5Efeitos de um diagnóstico de transtorno de conduta para uma criança: determinismo e exclusãoContribuições da psicanálise na abordagem das falas sintomáticas de crianças author indexsubject indexsearch form
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On-line ISBN 978-85-60944-06-4

An. 5 Col. LEPSI IP/FE-USP 2004

 

Impasses na construção da noção de alteridade nos processos de subjetivação das crianças com o diagnóstico de transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (tda/h)

 

 

Viviane N. LegnaniI; Mariana F. de Andrade; Raquel Cristina dos R. Cairus; Clarissa T. Kahn; Eliane Azevedo da Silva; Emily A da SilvaII

IPsicanalista, Professora da Universidade Católica de Brasília e supervisora da atividades clínicas que ancoraram essa discussão
IIPsicólogas pela Universidade Católica de Brasília

 

 

Desde a última década, houve um aumento expressivo do número de crianças diagnosticadas como portadoras de Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDA/H). Manuais de orientação a pais e professores foram lançados pelo mercado editorial objetivando "ensinar" como lidar com essas "difíceis crianças", descritas como turbulentas, desatentas e impulsivas. Na Internet, também, é impressionante o número de sites que se propõem a descrever e divulgar tanto os sintomas, como o tratamento, principalmente o medicamentoso, para essa problemática. A chamada "Hiperatividade" tornou-se, assim, um fato de mídia.

Os dados estatísticos, preconizados pelo discurso médico contemporâneo, apontam uma incidência significativa desse transtorno; a estimativa feita é a de que de 3% a 5% das crianças e adolescentes em idade escolar seriam portadoras do TDA/H.

Assim, de acordo com Werner (1997), nos dias atuais, a aceitação social desse diagnóstico é facilmente constatada na vida cotidiana e profissional. E essa credibilidade iniciou-se na década de 80, na edição do DSM III (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais) quando a Academia Americana de Psiquiatria propôs a separação das perturbações por Déficit de Atenção e Hiperatividade dos Distúrbios de Aprendizagem. Orientação que será, posteriormente, incorporada pelo DSM IV.

Sob essa ótica, os elementos clínicos dessa problemática ancoram-se nos seguintes eixos:

- A disfunção básica do TDA/H acomete os campos da atenção e concentração. Para efeito de diagnóstico esta característica deve comparecer desde os primeiros anos de vida da criança e seria essa disfunção que acarretaria os outros comportamentos disfuncionais como, por exemplo, a dificuldade para se organizar e seguir regras e instruções, como também as dificuldades escolares.

- A hiperatividade propriamente dita não apareceria em todos os casos e caracterizar-se-ia por uma movimentação corporal incessante que traria dificuldades para a criança realizar quaisquer tarefas que requeiram poucos movimentos corporais.

- E, por fim, a impulsividade, que se apresentaria, também, só em alguns casos e que se traduziria na incapacidade da criança de responder às demandas do outro e do ambiente de forma pertinente, seja pela dificuldade de estabelecer uma comunicação dialógica efetiva, ou mesmo por meio de comportamentos que demonstrariam dificuldades na esfera do cumprimento de regras e normas.

As nomenclaturas de Lesão Cerebral Mínima (L C M) e Disfunção Cerebral Mínima (D C M), que anteriormente abrigavam o conjunto de sintomas que hoje compõem o quadro do TDA/H foram, então, descartadas. Collares e Moysés (1992b) assinalam que essas mudanças aconteceram em função do descrédito que tais "distúrbios" passaram a ter por não ter havido comprovações nas pesquisas experimentais que validassem a existência de uma lesão no aparato orgânico do cérebro ou mesmo de uma disfunção no funcionamento cerebral. Essa troca, porém, não provocou, segundo as autoras, nenhuma mudança na postura crítica dos pesquisadores em relação a um ponto crucial dessas "entidades clínicas", qual seja: a impossibilidade de comprovar uma anormalidade que justificasse a inclusão dos referidos quadros como patologias orgânicas. Nesse sentido, a terminologia de TDA/H inclui-se, também, nessa "espiral viciada", pois tal problemática, enquanto uma disfunção orgânica, é também uma "verdade" que ainda não se comprovou.

A vertente das pesquisas1 para elucidar a etiologia do TDA/H insere-se em um contexto em que os avanços da psicofarmacologia e das neurociências são divulgados, incessantemente, através de estratégias bem sucedidas de marketing. Tais informações passam, então, a fazer parte do senso comum, dos sistemas de crenças partilhadas como verdades cientificamente provadas, como assinala Bogochvol (2001). Segundo o autor, faz parte do senso comum contemporâneo a idéia de que várias formas de sofrimento e de distúrbios psíquicos possam ser curadas biologicamente.

