5Contribuições da psicanálise na abordagem das falas sintomáticas de crianças author indexsubject indexsearch form
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On-line ISBN 978-85-60944-06-4

An. 5 Col. LEPSI IP/FE-USP 2004

 

Amamentação x sofrimento materno: do encontro pleno ao encontro faltoso

 

 

Léa Maria Martins SalesI; Carolina Valério Barros; Volanda Gemma Moraes Sambes; Auzy Cleyce Martins da Costa; Marilena Barroso Sousa de MouraII; Ana Carla Silva Pereira; Márcia Amaral BonnaIII

IPsicanalista. Professora do Departamento de Psicologia Social e Escolar da Universidade Federal do Pará
IIGraduandas do Curso de Psicologia da Universidade Federal do Pará - UFPA
IIIAlunas do Curso de Formação do Psicólogo da Universidade da Amazônia. UNAMA-PA

 

 

Realizar um trabalho de promoção de saúde mental em uma instituição de saúde pública exige prudência e reflexão do profissional de psicologia posto que este não pode se limitar a analisar as questões psíquicas sem considerar as relações que estas guardam com as questões orgânicas e com o contexto sócio-cultural em que vive o paciente.

Este pensamento tem-se expandido a outros serviços de assistência psicológica. Aqui, reportaremo-nos especialmente a um serviço que tem como objetivo a atenção à maternidade.

O espaço de atuação do referido serviço é o Programa de Aleitamento Materno Exclusivo – PROAME – da Fundação Santa Casa de Misericórdia do Pará (FSCMPA), que cumpre uma ação nacional do Ministério da Saúde, a qual visa combater a desnutrição e diminuir a mortalidade infantil através da estimulação ao aleitamento materno exclusivo como fonte de nutrição do bebê até os seis meses de idade.

O programa, resultado de uma série de propostas que buscam resgatar o aleitamento como prático universal, possui um caráter sócio-político e econômico, já que com a criação da Iniciativa Hospital Amigo da Criança – IHAC – todo hospital que, no Brasil, carregar esse título, tem acréscimo de 10% no valor da sua receita.

A FSCMPA, credenciada como IHAC, tem a serviço de seu PROAME, uma equipe profissional composta por pediatras, nutricionista e técnicas de enfermagem. O programa não prevê o profissional da Psicologia. Este serviço é parte da execução do Projeto de Ensino, Pesquisa e Extensão "Mulher e Procriação" coordenado pela psicanalista Léa Martins Sales, desenvolvendo um trabalho de clínica-escola, que se propõe a: 1. pesquisar os fenômenos que entram em jogo no psiquismo das mulheres (e de seus companheiros) ao desejar – conceber, gestar, parir, criar ou perder – um filho e; 2. capacitar estagiários de psicologia na prática clinica.

Os objetivos do projeto, neste serviço, são preventivos, visando propiciar um espaço de escuta às mães, especialmente às que apresentam alguma dificuldade em exercer a maternagem1.

A clientela do PROAME é composta por mães e seus bebês de 0 a 06 meses, que devem cumprir alguns critérios de admissão, tais como: pré-natal e/ou parto realizado na instituição e peso do bebê, de no mínimo 2,000 kg. Tendo início ao atendimento com a primeira consulta pediátrica, na qual se buscam a história gestacional, histórico do parto e as condições ideais para o ato da amamentação, como, por exemplo, o formato do bico e a pega correta.

A prática desenvolvida no programa, sob o olhar médico, privilegia a saúde orgânica do bebê e, de certa forma, promove o seio a um representante da mãe. Ou seja, geralmente não são realizadas investigações mais detalhadas da história de vida da mulher ou mesmo da relação que está sendo construída com seu filho.

A idéia de supervalorização do seio e da amamentação tem denunciado certas lacunas existentes no programa, frutos da idealização da figura materna, na qual toda boa mãe deve expressar um desejo sem igual de amamentar. Assim, àquela mulher que não manifeste o desejo de amamentar, freqüentemente está reservada uma atitude repreensiva por parte da equipe.

Essa questão se torna mais complexa se pensarmos na mãe que esteja passando por dificuldades em investir afetivamente no bebê, posto que tal exigência pode desencadear um processo de culpa e de intensificação do seu sofrimento.

Através da escuta à cada mulher em particular, o serviço de Psicologia pôde constatar que, geralmente, as exigências de um PROAME não são (ou não podem) ser cumpridas por todas as mães que têm seus bebês atendidos por este programa. Nesse serviço, são freqüentes os relatos de desamparo, de abandono e até mesmo de miséria porque passam as mulheres. Estas questões sociais, essenciais para a compreensão da condição psíquica da mulher neste momento, também estão representadas pelo alto índice de gravidezes não-planejadas, pelo abandono por parte do companheiro, pela perda do emprego, por conseqüentes dificuldades de se prover após o nascimento do bebê, dentre outros. Imbricadas às questões sociais, estão as questões afetivas (dificuldades no relacionamento com o companheiro ou mesmo com a própria mãe) e orgânicas (incluem-se condições de saúde e alterações psicossomáticas como doenças sexualmente transmissíveis, enjôo, insônia, inapetência e/ou voracidade alimentar). É também importante ressaltar o próprio estado de desequilíbrio hormonal a que está sujeita a puérpera, assim como o próprio momento do pós-parto, que predispõe a mulher a distúrbios psiquiátricos.

