uma criança: determinismo e exclusão

 

 

Luciana Castilho de SouzaI; Viviane LegnaniII

IPsicóloga pela UCB
IIPsicanalista, Doutora em Psicologia, professora da Universidade Católica de Brasília (UCB) e orientadora desse trabalho

 

 

Dentro da visão médica contemporânea, existem vários quadros psicopatológicos que podem ser identificados na infância e adolescência. Normalmente tais problemáticas são focalizadas no contexto escolar e, entre esses quadros, encontrar-se-ia, com freqüência, o diagnóstico de Transtorno de Conduta. Na Classificação Internacional de Doenças - CID 10 (1992) tal Transtorno é descrito como um padrão repetitivo e persistente de conduta anti - social, agressiva ou desafiadora. Os sinais são mais observados no sexo masculino e compreendem os seguintes comportamentos: níveis excessivos de brigas ou intimidação; crueldade com animais ou outras pessoas; destruição grave de propriedades; comportamento incendiário; roubo; mentiras repetidas; cabular aulas ou fugir de casa; ataques de birra inusualmente freqüentes e graves; comportamento provocativo desafiador e desobediência grave e persistente.

Vale destacar que os sinais patognomônicos dessa problemática são assimilados pelo discurso (psico)pedagógico vigente como decorrentes de uma "falta de limites" na educação ou de uma ausência real da figura paterna na dinâmica familiar. Esta visão psicologizante, permeada por um sentimento nostálgico de demanda de um "pai forte" e eficaz, acirra, ainda mais, os inúmeros preconceitos que passam a fazer parte da vida da criança com esse diagnóstico.

A psicanálise, com seus operadores teóricos, possibilita pensar essa questão a partir de processos outros. Ou seja, essa problemática deve ser pensada como decorrente de uma dialética edipiana, na qual os entraves da função paterna e da função materna estão articulados, pois a psicopatologia, dentro dessa perspectiva, fornece subsídios para compreender a subjetividade do sujeito, uma vez que os sintomas podem ser vistos como discursos cifrados que abrem caminho em direção à verdade na sua dimensão inconsciente (Rosenberg, 2002).

Falamos, assim, de uma posição sintomática ancorada em processos inconscientes que correspondem a um apelo à lei, ou seja, são atuações para que alguém possa fazer valer a inscrição da metáfora paterna, permitindo ao sujeito um deslocamento para além dos significantes maternos fundantes, construídos ao longo dos primeiros anos de vida. Desse modo, será, então, a partir do cumprimento da função paterna, no seio da experiência edípica, que a criança poderá ser destronada da relação com a mãe e constituir-se enquanto sujeito do desejo, capitonado pelos limites da lei.

Legnani (2003), destaca a importância de se pensar tal problemática, também, analisando o que ocorre estruturalmente na relação primordial mãe - bebê. Nesse sentido, as formulações winnicottianas contribuem fundamentalmente para essa compreensão. Esse autor indica, por exemplo, que tais comportamentos disfuncionais estariam relacionados a um pedido de ajuda devido à falhas nos cuidados maternos, onde a construção dos limites corporais/subjetivos da criança não se efetivou pela ausência de um holding capaz de auxiliar no processo de diferenciação eu/outro. Eis aí um mérito importante dessas formulações, na medida em que esclarece que o acting- out é um pedido de cuidados, de proteção haja visto que o suprimento mãe-ambiental falhou ou foi omisso.

Desse modo, Winnicott (2002) discorre sobre a implicação das experiências nos primeiros meses de vida na constituição da subjetividade, pois a carga pulsional oriunda dessas vivências primordiais, aos poucos, precisa ser drenada em atividades sublimadas que serão proporcionadas pela mãe suficientemente boa, ou seja, por aquela que assiste à criança em suas necessidades e, ao mesmo tempo, lida com seu ódio decorrente das necessárias frustrações nesses momentos.