Dessa forma, a partir da propagação social dessa construção diagnóstica, o professor, diante de alunos desviantes do padrão esperado, passa a indagar se aquela criança é portadora do quadro de TDA/H, concebido sempre como um distúrbio neurológico. Inicia-se aí o processo de "psicopatologização" no contexto escolar, ou seja, prévias hipóteses diagnósticas sobre a problemática da criança são formuladas pelo professor e repassadas aos pais, no momento em que se demanda tratamento para essas crianças. Processo que focaliza apenas a criança e sua "doença orgânica", e que, a partir desses primeiros encaminhamentos, irá se alastrar pelas clínicas médicas, psicológicas e psicopedagógicas.

Dentro de um modelo de atuação sempre calcado em ações isoladas e individuais, esses vários profissionais tentam - quase sempre, sem nenhum diálogo interdisciplinar -, diagnosticar, tratar, adequar a criança a seus contextos sociais, esquecendo-se, na maioria das vezes, de fazer um questionamento crítico acerca das condições que foram geradoras da queixa escolar que recaiu sobre esse sujeito. Adotam, dessa forma, um modelo de intervenção que incide a ação profissional sobre a criança da qual se tem uma queixa e ignoram a qualidade das relações sociais que a circundam. Em última instância, esquecem de se perguntarem sobre as condições de trabalho que o professor tem para realizar sua função e sobre as habilidades e competências, por ele construídas, para exercer a prática pedagógica. Questões que, certamente, interferem na tolerância do professor em relação aos "desvios" de seus alunos.

Assim, não se pondera criticamente, tampouco eticamente, o efeito nocivo desses diagnósticos e dessas intervenções descontextualizados quando estas se voltam para os sujeitos que estão em fase de conquista de suas singularidades. Uma vez que há uma homogeneização, a partir do ideário do déficit, para esses sujeitos, os quais desde, então, têm suas ações e intervenções no meio social interpretadas através desse crivo diagnóstico.

A prescrição da medicação também não é analisada sob esses aspectos. É cada vez mais comum a exigência da escola de que a criança diagnosticada com TDA/H, devido a sua agitação, só volte a freqüentar as aulas regularmente caso tome o medicamento que é indicado para o quadro. Trata-se do metilfenidato (Ritalina), que teria o efeito de potencializar os níveis de atenção e, com isso, diminuir os níveis de agitação motora da criança, tornando-a mais adequada.

Pesquisadores e médicos que em suas práticas clínicas aderem a essa "lógica medicamentosa", a qual, por sua vez, ancora-se em uma concepção naturalista/biológica do psiquismo humano, discorrem sobre as vantagens de se medicar essa problemática. A argumentação feita é a de que esses sujeitos (e suas famílias) podem experimentar um alívio ao saberem que são portadores de uma desordem biológica passível de tratamento, uma vez que essa visão descarta qualquer enfoque moral culpabilizante para os envolvidos.

No entanto, sabemos que esse discurso pode facilitar o descompromisso subjetivo dos pais e educadores diante da problemática da criança, pois "tudo" torna-se decorrente de uma desordem da química do cérebro que a medicação pode corrigir. Em nossa concepção, de fato, o caráter da culpa deve ser abolido, mas o caráter da responsabilização dos educadores adultos, nos impasses subjetivos da criança que se manifesta nessa sintomatologia, não deve, nem pode ser proscrito.

 

A intervenção em grupo com as crianças diagnosticadas com TDA/H e com seus pais2

Tendo por base essas questões e um posicionamento teórico-epistemológico crítico em relação à construção desse diagnóstico realizou-se uma intervenção em grupo com crianças, de 7 a 13 anos, diagnosticadas com TDA/H. De forma concomitante, foi feita, também, uma intervenção em grupo com os pais desses sujeitos.

As atividades propostas às crianças exigiam sempre ajuda mútua dos componentes do grupo. Assim, evidenciou-se, nesses sujeitos, dificuldades para apreender a noção subjetiva do espaço do outro e, consequentemente, de estabelecer uma comunicação dialógica ancorada na noção de alteridade. Diante desses impasses e como forma de expressão da angústia instaurada as dinâmicas grupais tornavam-se turbulentas e caóticas, pois, nesses momentos, os sujeitos utilizavam excessivas movimentações corporais, em detrimento de uma comunicação pela fala.