As questões propriamente psíquicas que permeiam a maternidade foram cuidadosamente revistas por Sales (2003), no trabalho não publicado intitulado "Um estudo do psiquismo da mulher durante a gravidez e o puerpério: Revisão teórica e pesquisa clínica", a autora reune em uma revisão bibliográfica as contribuições que psiquiatras, especialmente os profissionais com formação em Psicanálise, têm apresentado para melhor esclarecer a etiologia dos fenômenos psíquicos. São conceitos e reflexões que, ao fornecerem bases teóricas consistentes, possibilitam a realização de um trabalho preventivo no período do puerpério.

Sales ressalta que "Esses autores... vêm concedendo ao fenômeno (fenômenos psíquicos que atuam sobre a mulher ao exercer a maternidade) um nome próprio e acrescentando fatores da ordem social, afetiva e inconsciente que vêm ajudando na elucidação de uma gênese para o problema..." (p.10).

A autora elucida conceitos de diversos autores e cita Stern (1997) e sua Constelação da Maternidade. Stern propõe o puerpério como uma nova organização psíquica, "... que se instalaria, de forma passageira e dependente das circunstâncias do momento." (p.15). Sales, ao realizar tal leitura, propôs uma reelaboração do referido conceito: "...um construto produzido para dar conta de uma grande variedade de fenômenos clínicos, quaisquer que sejam as inúmeras respostas que as mulheres dão ao ficarem grávidas e terem um bebê num determinado ambiente cultural." (p.15)

Stern realiza uma leitura social e antropológica das condições da maternidade nas sociedades contemporâneas. Estas inscrevem a maternidade em um contexto sócio-cultural ambivalente, no qual valorizam a maternidade de forma idealizada e criam, a partir das novas relações sociais, uma rede de desamparo jamais vista em épocas anteriores.

No nosso espaço de atuação, as questões psíquicas do puerpério emergem, geralmente, a partir de perdas (reais ou imaginárias) que sofrem as mulheres. Essas perdas podem desencadear um processo de depressão materna, observado nessa clínica pelo superinvestimento ou desinvestimento da mãe no bebê. Nessas situações extremas a mãe pode superinvestir através da atenção extremada ao bebê na qual apresenta preocupação constante que algo ruim ocorra com ele, ou a mãe desinveste do filho prestando os cuidados de higiene e alimentação não apresentando afeto nos cuidados dedicados ao bebê.

Reconhecida a existência dessas situações, torna-se imprescindível a inserção de um saber que priorize o discurso singular e que reconheça os conflitos envolvidos na procriação, assim como a fragilidade da mulher diante da maternidade. O saber da Psicanálise é o que melhor tem sustentado teoricamente o serviço de Psicologia, posto que permite à equipe de estagiários detectar precocemente o quanto das impossibilidades maternas podem estar interferindo na relação da mãe com seu bebê.

É provável, então, que os sofrimentos das mães, presentes no exercício da maternagem, estejam relacionados a certos sinais de desorganização psíquica e orgânica em seus bebês? Ora, é sabido que a teoria psicanalítica sustenta que as relações primárias entre mãe e bebê têm uma função estruturante e organizadora que opera no psiquismo deste bebê, sobretudo quando esta mãe, revestida na função de grande Outro é a instauradora, através dos cuidados e da linguagem, das insígnias do psiquismo nascente.

Lacan propõe que é a partir da alienação em um Outro que se dá a constituição de um sujeito, ou de uma unidade de corpo antes esfacelada. O encontro com o Outro, para um pequeno bebê, torna-o humano, posto que aquele o insere em toda uma ordem simbólica. E, para o pequeno, o grande Outro é a sua mãe – ou aquele que lhe ministra os cuidados.

A mãe ou o cuidador funciona como Matriz Simbólica ou o primeiro grande Outro. Lajonquière (1993) descreve que "O bebê "vê" sua imagem porque o olhar da mãe dá sustentação ao acontecimento. A criança "se vê" através dos olhos da mãe (...) Porém, o importante não é o olhar da mãe... mas o desejo da mãe, que faz as vezes de "matriz simbólica" sobre a qual se precipita, se atira, se debruça o infans." (p.168). No ato de amamentar – momento privilegiado e de profunda intimidade entre mãe e filho, em que há o toque, o aconchego, a fala e todas as possíveis formas de comunicação mãe-bebê – a mãe transmite ao bebê conteúdos psíquicos, transgeracionais e culturais. Ou seja, a mulher não fornece apenas o leite, mas realiza todo o investimento afetivo que dá sentido à existência da criança. No entanto, dar o seio vem, antes de tudo, de um desejo em amamentar, a imposição em fazê-lo não garante o investimento materno.

