6Abordagem da oralidade e da escrita na escola a partir da tessitura interdisciplinar entre a psicanálise e a lingüísticaWhat is transmitted in the psychoanalytical clinic: clinical monographs as a literary expression? author indexsubject indexsearch form
Home Pagealphabetic event listing  




On-line ISBN 978-85-60944-08-8

An 6 Col. LEPSI IP/FE-USP 2006

 

De um ensino da psicanálise ao balanço da transmissão

 

From teaching psychoanalysis to an assessment of transmission

 

 

Leandro de Lajonquière

 

 


RESUMO

O texto problematiza a distinção entre ensino e transmissão para, dessa forma, detalhar um balanço de um ensino particular da psicanálise na Universidade de São Paulo endereçado a educadores em formação.


ABSTRACT

The text questions the distinction between teaching and transmission in order to detail an assessment of a particular psychoanalysis teaching addressed to educators in their educational years at Universidade de São Paulo.


 

 

Quando tomei conhecimento do título da mesa da qual deveria participar – "Psicanálise, Infância e Educação: balanço de uma transmissão"-, perguntei-me até que ponto seria pertinente fazer um balanço destes meus anos de trabalho nos termos de uma transmissão. É certo que, há mais de dez anos, dedico-me ao ensino da psicanálise na universidade ou, como tenho repetido ultimamente, ao ensino de algo da experiência e da invenção freudiana na universidade. Assim, não via na ocasião – como não vejo ainda – reparo algum em fazer um balanço de meu ensino. No entanto, não estava certo de que seria possível fazer um balanço da transmissão. Hoje estou persuadido que esse balanço deveria ser feito por cada um daqueles que há anos me acompanham, ou seja, por cada um que empresta suas orelhas para eu falar no interior da universidade. Nesse mesmo sentido, cabe a mim mesmo fazer o balanço daquilo que eu considero transmitido por outros a mim. De certa forma, esse balanço do a mim transmitido é refeito, uma e outra vez, em ato no meu ensino.

***

Por que lembrar que falo na universidade? Porque não concordo em absoluto com as objeções feitas no interior do movimento psicanalítico à possibilidade de um analista ensinar algo da psicanálise na universidade. Pensa-se, comumente, que essa operação traz riscos, ora para a própria psicanálise, ora para os ouvintes.

No entanto, a psicanálise sai revigorada do embate com outros saberes. Não tanto porque ela incorpore "verdades outras" ou outras teses no seu interior, mas porque o confronto sempre implica num próprio rearranjo interno. Riscos de deturpação da psicanálise? Muitos pensam - equivocadamente - que a suposta pureza da psicanálise deve ser guardada por associações constituídas a esse fim. Este caminho conduz à religião e, portanto, vai à direção oposta da esperança freudiana. Uma coisa é reunir-se numa associação de trabalho e, uma outra, juntar-se para zelar pela suposta virgindade do quer que seja. Freud esperava que o confronto com a diferença revigorasse a psicanálise (em particular a diferença com a educação: ver a carta de Freud à Pfister de 09/02/1909), bem como não colocava reservas em que os analistas falassem dela a quem quisesse ouvir.

Em Sobre o ensino da psicanálise nas universidades (1918) Freud assinalou, dentre outras, duas coisas interessantes: por um lado, se a psicanálise não estava presente nas universidades isso obedecia às resistências "acadêmicas" e, por outro, o ensino da mesma nas universidades no mínimo possibilita aos ouvintes aprenderem "algo" da psicanálise. Para Freud isso era, em principio, suficiente, pois esse "algo" depois faria, no tempo, a sua parte pestilenta na história.

Riscos para os ouvintes? Temor também religioso, pois se trata de pensar em termos da necessidade de se proteger alguma outra virgindade. Que senhoras pedagogas temam pela integridade de "suas meninas", não me surpreende! Mas, semelhante gesto aparece - infelizmente - disfarçado na conhecida sentença proferida por não poucos analistas sobre a suposta fraqueza de entendimento dos ouvintes universitários de plantão.

