6Abordagem da oralidade e da escrita na escola a partir da tessitura interdisciplinar entre a psicanálise e a lingüística author indexsubject indexsearch form
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On-line ISBN 978-85-60944-08-8

An 6 Col. LEPSI IP/FE-USP 2006

 

Psicanálise e universidade: a questão da filiação do analista1

 

 

Anna Carolina Lo Bianco

Tempo Freudiano Associação Psicanalítica; Programa de PG em Teoria Psicanalítica – UFRJ

 

 


RESUMO

O presente trabalho procura elaborar alguns pontos sobre as condições de transmissão da psicanálise — pensa que condições lhe são próprias e, ao mesmo tempo, compatíveis com seu modo de operar. Seguindo a palavra de Freud e de Lacan, considera que implicado nessa transmissão está o ato, que o analista não é sem fazê-lo, dirigido à filiação e, especificamente, à afiliação institucional. Trata-se de uma posição que não se vale apenas do saber "sabido" da universidade, mas exige trabalho frente ao enigma colocado pelo inconsciente.

Palavras chave: transmissão; ato analítico; afiliação; saber; inconsciente.


ABSTRACT

The present article tries to work through the conditions implied in the transmission of Psychoanalysis. It tries to identify the conditions akin to psychoanalysis and its own operating process. Following Freud and Lacan, it considers that the analyst cannot become one without the analytic act of affiliation, particularly to a psychoanalytic institution. This position does not depend in acquired knowledge at the university context but in the work developed once one is faced with the unconscious enigma.

Keywords: transmission; analytic act; afilliation; knowledge; unconscious.


 

 

O presente trabalho procura elaborar alguns pontos sobre as condições de transmissão da psicanálise — procura pensar que condições lhe são próprias e, ao mesmo tempo, compatíveis com seu modo de operar. Nossa questão é dada por um movimento que acompanhamos no cotidiano daqueles que se decidem a tomar a via da psicanálise e da clínica psicanalítica. Com freqüência, ao tomarem a decisão de seguir o trabalho com a psicanálise, fazem uma escolha pela via da especialização ou da pós-graduação universitárias. É comum escutarmos que no início de um tal trabalho, é preferível que esteja uma aproximação teórico-conceitual (ou mesmo prática), desenvolvida e, antes de tudo, avalisada pelos cursos na universidade.

Chama a atenção aqui a presença do significante escolha. Centrados nele, poderemos ver que lugar será dado ou retirado à psicanálise, quando entramos nela pela porta universitária (Rocha, 2006). Nosso percurso no presente artigo, afastando-se de uma resposta imediata a essa questão, irá reencontrá-la quando, seguindo a palavra de Freud e de Lacan, nos depararmos com o que está implicado na transmissão psicanalítica: o ato, que o analista não é sem fazê-lo, dirigido à filiação e, especificamente, à afiliação institucional. Temos aí uma porta que não é aberta pelo saber, mas pelo trabalho que nos é exigido pelo enigma colocado pelo inconsciente.

Partimos do exame do texto freudiano "Moisés e o Monoteísmo" (1938), e, mais do que do texto, da pergunta intrigante para Freud sobre como explicar a força da tradição judaica difundida através dos séculos.

Para responder a essa pergunta, Freud irá forjar a saga de Moisés, desde seu nascimento, desde sua denominação até as suas realizações e sua morte. Construirá a vida de Moisés para ver nela as condições da transmissão da fé e da cultura judaicas ao longo dos séculos. É importante acompanharmos nessa construção as conseqüências tiradas então por Freud. Enfatizamos esse ponto, porque se o "Moisés e o monoteísmo" é lido pela via da comprovação das conjecturas históricas, ou se se procura uma validação positiva das asserções freudianas, vai-se sempre esbarrar na querela do verdadeiro versus o falso e, então, não estamos mais na verdade de que se trata para a psicanálise. Muito pelo contrário, Lacan (1953/1998) enfatiza, quando se trata de verdade não se trata de realidade, trata-se de uma operação com a história, no que ela constitui, no que ela circunscreve, uma emergência da verdade no real.

Então, vemos Freud, em primeiro lugar, restituindo ao nome de Moisés uma origem egípcia e há quem afirme que esse é o único fato comprovado de que se tem referência no texto freudiano (Melman, 1998). No entanto, como dissemos, o relevante do ponto de vista da psicanálise, não é que seja ou não um fato comprovado, mas acima de tudo que Freud, ao concluir que o nome Moisés vem do léxico egípcio, passe a extrair dele as suas conseqüências, passe, a partir daí, a inscrever um trabalho tirando as conclusões sobre a linhagem de Moisés.