A criança com TDA/H, na medida em que tumultua o ambiente com a sua instabilidade motora e responde às demandas que recebe de forma inconsistente, começa a ser marcada pelos seguintes significantes: "desatenta", "inquieta", "avoada", etc. Reconhecendo-se, então, nesses significantes, ela vai sendo "empurrada" para uma posição subjetiva na qual fica cada vez mais difícil localizar e interrogar o desejo do Outro, fato que certamente aumenta suas dificuldades relacionais. Assim, a partir dos seus movimentos desordenados e da sua inconsistência para responder ao outro, a criança com esse diagnóstico, principalmente ao ingressar no sistema escolar, é considerada como um sujeito que não "tem limites".

A temática da ausência de limites é discutida por Castro (2001) que destaca as diferenças existentes sobre este tema, entre psicologia e psicanálise, estabelecidas a partir da diferenciação entre o pai real e a função paterna. Segundo o autor, é a introjeção dos cuidados maternos que permitirá à criança um auto – controle, uma canalização de seus prazeres e gozos primitivos. A participação do pai também é indispensável na incorporação desses limites primordiais, desse contorno subjetivo; pois ele deve se colocar como uma espécie de garante de que tais limites veiculados pelos cuidados maternos poderão ser, de fato, internalizados. Assim, "quanto mais esse processo tiver sido levado adiante, menos a necessidade de um controle externo haverá " (2001, p. 51).

Desse modo, o pai real para psicanálise teria a função de circular como um terceiro entre a relação mãe e bebê e, nesse sentido, já estaria cumprindo sua função simbólica. Operação essa que tem a função de apontar para a criança uma falta no posicionamento fálico materno. A mãe não pode ser toda para o filho, pois também é a mulher do pai, como indica Miller (1998). Assim, tal posição garantiria à criança uma subjetivação na qual podemos, então, falar de limites, de um contorno subjetivo que sustentaria o sujeito.

Para o discurso psicológico a reversão dessa problemática far-se-ia, então, por meio de um maior controle externo efetuado por um pai real, com mais autoridade para colocar os limites na criança que se apresenta como turbulenta e impulsiva. Já para a psicanálise tal problemática pode ser pensada a partir da noção de esfumamento do limite simbólico, que aponta para uma inconsistência no cumprimento de funções, tanto na esfera da função materna quanto da função paterna.

Assim, em relação ao grupo de pais, verificou-se, por exemplo, sem exceções, que nesses casais parentais, havia um aprisionamento da criança no desejo materno, em razão de uma opaca intervenção paterna na relação entre mãe e filho. Esse funcionamento, no entanto, não chegava a produzir como efeito a impossibilidade para o sujeito de alcançar o nível representacional do registro simbólico, que se articula através dos significantes, tendo como referência o significante do Nome-do-Pai. Todavia, pôde se verificar, junto às dinâmicas das crianças, que essa incursão é feita de forma tal que persiste um tamponamento da castração simbólica. Tamponamento que, por sua vez, irá se manifestar em uma postura perpassada pela impulsividade, movimentos corporais e produções do corpo que inviabilizam a tessitura a ser feita com significantes em torno do vazio da falta do Outro.

Desse modo, as modalidades de funcionamento dos grupos corroboram os outros atendimentos clínicos da pesquisa de Legnani (2003), a qual concebe a sintomatologia que comparece na sigla médica de TDA/H, não como decorrente de um déficit neurológico, mas como uma conseqüência de uma inscrição pouco efetiva da função paterna. Forma de inscrição dificultadora, então, de um contorno mais nítido para uma efetivação de uma estrutura psíquica ancorada no mecanismo do recalque.

Assim, a direção de tratamento estabelecida para o grupo das crianças, apostou na suplência da função simbólica para mediar os conflitos, de modo a assegurar um processual declínio da posição narcísica, capaz de sobrepujar o egocentrismo das esferas do pensamento e da linguagem que marcava esses sujeitos.

Ao término do ano, identificou-se que algumas famílias e crianças conseguiram se beneficiar dos efeitos terapêuticos dessas intervenções, os outros sujeitos foram encaminhados para outras modalidades de tratamentos clínicos existentes na clínica escola.