***

Por que lembrar que falo a educadores? Para não esquecermos de que a psicanálise é uma só, de que não há uma psicanálise para analistas, uma outra para educadores, outra para os quitandeiros e assim por diante. Falar aos educadores no intuito de aperfeiçoá-los? No intuito de melhorar o desempenho deles? Não. Nada de objetivos mais ou menos louváveis. O louvor é a outra cara da virgindade. Simplesmente porque falar a educadores me possibilita desdobrar minha transferência à educação e à psicanálise, interrogar aquilo que "se passa" entre velhos e baixinhos, interrogar a própria teoria psicanalítica, bem como voltar sobre isso que restou de minhas análises. Ensinar algo da psicanálise aos educadores é – para mim - uma bela oportunidade para me achar aí onde não me procuro. Não lembro a referência, mas certa vez li uma afirmação de Lacan, no sentido de que era nos seus seminários onde a sua análise continuava. Em suma, a razão de meu ensino não é para nada altruísta e isso não é, justamente, sem conseqüências. Boas? Más? Não, simplesmente, efeitos imprevisíveis.

***

Por que frisar que ensino algo da psicanálise? Por diversas razões.

Primeiro, porque é impossível ensinar toda a psicanálise, assim como é impossível ensinar toda a matemática. Mostramos sempre uma parte. Porém, isso não impede de que essa parte implique em toda a inteligência psicanalítica ou matemática. Assim sendo, todo aprendiz que faz sua uma parte, bem pode se apoderar de qualquer uma outra, pois o todo está na parte.

Segundo, porque estou ciente do debate em torno da distinção entre o ensino da teoria e a análise pessoal. A psicanálise é vivificada pelo ensino da teoria uma e outra vez interrogada, bem como pelo acontecimento das análises pessoais. Se qualquer um desses elementos viesse a desaparecer, então, cessaria a combinação que dá vida à psicanálise.

Terceiro, porque o detalhamento do ensino escapa a uma determinação exaustiva. Bem posso até certo ponto relatar os tópicos desenvolvidos numa ou outra ocasião. Mas como inventariar tudo aquilo que ensinamos além do que mostramos? Tem de fato um "algo" que escorrega ou se desloca na contabilidade do ensino, no balanço. Eis aí, precisamente, que ganha relevo o termo transmissão.

***

A psicanálise ensina-se? Sim e não, tudo depende. E se a mesma pergunta fosse feita sobre as matemáticas? Ela também mereceria ambas as respostas.

Ensinar é mostrar, é dar a ver e a ouvir a um outro. Os números e as operações ensinam-se, ou seja, alguém os coloca à mostra, ao alcance de outros. Mas a amostra não é o mundo vivo da matemática. Ela sozinha não faz série, assim como uma andorinha não faz verão. As matemáticas se escrevem e o fato de escrevê-las, embora possa ser ensinado, ser mostrado, nada diz da transmissão da matemática como experiência, ou seja, de que aquele ainda não iniciado no assunto passe também a dar vida aos números e aos símbolos por ele vistos, assim como o primeiro o faz. O mesmo ocorre com a psicanálise e seus textos dados à leitura.

A transmissão é a passagem de algo de um lado a um outro. Por exemplo, o vagar dos vírus de um lado ao outro, dá lugar a doenças contagiosas. Já os números e os símbolos são como as marionetes, pois precisam que lhes demos vida. O start da vida no campo da linguagem é dado pela palavra. Por isso, todo aquele que professe a matemática – mesmo o mais silencioso, carrancudo e solitário – fala enquanto enche o quadro da sala de aulas; fala tanto para seus não iniciados quanto para os números, as letras e os símbolos ainda por vir. É o fazer do matemático entorno da voz quem detém o poder de contagiar além de todo contato. É como se o vírus da matemática pulasse do umbigo dessa voz e, num instante antes de perecer por estar fora de seu meio, fosse pego numa outra colônia. Mas, é como se... trata-se de uma metáfora, pois parece não haver de fato o vírus da matemática, assim como, apesar de a psicanálise ser uma peste, também não há vírus psicanalíticos vagando pelos ares.