A história de Moisés, segundo o relato de Freud, é bastante conhecida e não precisamos segui-la aqui com detalhes. É preciso apenas ressaltar alguns pontos que nos permitam avançar nas conclusões extraídas por ele ao afirmar a força da transmissão na religião mosaica.

Podemos dizer que Freud toma a origem egípcia do nome Moisés como um traço a partir do qual afirma que se o nome era egípcio, Moisés também o era — havia nascido em uma família egípcia e provavelmente tornara-se um alto sacerdote que transmitira aos judeus no Egito sua própria religião egípcia. Essa sua religião, havia vigorado pelo tempo do reinado de Akenaton e, ao contrário da religião que comumente se difundira, excluía a magia, o mítico e a feitiçaria comuns às crenças politeístas. Era uma religião que se centrava num monoteísmo rigoroso que coincide com o que se tornaria o monoteísmo judaico.

O trabalho freudiano se assenta nisso que considera um "romance histórico" para reconhecer em Moisés a ambição incontida, severa e implacável que seria responsável pela revolta do povo que acaba por assassiná-lo. E, nesse mesmo ponto, reconhece também que depois do assassinato e de seu desmentido ressurge a tradição grande e poderosa que alimenta a transmissão duradoura dos ensinamentos desse estrangeiro que foi Moisés.

É curioso seguir, então, o que Freud encontra na transmissão de uma tradição persistente e antiga como a tradição judaica. Ele diz que essa tradição é transmitida através de gerações, sempre com seu conteúdo essencial intacto. Tal conteúdo não muda sequer frente às transcrições que em dado momento se fazem dela, e, persistem até mesmo a despeito da historiografia oficial. Freud vê aí a força de uma tradição herdada diferente de uma tradição que se comunica entre gerações. Essa tradição herdada não depende de uma comunicação direta, nem da influência da educação.

Nossa tentativa é ver nas conclusões sustentadas por Freud acerca do trauma do assassinato de Moisés e na derivação rematida ao trauma — a de uma tradição cuja força se estende por séculos —, o que foi chamado do "ato de Freud" (Harly, 2002). Um ato que, podemos dizer do ponto de vista da psicanálise, funda um real para a tradição judaica. — Se examinamos a construção freudiana, nos deparamos com uma operação que tem como efeito a circunscrição de um real que está na base da tradição judaica. Esse real emerge no movimento mesmo em que Freud identifica um trauma posteriormente desmentido e procura relacioná-lo com a tradição veiculadora de um deus mosaico. Trata-se, na operação freudiana, de uma operação que ao mesmo tempo instaura um sentido para a tradição judaica e funda o real que a sustenta.

Para valorizar esse ato de Freud, no entanto, é preciso fazer um breve percurso passando pelo que está envolvido na relação entre trauma, tradição e transmissão, e posteriormente ver como se pode considerar a resposta do analista frente ao que é para ser feito, se se trata de operar com a psicanálise.

Como dissemos, Freud em relação à tradição judaica opõe a uma tradição comunicada uma tradição herdada, e fala de uns caracteres que, sendo certamente herdados, são de difícil apreensão. Lança mão então da idéia de uma "herança filogenética". Esses eram seus meios disponíveis para pensar a transmissão!

É preciso aqui recorrer a Lacan (1969/1970) no comentário ao texto freudiano: "Moisés foi o cúmulo dos cúmulos", justamente porque Freud recorre a essa transmissão via cromossomas. Lacan, ao contrário, irá valorizar nesse ponto o enigma colocado pelo trauma — lugar fundamental para nele inscrever a questão da transmissão que lhe permite enunciar de maneira "definitiva e rigorosa a posição do analista" (p.108).

O trauma é indicado pelo momento no qual a cadeia significante ou a operação de significantização se estanca; há algo nele que se repete pelo impossível de ser transmitido — Lacan o exprime com a idéia de que nele algo não cessa de não se escrever. Há ali uma descontinuidade na cadeia fazendo obstáculo a uma transmissão direta, que possa dar conta daquilo que constitui esse trauma.

O que passa a estar em jogo, como vimos, é da ordem de um enigma. Lacan (1969/1970) se refere ao mito de Édipo, justamente um mito, para ver o que pode ser articulado a partir do enigma e do que ele traz de impossibilidade acerca do dizer. Édipo paga caro porque não se submete ao enigma colocado pela esfinge, i.e porque não o toma como enigma. Respondendo ao enigma, suprimindo o suspense, suspende a questão da verdade. "Cai na armadilha da verdade", diz Lacan, quando acredita poder escolher o lugar a ser tomado frente ao enigma com que se defronta (p.113). Dessa forma, com o mito, Lacan mostra como Édipo não pode tomar lugar numa cadeia de transmissão, ele não se torna rei pela via da sucessão, mas por uma escolha — uma escolha orientada, além disso, pelo saber. Ainda, não ocupando o lugar do filho ele não conhece a função do pai. E, justamente, o pai é aquele que não sabe nada da verdade. Esse não saber nada da verdade é correlato da castração. O pai é agente da castração, vale dizer, ele, como pai frente ao filho, transmite essa relação de não saber com a verdade, transmite a castração. Édipo, não reconhecendo que é "indispensável para a vida que alguma coisa irredutível não saiba", se entrega à busca do saber e com isso crê ser dono de seu destino. Só mais tarde irá se confrontar com a castração que tenta evadir ao elucidar o enigma.

