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On-line ISBN 978-85-60944-08-8

An 6 Col. LEPSI IP/FE-USP 2006

 

O que se transmite na clínica psicanalítica: monografias clínicas como gênero literário

 

What is transmitted in the psychoanalytical clinic: clinical monographs as a literary expression?

 

 

Angela Vorcaro*

Psicanalista da Association Freudienne Internationale. Professora Doutora do Instituto de Psicologia da UFMG. E-mail- angelavorcaro@uol.com.br

 

 


RESUMO

O método psicanalítico não eqüivale às balizas técnicas explicitamente formuladas sobre a técnica. Este fato inaugura a possibilidade de constituir outra modalidade metodológica, própria à clínica das psicopatologias, e há muito tempo perseguida pela psiquiatria clássica, referida ao trilhamento e à transmissão da prática através da transposição da experiência para o registro da escrita, por meio das chamadas monografias clínicas. Diferentemente dos psiquiatras clássicos, preocupados demais com a generalização classificatória que apagava as monografias produzidas, a modalidade metodológica que Freud fez vigorar preserva a manifestação singular tanto do paciente quanto do ato clínico, limitando a possibilidade de redução do método clínico à técnica que tornaria o objeto universalizável e passível de aplicabilidade.
Mas podemos desdobrar a função das monografias, forçando-as a dizer melhor, esclarecidas pelo que veio depois. As monografias psiquiátricas e psicanalíticas quando tomadas como gênero literário permitem destacar a sua função imprescindível na constituição do saber psiquiátrico e do método psicanalítico. Mas cabem, sobre elas, muitas questões: Quem é o autor dessas monografias? O que se transmite do método clínico por essa via escrita? A monografia pode ser considerada um gênero literário?


ABSTRACT

The psychoanalytical method is not equivalent to the technical references clearly formulated about the technique. This fact inaugurates the possibility of constituting another methodological model, specific for the clinic of psychopathologies, and that has been chased by the classic psychiatry, referred to the trail and to the transmission of the practice through the transposition of the experience to the writing register, by means of the so called clinical monographs. Differently from classic psychiatrists, too worried about the classificatory generalization that erased the monographs produced, the methodological model that Freud strengthened preserves the singular manifestation of the patient and the clinical act, putting limits to the possibility of a reduction of the clinical method to a technique which would make the object universal and possibly applicable.
But it is possible to extend the function of the monographs, by forcing them to express better, clarified by what came afterwards. But many questions are made to them: Who is the author of the monographs? What is transmitted about the clinical method by these writings? The monograph can be considered a literary expression?


 

 

Monografia clínica: um gênero literário?

Freud e Lacan, para teorizar sobre a psicose não puderam prescindir de casos em que a psicose se apresentava no registro da escrita: Schreber, Aimée e Joyce o testemunham. Interessa portanto perguntar se seria necessário que a letra se apresentasse por escrito para permitir articular teoricamente sobre o sujeito que a produz.

Talvez, só a materialidade do escrito, ou talvez sua estabilidade, permita flagrar e recolher-lhe a letra, este traço do vão que pulsa, rasgando ou plissando o texto, atravessando a consistência do sentido que o suporta. Afinal, indagar a psicopatologia implica localizar esta descontinuidade, tomá-la como enigma, aventar-lhe lógica, incluindo-o, tomando-o como elemento de análise. Enfim, trata-se de atribuir dignidade de objeto de investigação ao que comparece como sem sentido.

Disso, a literatura nos oferece incríveis testemunhos. É o que Lúcia Castello Branco1 nos lembra:

<< quando quem fala é o objeto – ou o sujeito deposto por seu des-ser, tomado em sua queda [...] o que se passa na cena da escritura não se oferece assim tão facilmente à decifração.>>2.

Assim, na <<força elíptica>> de Dickinson, os travessões suspendem o sentido, imprimindo fragmentação e, portanto, ritmo espasmódico em que o leitor tropeça, derrapando em recuos e avanços. Força da lacuna e do espasmo ritmado contraposta ao dito, que impõe silêncio ao que se extrai e se apresenta como resto. Trata-se da fala da obra que apaga quem escreve, rumo ao <<ponto branco da escrita>>, um <<nada>> que se transpôs à escrita e se fez legível.