Por uma mãe, então, que suporte, nessa relação, objetivamente e subjetivamente, a diferenciação eu/outro. Assim, os comportamentos agressivos e anti-sociais são compreendidos como um movimento da criança pelas dificuldades em lidar com as frustrações primordiais, relacionadas com o processo de separação eu – mãe/ambiente, que são sentidas e significadas como privações.

Em uma leitura lacaniana, Cabas (1988) assinala que a relação "dual" entre mãe e filho é, na verdade, uma relação de quatro termos: a mãe, o filho, o desejo materno e a metáfora paterna. Há um atravessamento da função paterna na materna que se conecta mediante o falo. O lugar para o filho nesse atravessamento depende desse conector, pois é ele que faz a ligação na estruturação da criança, articulando o desejo materno ao significante Nome-do-Pai.

Dessa forma, o mapeamento no corpo do infans de significações sociais e sexuais é feito por uma mãe submetida à Lei. Este "mapa" no real do corpo do bebê somente ganha um sentido simbolizante por conter a referência paterna já nas ações e cuidados maternantes. Esse atravessamento é também um legado da metáfora paterna, à medida que depende da posição inconsciente da menina que se torna mulher e mãe.

Nessa perspectiva, a entrada na delinqüência passaria inicialmente por impasses subjetivos no processo de diferenciação primordial eu/outro que serão ratificados e atualizados em uma posição subjetiva que articula alguma coisa da ordem da recusa, de uma não aceitação do limite e da lei paterna, principalmente quando esta se coloca apenas em torno das proibições, do significante "não", ou seja, quando não mostra a outra face da lei, a saber: o lado que indica os caminhos possíveis para que o sujeito possa percorrer o lado do "sim".

Em suma, a delimitação da problemática das condutas anti-sociais feita por um diagnóstico médico, torna-se questionável, por não permitir trazer à tona a compreensão dos processos inconscientes que estariam subjacentes às passagens ao ato da criança servindo apenas, muitas vezes, para cristalizar o sujeito em uma posição de "doente" ou de um "futuro marginal". Já o entendimento dessa problemática, sob a ótica dos preceitos psicanalíticos, articula-se com o processo da constituição da subjetividade na dialética edipiana.

Para alguns, o "vaso de cristal" quebra-se, como resultante dessa dialética, como afirma Freud. Para outros, no mesmo lugar que o vaso estilhaçou, pode se verificar apenas que ele está trincado. Ou seja, os diferentes níveis de matizes psicopatológicas, resultam da capacidade do sujeito em significar o "infantil" que restou, a partir de sua posição subjetiva, que foi construída em suas experiências vividas estruturalmente, na posição de filho, no eixo do entrelaçamento das funções materna e paterna.

É necessário enfatizar, todavia, que tais formulações psicanalíticas não fazem adesão a uma visão de mundo que explicaria a realidade subjetiva a partir das estruturas psíquicas "fechadas" já na primeira infância. Formulações que ignorariam as implicações das relações institucionais e sociais na vida dos sujeitos e o caráter sublimatório que as experiências escolares podem ter para uma criança.

Isto posto, a discussão desse trabalho será ilustrada com um estudo de caso de um aluno da 1ª série do Ensino Fundamental "portador" do referido diagnóstico. Abordaremos os efeitos do acidentado percurso escolar dessa criança marcado pela exclusão pautada na certeza gerada pelo laudo médico quando este articulou-se com o discurso (psico)pedagógico que vigorava nesses ambientes escolares.

 

A trajetória escolar de Felipe: um processo de exclusão do sujeito e de inclusão de seu diagnóstico médico.

Felipe chegou ao nosso serviço de atendimento com sete anos. Cursava a 1ª série do Ensino Fundamental e era diagnosticado como portador de Transtorno de Conduta por um serviço médico/psicopedagógico público que atende crianças e adolescentes em Brasília. Recebeu este diagnóstico de uma psiquiatra, aos seis anos de idade.

Residia com sua mãe, Sônia, que trabalhava como diarista, com dois irmãos, com a avó materna e um tio que fazia uso abusivo de drogas. Arnaldo, o pai, havia se separado de Sônia quando Felipe tinha três anos. Após a separação, foi preso por assalto à mão armada. Ao findar sua pena em regime fechado, acabou retornando ao meio carcerário por agredir fisicamente sua ex - mulher em uma das ocasiões que visitava os filhos.