Podemos, agora, retornar à questão inicialmente colocada acerca da transmissão da psicanálise e ao que o analista tem a fazer com relação a ela. Sendo psicanalistas e, ao mesmo tempo, ensinando a psicanálise na universidade, não podemos fugir à responsabilidade de levantar o problema do que está em questão quando alguém acredita poder escolher — ao tomar a via do trabalho com a psicanálise —, se aproximar dela através do saber universitário.

O que encontramos, na maior parte das vezes, são pessoas que se deparando com o significante psicanálise são arrebatadas pelo que ele porta de enigma, de estranho, que remete ao não saber do inconsciente. No entanto, ao se depararem com isso que é da ordem do irredutível, o movimento, de imediato, como aliás é muito humano e muito atual, é recuperá-lo através de um saber. É quando, então, procuram os cursos universitários. Aliás, isso se repara não só naqueles que recém estão chegando a constatar o desejo de se tornarem psicanalistas, mas também com muitos que estão na prática há alguns anos e procuram a universidade para "sistematizar" (como inúmeras vezes ouvimos) o saber que os orienta. Poderíamos perguntar se não há aí, muitas vezes, o intuito de fazer esse saber que ficava sob a barra quando estavam trabalhando, passar ao lugar do agente de seu trabalho.

Pensamos ser importante usar as consideraçõs feitas sobre a tradição judaica para, interrogarmos o que acredita escolher um analista ao se decidir por uma formação na universidade. Perguntamos, então, se ele não se economiza de seu ato quando, ao evadir o confronto com o enigma, recorre à promessa de um aperfeiçoamento do saber. Estando na universidade, não podemos deixar de nos perguntar se, ao contrário, àquele que se confronta com essa falta referente à castração, o único caminho não seria o ato de filiação que lhe garantiria que a resposta será o trabalho com a psicanálise.

Retomando o exposto sobre o povo judeu, observarmos sua posição em relação aos ensinamentos deixados por Moisés — esse estrangeiro do qual ele não descende naturalmente — para ocupar um lugar na cadeia de transmissão, conquistando para si o que havia sido herdado das realizações e crenças mosaicas.

Desse caso que apaixona Freud extraímos uma conclusão: resta para aquele decidido a trilhar o caminho da análise, ao se confrontar com a falta, com o não saber inconsciente, seu ato. Responsabilizar-se por encontrar seu lugar numa cadeia de trabalho, de um trabalho desde sempre perdido — que nunca chegará a saber.

Não se trata, portanto, de escolha, mas de sustentar uma cadeia de transmissão com esse trabalho realizado com o legado de Freud, Lacan e alguns outros que nos deixam um ensino —, por isso dizíamos no começo que a transmissão da psicanálise põe em jogo a filiação do analista. Quanto a esta filiação ser uma afiliação institucional, trata-se de seguir a observação freudiana fundamental: não pode haver transferência in efigie ou in absentia.

 

Referências

FREUD, S. (1938) — Moisés y la Religion monoteísta. Em Sigmund Freud Obras Completas. Bs.As: Amorrortu,1990

HARLY, A. (2002) Le Moïse, un acte freudien. In www.freud-lacan.com. Site da Association freudienne internacionale. Consultado em agosto de 2002.

LACAN,J. (1998) Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. Escritos. Rio:J.Zahar, originalmente publicado em 1953.

LACAN, J. (1969/1970) — Le Séminaire. Livre XVII. L’envers de la psychanalyse. Paris:Seuil, 1991.

MELMAN, C. (1998) — Le Complexe de Moïse. Bulletin de l’Association freudienne internacionale, n.78, pp. 13-15.

ROCHA, A.C. (2006) — Apresentação no Colóquio O Trabalho do significante: o nome, a imagem, o objeto. Rio:Tempo Freudiano Associação Psicanalítica.

SBANO, V. (2004).— Psicanálise nas universidades. Tese de Doutorado. Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica. UFRJ.

 

 

1 Uma versão falada do presente texto foi apresentado no VI Colóquio do LEPSI -USP 16 a 18 de novembro de 2006.