A história fica mais interessante se pensarmos que na transmissão nada passa de um lado ao outro apesar de assim parecer-lho. Freud gostava de lembrar: "deves adquirir aquilo que herdas". Isto é, o não iniciado nada recebe sem se implicar. Eis aí o osso paradoxal duro de roer, esqueleto de toda transmissão: dever pagar por aquilo que não pode não ser dado.

Ao não iniciado lhe é dada a oportunidade de vir a tê-la, mas não a experiência matemática em si mesma. Esta reclama ser refeita do outro lado da fronteira. Se ela não é refeita, fim da historia e não há ninguém para contá-la, ensiná-la, por mais uma vez. Se ao contrário, a história vingar, haverá mais um na linha de transmissão para assim acrescentar mais um ponto ao conto, mas isso, não só, se sabe depois, quanto só vem a ser de fato no só depois. Nada mais oportuno que parafrasear Clément Rosset: aquilo que chamamos transmissão é o resultado do encontro entre o acaso e faculdade de durar.

Do umbigo da voz daquele que ensina, abre-se a possibilidade de uma transmissão. Ensino e transmissão se implicam. Caso contrário, o ensino do quer que seja é letra morta. Por outro lado, sem ensino, não há possibilidade alguma de transmissão. Desse ponto de fuga do ensino, chega ao discípulo o desafio: "decifra-me ou te devoro". Ou seja, não se trata de nenhum sentido que se transmite de um lado ao outro. O receptor recebe do emissor simplesmente uma perturbação ou se preferirmos uma mensagem incômoda que o lança à conquista daquilo suposto (lhe) dizer (respeito). Por sinal, esta experiência onde as explicações faltam é, no limite, aquela do encontro entre o Édipo e a (sua) esfinge e, portanto, trata-se da mesmíssima experiência da análise lançada pela embreagem de um "diga que lhe escuto".

Nesse sentido, não temos que estranhar que o ensino da psicanálise instale a possibilidade de empurrar aquele que dele se beneficia para o divã. Mas também que o ensino – embora sem louvor – tenha um toque de distinção.

***

No curso de formação de pedagogos na USP as disciplinas ditas "metodologia do ensino" são quase onipresentes no curso (Cf. Ana Carolina C. S de Camargo. Educar: uma questão metodológica? Petrópolis: Vozes, 2006). O establishment pedagógico propala que o segredo da formação do educador está na sua capacidade de reflexão sobre a prática com vistas a seu aperfeiçoamento técnico. Portanto, nada a ver com colocar em questão a própria implicação na formação, à transferência à educação de crianças e jovens.

É nesse contexto, então, que algumas aulas após ter começado a narração da invenção freudiana da psicanálise, um aluno sempre me pergunta: Isto como se aplica na sala de aula? Ou, a psicanálise para que serve então? Às vezes, respondo sem mais comentários: servir? Pois para nada! Em outras, aproveito para discorrer sobre a paixão instrumental que toma conta dos tempos contemporâneos. Por vezes, julgo o momento oportuno para assinalar que já se pensou que a utilidade da psicanálise era ensinar aos futuros educadores os ditos "estágios de desenvolvimento da libido" para assim eles poderem identificar possibilidades sublimatórias ou inibições entre as crianças.

O ensino da psicanálise ou do quer que seja bem pode ser letra morta. No entanto, se algum efeito formativo as ditas aulas de psicanálise podem vir a ter, isso é função do imponderável no seio da transmissão, da colocação em ato de um saber que não se sabe. A minha forma de endereçar a palavra aos alunos não é modelo de nada. Simplesmente objetivo redobrar o retorno do recalcado no processo formativo padrão.