Enfim, talvez se possa conjecturar que, nesta autora, a barra do travessão testemunhe a localização da inconsistência e da impossibilidade da linguagem. O travessão permitiria testemunhar, com a língua, o rastro do pas-de-sens que cerze e dilacera o sentido.

A escrita de Joyce, também obriga o leitor ao trabalho contínuo [work in progress] de chacoalhar cada palavra, cada frase observando o que, de sua palavra grávida e vulgar [word in pregross] se desprende, examinando seu processo de deformação [warping process], nos lembra Mandil (2003):

<<Quando se está diante de uma obra que se propõe regenerar a fala primitiva, não se deve pensar que essa regeneração tenha um sentido filológico, ou mesmo arqueológico, pois o trabalho de Joyce sugere exatamente o contrário, ao promover, por meio da escrita, um empilhamento, uma deposição de camadas de palavras sobre palavras. O que se regenera, na verdade, é o impacto traumático da linguagem sobre o ser falante, a tal ponto que, deixando-se levar pela deriva do riocorrente [riverrun] joyceano, percebemos que cada língua não passa de um modo de defesa, de uma forma de apaziguamento, de adormecimento do que há de enlouquecedor e impositivo em nossa relação com as palavras.>>3

Ao nos depararmos com o método freudiano, constatamos que o esforço de transmissão da descoberta do inconsciente o obrigou a apresentar o método sem, entretanto, sistematizá-lo explicitamente num discurso.

Afinal, <<método>>, nos tempos freudianos, exigia a adjetivação <<científico>>, em que se fazia eqüivaler método e ciência.

Se na Grécia a idéia de método estava profundamente ligada à arte, suas formas latinizadas o transmutaram em via e ratio , já articulando, portanto, a conotação empírica e indutiva. Na renascença, o sentido de facilitação e aceleração da aquisição e do domínio de uma arte foi acrescentado à idéia de método. Desde o século XVI, portanto, a abertura de novas vias científicas permitiram constituir um discurso em torno da idéia de um pretenso "método universal" estabelecendo, as primeiras escalas para uma nova percepção da história, da ciência e do homem. A aplicação da idéia de método a uma série de disciplinas permitiu delimitar a presença de elementos estáveis e repetitivos que fundaram o discurso científico e histórico moderno. Tanto quanto a história, o método só se compreende através de uma escrita em que as analogias, as repetições e o destacável são as garantias de sua existência. A reiteração de comportamentos e de acontecimentos permitem estabelecer o método, pois, como diz Aristóteles, sem similitudes só haveriam causas acidentais. É justamente a eliminação de causas acidentais que autoriza o método4.

Manter esta perspectiva universalizante e ao mesmo tempo acolher o acidente da singularidade parece ter conduzido Freud a uma modalidade de sistematização absolutamente singular, ao mesmo tempo avessa e absolutamente pertinente à ciência: o relato do caso, a transposição da experiência para o escrito.

Como lembra Faivre-Jussiaux(1995)5, somente o caso é permite ao analista mostrar a não coincidência entre cada paciente e uma estrutura patológica já estabelecida, como também o ângulo de incidência da transferência e o desejo do analista. Uma das finalidades da experiência psicanalítica é, enfim, como diz a autora, desvendar o lugar do analista na aventura singular, cuja causa ele suporta e, ao mesmo tempo, o destitui, fazendo dele, um outro. Que esse real se torne legítimo é, ao mesmo tempo, o desejo analista e a aposta da transmissão do caso. Fracassar nessa tarefa situa o analista, juntamente com o paciente, fora do discurso.

Foi ao não tornar seu método explicitamente disponível que Freud conseguiu trilhá-lo e transmiti-lo através de suas monografias clínicas. É possível afirmar que a escassez de recomendações técnicas é imanente ao método, na medida em que impede o risco de reduzi-lo à técnica, que o tornaria passível de aplicabilidade. A aplicação de uma técnica, como sabemos, pressupõe a detenção de um conhecimento que universaliza o objeto e, consequentemente, apaga sua manifestação singular.