Felipe ingressou na escola com seis anos e, desde os primeiros três meses de aula, esse ambiente construiu uma queixa escolar em torno do aluno, a partir da seguinte construção discursiva: tratava-se de uma criança com comportamentos diferentes dos demais colegas, muito agressiva e com dificuldades na socialização, uma vez que brigava diariamente os colegas e os professores.

Assim, Sônia logo foi convocada para explicar aos professores sobre a origem de tais comportamentos e, nessa ocasião, relatou que o pai de seu filho era presidiário e sobre o fato de seu irmão ter envolvimento com drogas. Pouco tempo após essa conversa, Felipe foi encaminhado para uma avaliação psiquiátrica.

A partir das descrições da escola sobre o comportamento da criança e um breve entrevista investigativa com a mãe, esse serviço diagnóstico "fechou" a problemática da criança com o diagnóstico de Transtorno de Conduta. Segundo relato da professora, após a chegada do laudo médico na escola, ela e suas colegas passaram a temer a criança e a esperar que ela agisse de uma forma agressiva e impulsiva. Disse-nos que a cada aula ministrada, riscava no calendário mais um dia de tensão e contava ansiosa o que restava dos dias letivos, quando ficaria livre de Felipe.

Vivenciando essa dinâmica escolar, os comportamentos agressivos de Felipe se agravaram e ele foi transferido para uma outra escola. Ao longo dos dois anos que acompanhamos o caso dessa criança, houve mais outras três transferências. Dessa forma, Felipe, apesar de sua pouca idade, foi levando consigo seu diagnóstico e seu "histórico" significativo de "expulsões", até que, anatematizado, chegou em uma escola de Ensino Especial que recebia alunos com maiores comprometimentos.

Vale ressaltar que na última tentativa de incluir a criança, em uma escola de Ensino Regular, a proposta foi a de não concluir o seu processo de alfabetização, mas sim a de inseri-lo em uma turma de 4 ª série, freqüentada por alunos mais velhos, capazes de contê-lo, caso ele agisse com agressividade. Desse modo, Felipe passava seu tempo desenhando ou fazendo algumas atividades isoladas do restante da turma, ou seja, a proposta era elogiar seus comportamentos "socializados", reafirmar e "trabalhar" (magicamente) sua auto-estima, apostando, assim, que no ano seguinte, no momento que a criança estivesse "adaptada", poder-se-ia , então, transmitir o conhecimento formal. Essa proposta pedagógica fracassou e esse fracasso foi justificado pela gravidade da problemática do aluno, que foi encaminhado, então, para o Ensino Especial.

Nas sessões clínicas, Felipe expressava-se de forma retraída, introvertida e comunicava-se com frases curtas e assertivas. No que tange ao aspecto subjetivo apresentava dificuldades na constituição de uma identidade masculina que não se apoiasse em traços imaginários de agressividade e, recorrentemente, demonstrava uma excessiva rigidez, no brincar, ao apontar os papéis de gênero em suas funções familiares e sociais: as mulheres deveriam ser submissas e respeitar a superioridade masculina.

Tinha uma visão crítica e rancorosa sobre seu acidentado percurso de escolarização e com a sua fala indicava o quanto suas atuações eram reativas ao processo de exclusão que se sentia submetido. Certa época, uma das escolas propôs à Sônia que seu filho poderia freqüentar as aulas, mas apenas durante duas horas - das 8:00 até as 10:00 -, ou seja, a criança teria que ir embora antes do horário de recreio. Essa situação tornou-se extremamente aversiva para Felipe que, por várias vezes, expressou seu desejo de estar nessa escola por mais tempo e, principalmente, de poder brincar com os colegas durante o intervalo.

Apesar de todos esses entraves na escola, seus processos cognitivos estavam preservados, de forma a possuir orientação espaço-temporal, escrever o pré-nome, reconhecer letras e números, fazer conservação/reversão de quantidades, narrar e (re)contar histórias a partir de desenhos e colagens.