Na FEUSP, não poucos consideram que os jovens devem estar persuadidos da utilidade dos conteúdos a serem ministrados no curso, bem como que deveríamos tornar nossas aulas "significativas" para que nossos alunos possam aprender suficientemente motivados. Por outro lado, dá-se por descontado que "dar uma aula" é explicar textos de uma lista bibliográfica. A crença na harmonia comunicativa entre o adulto e a criança – a ilusão (psico)pedagógica – reinscreve-se no nível professor-jovem em formação (Cf. Infância e Ilusão (psico)Pedagógica. Petrópolis: Vozes, 1999)

No entanto, compartilho a idéia de que além dos muitos comentários e considerações que um analista possa fazer no decorrer da cura, bem como das ocasionais interpretações que possam surgir, sempre há um "algo" que resta à simbolização psíquica e que, portanto, reclama um outro manejo da transferência. Nesse sentido, considero que também no decorrer da docência há situações que requerem do professor "algo a mais" ou "algo a menos" que o clássico blá-blá-blá.

Dessa forma, com vistas a possibilitar a abertura de algum interrogante no que tange à implicação subjetiva do aluno no seu processo de formação, às vezes falo demais, outras guardo silêncio, narro alguma lembrança pessoal da época de minha formação, lembro um comentário que alguém fizera em anos anteriores, ou recupero uma das dúvidas já apresentadas na mesma aula e aprofundo algum aspecto da teoria psicanalítica. Outras vezes, simplesmente, narro novamente algum episódio da saga inventiva do próprio Freud. Seja o quê for não viso ao ensino de forma clara e distinta de noções da teoria psicanalítica. Assim, esse "resto" no entendimento ou esse ruído na comunicação faz um "furo" na linha do horizonte da enunciação para, então, retornar na forma de uma pergunta: o que quer mim esse aí que assim me fala? Peça chave ainda a redobrar, mas sem a qual o jovem nunca poderá colocar em questão sua implicação na formação.

A duração padrão das aulas na faculdade é de quatro horas. Pessoalmente, na primeira parte, tenho optado por desenvolver de forma expositiva um tema. Na segunda parte, os alunos podem perguntar e comentar tudo aquilo que lhes vier à cabeça. Neste segundo momento da aula, nunca deixo de comentar – nem que seja com uma piada – nenhuma das questões colocadas, estejam ou não em relação direta com o conteúdo de aula. No decorrer das aulas, não “explico” os textos da bibliografia, nem peço para os alunos tomarem notas. Embora a disciplina seja obrigatória, não há chamada. Só peço ao aluno que me empreste suas orelhas. Eu simplesmente discorro, sem notas sobre um tema e sem me furtar à comunicação de conteúdos subitamente retornados. Às vezes, alguma palavra em espanhol ou em francês vem no lugar de uma portuguesa. Tem vezes que traduzo. Outras, não. Como disse, viso à quebra da mesmice e, para tanto, não duvido em tirar proveito da minha condição de estrangeiro. Não duvido, mais ainda, em reduplicar a estrangeirice: uma voz estrangeira a falar da invenção de uma teoria que, por sua vez, vem nos lembrar de quão estrangeiros somos a nós mesmos.

Após tantos anos, creio que esse jogo de reduplicações entre o familiar e o estrangeiro, encenado nas aulas, joga um papel singular na experiência vivida tanto pelos alunos quanto por mim. Certa vez, uma ex-aluna, que voltara a escutar voluntariamente as aulas após ter se graduado há tempo, comentou: tinha esquecido como sua fala eleva a temperatura da sala e faz transpirar o auditório. Lembrei imediatamente, nessa ocasião, do comentário de Freud feito em 1914 quando do discurso de saudação pelo qüinquagésimo aniversário do liceu que freqüentou quando jovem. Nessa oportunidade, Freud comentou que, quando aluno, o interesse pelas ciências não derivava da lógica dos conhecimentos expostos do professor, mas que estava atrelado a "algo" da personalidade deste que o embaraçava.

Justamente, é desse "algo" – chamado castração – do qual aquele que professa o quer que seja tem que dar testemunho a seus discípulos. É disso que o discurso tecnicista na pedagogia nada quer saber. Assim sendo, no ensino de algo da psicanálise , aposto no desdobramento dos contornos de uma experiência, em certo sentido, nada formativa, mas daquela de me acompanhar, aula após aula, na experiência de dar singular testemunho de como na transmissão, no amor e no poder "algo" inesperadamente foge, perde-se, para reaparecer estranhamente sempre outro.