Nas monografias de Freud, ele preserva as manifestações do inconsciente testemunhando sua incidência, mesmo quando tal registro não é abordado ou quando uma interpretação dissolve sua opacidade6. Essa responsabilização do analista quanto ao seu ato e quanto à transmissão de sua prática clínica, conduz, cada analista, a cada caso, a recriar o método, constituindo um estilo. Como distingue Jean Allouch (1993), o discurso do método freudiano é expresso na série de monografias clínicas que constituíram, na repetição diferencial, um método. Efetivamente, Freud decanta a clínica e transmite, dela, o caso. E interessa ressaltar que o caso não se limita ao paciente, mas refere-se ao encontro que a clínica promove. É por isso que pode-se dizer, ainda com Allouch (1993), que a especificidade dessa transmissão implica que a sustentação do caso em Freud não esteja limitada à função de paradigma do método freudiano. Estas monografias clínicas de Freud ultrapassam a função técnica e aplicativa do paradigma constituindo propriamente um método, porque:

- o caso histórico delimita um campo cujo método não cessa de se significar na abordagem do caso;

- o caso provoca uma transmissão feita do exercício subjetivo que o ato de relatar o caso faz valer: o método é o relato do caso, mantido singular, porque fundado na literalidade do que o caso mostra como sintoma e como narrativa dos invólucros do sintoma;

- o caso aparta o saber adquirido de casos precedentes, inscrevendo o que há de traço propriamente metódico: o saber adquirido, em vez de ser aplicado, deve ser recusado.

Constatamos, portanto que método, em psicanálise, diferentemente da técnica, só pode ser concebido de modo indissolúvel de seu objeto. Canguilhem7 nos lembra que não é o objeto que dita o método usado para o estudo de suas propriedades, limitando a ciência à investigação de um dado ou à exploração de um domínio. Toda ciência se dá seu dado e dele se apropria, definindo portanto, o seu domínio, o que quer dizer que qualquer ciência se define muito mais pelo estatuto de seu método do que por seu objeto. Desta forma, o "objeto da ciência" não é mais somente o domínio de seus problemas, dos obstáculos a resolver, é também a intenção e a visada do sujeito da ciência, é o projeto específico que constitui uma consciência teórica.

Enfim, a tese aqui defendida é a de que o método freudiano de escrita e de transmissão de monografias clínicas detém, tal como a literatura, mas por um outro caminho, a via de acesso ao inconsciente.

Conferir estatuto de método às monografias clínicas de Freud, portanto, conduz a localizar a co-incidência da literatura com a psicanálise, na medida em que podemos tomar a monografia como gênero literário: um estilo de transpor, cifrando na escrita o mapa da presença do real, a emergência do acidente singular.

A monografia clínica em psicanálise se distingue porque é possível recolher em seu texto, a função da literalidade do escrito, onde escrever é a reverberação do método. Nela, o clínico se oferece como trama significante que dá suporte à manifestação inconsciente, testemunhando-o .

O inconsciente demonstra a evidência de que o sujeito se serve da letra e sofre seus efeitos. Como lembra Safouan (1987), Freud mostra que o sonhador tem problemas análogos aos quais os escribas achavam-se confrontados acerca das necessidades de figuração. Enfim, encontramos, nas manifestações do inconsciente, todos os procedimentos da escrita, quer se trate de estrutura codificada, da estrutura sintética (pictográfica) ou da escrita das palavras (ideográfica):

<<o sonho é uma escrita. [...]quem é escriba? [...] O escriba espera. [...]o instante do ditado. O que não quer dizer a "ordem do ditado". [...] O escriba está sozinho. [...] A pena, no momento desejado, não fará senão deixar esse saber aparecer. O sonho é seu ditado: uma escrita que vem de alhures.[...]uma outra cena[...] um outro lugar>>8.

O sonho, o chiste, o sintoma são, na perspectiva de Safouan, escribas do inconsciente. A esta série, propomos acrescentar a monografia clínica em psicanálise.