Nos atendimentos paralelos que eram realizados com Sônia percebíamos seu profundo cansaço com as constantes demandas da escola para que ela resolvesse a problemática de Felipe. Em casa e em outros ambientes sociais, segundo seu relato, seu filho, não era excessivamente agressivo e, dessa forma, ela não entendia o que acontecia no ambiente escolar que desencadeava tal postura.

Em meio a essas questões, ela expressava sua angústia, ancorada na suposição de que Felipe, ao crescer, pudesse vir a ser como seu irmão. Uma vez que este quando criança também apresentou problemas na escola e aos poucos, durante a adolescência, foi se colocando cada vez mais a margem da sociedade até se tornar dependente de drogas, permanecendo dependente financeiramente de sua família por não conseguir trabalhar.

 

Algumas considerações sobre o caso

Os fragmentos desse caso ilustram o paradoxo da inclusão/exclusão que opera atualmente no contexto escolar. Assim, ao lidar com o outro desviante esse ambiente se aferra em um discurso assistencialista e paternalista que destaca a "doença", sendo que essa visão acaba por contribuir para a formação de mecanismos que excluem o próprio sujeito e sua singularidade. Pode-se entrever esse paradoxo, por exemplo, na recusa da escola de transmitir conhecimentos ao aluno e optar, apenas, por sua "adaptação" no ambiente escolar.

Assim, interessa-nos pensar, a partir do caso dessa criança, o efeito do processo de segregação pautado na certeza que advém de um dignóstico médico na subjetividade dos sujeitos que, na idade escolar, ainda não têm um estrutura psíquica definida, conforme indica Legnani (2003). Uma vez que, tendo por base o referencial psicanalítico, pode-se entender a posição subjetiva de Felipe dentro de um "estado limite", ou seja, mediante um raciocínio clínico estrutural, ter-se-ia uma estrutura que se encontra indefinida, que ainda bordeja as estruturas clínicas de neurose, psicose e perversão.

Em nossa concepção, as atuações de Felipe eram um pedido de ajuda, como nos ensinam as formulações winnicottianas. Nossa intervenção perpassou, portanto, os contextos escolares, nos quais tentamos abrir um "furo" gerador de espaços de contradições na produção discursiva "fechada", "maciça" que Felipe era portador de uma doença genética incurável; também fazíamos uma escuta da mãe e horas de jogo com a criança. A direção do tratamento, de forma geral, era a de "descolar" Felipe dessa posição de assujeitamento a fim de evitar que ele caísse definitivamente no fantasma materno, ratificado diariamente pelo contexto escolar de que se tornaria um "marginal".

Procuramos demonstrar e ilustrar com esse caso o peso das experiências escolares no desencadeamento e aprofundamento dos quadros psicopatológicos das crianças que desviam do padrão quando o contexto escolar, não cumpre com a sua função e, a partir de um discurso determinista e reducionista, não possibilita ao educando se apropriar dos valores culturais, retendo-o em um "limbo" mortífero e asfixiante.

 

Referências Bibliográficas

CABAS, A G (1988) . A função do falo na loucura. São Paulo, SP. Ed. Papirus.

CLASSIFICAÇÃO INTERNACIONAL DE DOENÇAS (CID 10) - Transtornos da Infância e da Adolescência (1993). In: CID 10. Classificação de Transtornos Mentais e de Comportamento da CID 10: Descrições Clínicas e Diretrizes Diagnósticas. Porto Alegre, RS. Ed. Artes Médicas. ( pp. 260-265).

LEGNANI, V. N. (2003) Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade: Um estudo psicanalítico.. Tese de Doutorado. Instituto de Psicologia, UnB, Brasília, DF.

ROSENBERG, M. S. (2000) Provocando inconsciente. Questões sobre o diagnóstico na clínica psicanalítica. Estados Gerais da Psicanálise, 2000. Disponível em:

WINNICOTT, D. T. ( 2002) Privação e delinqüência. São Paulo, SP. Ed. Martins Fontes.