É necessário enfatizar que a problemática vem-se manifestar justamente quando esse desejo não é sentido pela mulher. A mãe dá o seio, mas não consegue, por inúmeros fatores extremamente particulares – e muitas vezes por ela não compreendidos, criar uma relação de vínculo com seu bebê.

Atuando neste primeiro momento em um espaço tão privilegiado como o programa de amamentação o estagiário de Psicologia procura realizar um trabalho de prevenção, no sentido de intervir nas primeiras relações da mãe com seu bebê.

No entanto, só se faz possível este trabalho de prevenção se se cria um espaço de valorização do psiquismo materno. É somente através da atenção ao discurso materno e da autorização da mãe, que se pode intervir na sua relação com o bebê.

Oferecer um espaço de escuta no qual a mãe possa falar sobre sua história é uma forma de ajudá-la a refletir sobre seu entorno sócio-familiar e sobre seus afetos, assim como sobre a importância de sua figura para a criança e todas as questões implicadas no ato de amamentar – muitas vezes, as dificuldades em amamentar denunciam uma impossibilidade de se doar àquela criança.

O serviço, que se propõe a ouvir a mulher sem cobrá-la ou julgá-la, é muito bem recebido por várias dessas mulheres, favorecendo uma oportunidade fundamental para que reflitam e permitam a elas mesmas ressignificar a relação com seu bebê.

Um ponto importante a ressaltar é que este trabalho tem tido reconhecimento pelo restante da equipe. Alguns dos profissionais participantes têm elaborado, cada um a seu tempo, um processo de desmistificação da figura materna, pensando na "mãe" como uma "mulher", que tem um nome, uma história e carrega várias possibilidades no exercício de amamentar e de cuidar do seu bebê.

Este processo é fundamental quando se pensa na importância que a palavra do pediatra tem – especialmente em um programa essencialmente médico – para a direção da conduta materna. Ou seja, a palavra médica toma uma importância indiscutível na organização familiar e, assim sendo, é necessário, para a Psicologia, contar com reconhecimento médico, posto que é, geralmente, através de sua indicação que uma puérpera tem a oportunidade de também ser atendida pelo serviço psicológico – fato que possibilita um maior número de inter-consultas.

É importante ressaltar que, após a exposição desses dados, somos inevitavelmente tomados por várias reflexões. Uma em especial é o valor que a Psicanálise atribui ao papel de mãe no contexto familiar. Este pressuposto, na verdade, nos apresenta uma posição ambivalente, pois, ao mesmo tempo em nos deixa abastecidos de teorias fundamentais para exercermos nosso trabalho, também nos faz pensar sobre a visão extremamente idealizada da figura materna construída pelo pensamento psicanalítico.

Assim, se o desamparo do nascimento é verdadeiro – e tão bem elaborado por Freud – pensamos que o desamparo da mulher, ao se confrontar com o filho real, é igualmente desafiador. A maternidade, algo tão miticamente construído, nada mais é do que a construção diária de uma relação de ódio e de profundo amor.

 

Referências bibliográficas:

LIMA, A.M.C., Santos, A., Sampaio, J., Amorim, M.S., Toscano, M.E & Leal, T.M. (2001). Amamentação obrigatória? Ouvindo mães e pediatras. In. M.C. Camarotti (org.). Atendimento ao Bebê: uma abordagem interdisciplinar (pp. 59-68). São Paulo, SP: Ed. Casa do Psicólogo.

LAJONQUIÈRE, L. (2000). De Piaget a Freud: para pensar as aprendizagens: (psico) pedagogia entre o conhecimento e o saber. Petrópolis, RJ: Ed Vozes.

SALES, L. (2003). Um estudo do psiquismo da mulher durante a gravidez e o puerpério: Revisão teórica e pesquisa clínica. Trabalho não publicado. Belém, PA.

WINNICOTT, D (1988). A mãe dedicada comum. In. Os Bebês e suas Mães (pp. 01-11) (J. Camargo, trad). São Paulo, SP: Ed Martins Fontes.

 

 

1 O conceito de maternagem aqui sugerido é o de mãe dedicada comum de Winnicott (1988), no qual "A mãe tem um tipo de identificação extremamente sofisticada com o bebê, na qual ela se sente muito identificada com ele, embora, naturalmente, permaneça adulta..." (p.09). Seriam os cuidados referentes não apenas à higiene corporal, ou mesmo à alimentação, mas a todo um trabalho de contorno que uma mãe pode realizar, primeiramente, no corpo de seu bebê, investindo e dando sentido a cada ação e movimento manifesto. A adaptação às necessidades do filho seria essencial nos primórdios da relação mãe-bebê, já que "O apoio do ego materno facilita a organização do ego do bebê. Com o tempo, o bebê torna-se capaz de firmar sua própria individualidade..." (p.09). Através desse processo, a mãe ou o cuidador, contribui para que o bebê, paulatinamente, saia do estado de dependência absoluta e possa tornar-se sujeito – um alguém fora do corpo materno.