É na literalidade da narrativa escrita do caso que poderemos reconhecer e distinguir o que há de singular na cena clínica. Tal literalidade é cara à psicanálise porque o que o analista grafa e apaga da clínica é o que concebe como relevante ou desnecessário, evidenciando que seu ato de escrever está regulado pela responsabilização quanto ao seu ato clínico. Dizer da regulação do escrito pela clínica é dizer que o escrito submete-se, queira ou não, saiba ou não, às mesmas regras estruturais do que faz ato clínico. Nesta medida, a transmissão da clínica psicanalítica pelo que dela se escreve constringe o que há de singular no encontro-desencontrado desta experiência. O real, ou o singular da clínica, que o clínico necessariamente desconhece, só pode ser abordado depois de ter sido transposto para outro sistema de registro antes de ser localizado, antes de tornar-se legível. Recuperar a operação de apagar e de ressaltar trilhamentos do caso no registro escrito deste é descompor séries imaginárias que bordeam e encobrem o real, a letra, ou o singular do caso. Destituí-las de sua condição imaginária é portanto reduzi-las por meio de operações simbólicas que cartografam, distinguem séries correlatas e reencontram a repetição. Daí a função da narrativa: só o encadeamento significante permite ler, no escrito, a constrição real, ou seja, a singularidade do caso que não é nem apenas da estrutura do paciente nem de suas manifestações sintomáticas, mas refere-se ao encontro desencontrado do sujeito com o analista.

Por mais que se queira um exercício de saber, a escrita do caso mostra que o analista está submetido à clínica, sendo falado pelo seu escrito muito mais do que saberia dizer. Daí a função da escrita da clínica psicanalítica: interrogar o que ela tem de imaginário e de aleatório para, ao reduzir a montagem consistente que adquire, discernir o ato psicanalítico.

Mas seria preciso tentar distinguir o que faz letra através do que o registro da escrita de um sujeito permite: letra do analista, letra do sujeito que escreve, letra de quem fala?

Mas quem estaria a altura da escrita da clínica?

Considerando a força dos textos clínicos de Freud, podemos considerar que a escrita da clínica não é para qualquer um. Como diz Lúcia Castello Branco:

<<Talvez, a escrita da clínica seja para ninguém. E esse ninguém é preciso que se apure bastante para se saber o que é. Pode-se supor que o ninguém está do lado do que Blanchot vai chamar de neutro.>>9

 

 

* Rua Paul Bouthilier 353 Belo Horizonte – 30315-010 tel: (31) 32 64 46 65
1 Ao formular a dificuldade encontrada para precisar sobre o quê Emily Dickinson escreve. Em: Lúcia Castello Branco, A branca dor da escrita: três tempos com Emily Dickinson, 7 letras, Rio de Janeiro, 2003.
2 Opus cit., p.17.
3 Ram Mandil, Os efeitos da letra: Lacan, leitor de Joyce, Contracapa UFMG, Rio de Janeiro-Belo Horizonte, 2003, pp.17-18.
4 Philippe Desan, Naissance de la méthode (Machiavel, La Ramée, Bodin, Montaigne, Descartes), A-G Nizet, Paris, 1987, pp.11-18.
5 Michèle Faivre-Jussiaux: L'enfant lumière: Itinéraire psychanalytique d'un enfant bizarre, Payot Rivages, Paris, 1995, pp.14-19.
6 Retomo aqui, afirmações já feitas em outros trabalhos, com o intuito de dar-lhes continuidade, desdobrando-as. Cf. Sob a clínica: escritas do caso, Revista Estilos da Clínica, no. 14, 2003 e Revista Literal, Campinas, no.6, 2003 e em: Da exibição à inibição, no livro: Psicanalisar crianças: que desejo é esse? Bernardino (org.), Àgalma, Salvador, 2004.
7 George Canguilhem, Qu'est-ce la psychologie? , Cahiers pour l'analyse, no. 1-2, Paris, .p.78.
8 Moustapha Safouan, O inconsciente e seu escriba, Papirus, Campinas, 1987.
9 Em comunicação pessoal, 2004.