Em suma, o discurso médico - preso às noções de déficit, incapacidade, insuficiência - atém-se às disfunções da atenção, motricidade e aos problemas da esfera relacional para diagnosticar o TDA/H. A coleta de informações proposta pelo DSM IV (junto aos pais e/ou professor) acerca dessas disfunções mostra-se, na verdade, "nada operacional". Em primeiro lugar, em razão da posição subjetiva do respondente, por meio da qual as ações da criança são "descritas" para se enquadrarem aos critérios diagnósticos do TDA/H, assiduamente divulgados pela mídia. O adulto que responde já "espera" a ratificação do discurso médico de que a criança age daquela determinada forma porque seu cérebro apresenta disfunções. Em segundo lugar, pela própria dificuldade diagnóstica e terapêutica que transparece quando o sintoma é tomado como a doença. Encontramos, por exemplo, as mesmas disfunções relativas ao TDA/H em diferentes estruturas e posições subjetivas, como na psicose, autismo ou na debilidade. Essa lógica diagnóstica que enfatiza a função/disfunção e ignora o sujeito pode, portanto, diagnosticar a agitação psicomotora de uma criança psicótica como sendo a "doença hiperatividade".

Do ponto de vista da psicanálise, as funções psicológicas - inteligência, percepção, fala e motricidade - articulam-se e este funcionamento é um efeito da configuração subjetiva do sujeito. Nessa perspectiva, mediante um raciocínio teórico-clínico, pode-se, então, pensar a sintomatologia dessa sigla diagnóstica, que se manifesta nessas referidas funções, e, assim, compreendê-la como uma expressão de um funcionamento inconsciente que resulta de uma forma de subjetivação.

 

Referências bibliográficas:

BOGOCHVOL, A. (2001). Sobre a psicofarmacologia. In M. C. R. Magalhães, (Org.) Psicofarmacologia e Psicanálise. (pp. 35 - 61). São Paulo, SP. Ed. Escuta.

COLLARES, C.A. L. & Moysés, M. A.A. (1992). A história não contada dos problemas de aprendizagem. Caderno CEDES. n.º 28, 31- 47.

DSM. IV (1995). Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais. Porto Alegre, RS. Ed. Artes Médicas.

MILLER, J-A. (1998) A criança entre a mulher e a mãe. Opção Lacaniana . Revista Brasileira de Psicanálise, Vol. 21, 7-12.

WERNER JR, J. (1997). Transtornos Hipercinéticos: contribuições do trabalho de Vygotsky para reavaliar o significado. Tese de Doutorado. Unicamp, Campinas, SP .

CASTRO, S. de (2001) No Limite. A criança entre a mãe e a mulher. Curinga./ Escola Brasileira de Psicanálise – MG, nº 15/16, 43 – 57.

LEVIN, E. (1995). A clínica psicomotora: o corpo na linguagem. Petrópolis, RJ. Ed. Vozes.

LEGNANI, V. N. ( 2003) Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade: Um estudo psicanalítico. Tese de Doutorado, Instituto de Psicologia, UnB, Brasília, DF

ROHDE, L . A. & Ketzer, C. R. (1997). Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade. In N. Fichtner (Org.). Transtornos mentais da infância e da adolescência: um enfoque desenvolvimental.(pp. 106 - 119). Porto Alegre, RS. Ed. Artes Médicas.

 

 

1 Pesquisas atuais, em busca de uma explicação etiológica para essa problemática focalizam suas investigações no substrato neurobiológico do TDA/H. De acordo com Rodhe e Ketzer (1997), esses estudos sugerem alterações no córtex pré-frontal e/ou de suas projeções a estruturas subcorticais. Com os avanços dos estudos de neuroimagem investiga-se, também, a localização das alterações patofisiológicas, todavia, segundo os autores, os estudos não são concordantes no que dizem respeito às alterações observadas. Também investigam os neurotransmissores (dopamina e a noradrenalina) que estariam envolvidas nesse Transtorno , porém tais resultados precisam, ainda, de serem validados em outras pesquisas experimentais
2 Essas atividades foram realizadas, durante o ano de 2003, na clínica escola (CEFPA) do curso de Psicologia da Universidade Católica de Brasília, as quais, juntamente com outros atendimentos clínicos supervisionados, compuseram a coleta de dados da tese de Doutorado "Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperativiade: um estudo psicanalítico" de autoria de Viviane N. Legnani.
A intervenção com o grupo de crianças foi realizada pelas alunas de Estágio em Clínica Mariana Figueiró de Andrade , Raquel Cristina dos R. Cairus , Clarissa T. Kahn. Já o trabalho realizado com o grupo de pais foi feito pelas estagiárias Eliane Azevedo da Silva e Emily A. da Silva.