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ISBN 978-85-60944-08-8 versión on-line

An 6 Col. LEPSI IP/FE-USP 2006

 

A educação como "fato inconveniente" para a psicanálise

 

Education as an 'inconvenient fact' for psychoanalysis

 

 

Rinaldo Voltolini

 

 


RESUMO

Neste texto discute-se a questão da Transmissão da Psicanálise aos educadores tomando como viés a relação transferencial da Psicanálise com a Educação. A hipótese principal é de que a história da intersecção da Psicanálise com a Educação iniciada pelo próprio Freud parece ter confirmado a Educação como um fato menor, uma vez que assim poderia afirmar-se melhor em sua própria especificidade, renegando um tempo em que estas duas posições de trabalho se confundiram no interior da teoria psicanalítica.


ABSTRACT

In this text it is discussed the matter of the Transmission of Psychoanalysis to educators considering the bias of the transferential relationship between Psychoanalysis and Education. The main hypothesis is that the history of the intersection between Psychoanalysis and Education started by Freud seems to have confirmed Education as a smaller fact, once it could assure better its own peculiarity, denying the period in which these two positions in work were mixed inside the psychoanalytic theory.


 

 

Teria a Psicanálise algo a dizer sobre a Educação?

Esta questão não provocou os ruídos que provocou entre os analistas, particularmente os de orientação lacaniana, por acaso.

Ela não provocou o mesmo ruído num meio que compartilha a idéia de que "quanto mais saber melhor", quer dizer, num meio que se ocupa de fazer "render ao máximo" os saberes existentes em torno de uma problemática dita comum.

Neste meio a questão que se colocou não foi a de se a Psicanálise teria ou não algo a dizer, mas "do que" teria ela a dizer, partindo como fato consumado que ela, como qualquer outra teoria que fala sobre "o ser humano", tem sempre algo a dizer.

Mas se entre os lacanianos ela provoca um ruído não é senão porque é a partir de Lacan que se revitalizou uma idéia básica em Freud, mas cujas extensas conseqüências tinham sido "esquecidas", de que a própria formulação da existência do inconsciente em si indica que há saberes que "são inconvenientes", quer dizer, cuja admissão, reconhecimento, posse, viria provocar problemas.

Porque não evocarmos aqui a título de ilustração a famosa anedota da centopéia a quem perguntaram diante de sua pluralidade de pés como ela podia saber qual deles usaria no passo seguinte. Consta que depois desta pergunta, que ela não soube responder, ela nunca mais conseguiu andar!

Pois bem, há saberes que atrapalham porque desorganizam um sistema que só se organiza a custa de seu recalcamento. Não possuísse ele o valor de recalque sua revelação não chegaria a atrapalhar, no máximo poderia fazer divagar por alguns momentos da questão que apruma, mas jamais causar a paralisia da centopéia.

O recalcamento indica a "inconveniência" de um saber não sua "ignorância", e como tal não é algo corrigível com "mais saber". Na inconveniência não há a "ingenuidade" que encontramos na ignorância. Porque não retomar aqui o feliz termo "política da memória", cunhado por Derrida (apud Pujó) e que indica que a memória é política, quer dizer ela se define por um conjunto de forças.

Mas o fundamental nesta formulação freudiana é que aponta para o fato de que o saber que sobrevive ao recalque e que resta consciente faz parte de uma lógica de "conveniência", quer dizer, pelo serviço que presta ao sujeito em sua "organização psíquica".

É por isso que todo psicanalista, desde Freud, sabe que a questão da verdade é uma questão, sobretudo, de "economia psíquica" e não uma questão a ser abordada do ponto de vista Moral.

Trata-se de saber qual a relação que o sujeito mantém com a verdade não para "julgá-lo", seja em sua honestidade como faz, de hábito, a Justiça ou a Religião, seja em sua coerência como é próprio dos meios intelectuais em geral, mas para ajudá-lo a rever se esta relação "compensa". Freud aborda a questão da verdade em termos de "custo", por isso econômico.

A história que contamos de nós mesmos, nos ensinou Freud e nos lembra Lacan ao longo de toda a obra de cada um deles, é repleta de lacunas, de "falsas lembranças" (lembrando o conceito freudiano de lembranças encobridoras) de contradições, de pontos que embora objetivamente banais evocamos como subjetivamente relevantes, enfim, uma história que se parece muito mais com "um Mito" (1) do que com um registro histórico cuidadoso o qual tentaríamos construir guardando uma certa "distância ótima para bem ver".

Assim é, porque age na concepção desta história o princípio de uma conveniência particular regrada pelo meu fantasma e as condições de meu desejo. É uma história, aliás, como qualquer história, mesmo a científica, "interpretada".

O tema da "Transmissão" da Psicanálise na Educação pode ser pensado, de maneira interessante, a partir do texto de Freud sobre a "História do Movimento Psicanalítico (1914) pelo menos por duas razões: a primeira é porque neste texto encontramos um esforço de Freud para analisar a questão desta transmissão mobilizado que estava pelas "dissidências" recentes que por si só lhe colocavam a questão do que pode acontecer como efeito desta transmissão; segundo, porque ele representa uma tentativa de Freud de contar a "História" da Psicanálise (e podemos abordá-la segundo a lógica de toda história apontada acima, por que não, afinal Freud também tinha um inconsciente).

Isto deve nos preparar também com elementos importantes para refletir sobre a questão da transmissão da Psicanálise na Educação, uma vez que aí se trata, primeiro, de transmitir a Psicanálise a alguém que não está a ouvindo com fins de se tornar psicanalista, segundo, porque também partilha das questões que a Psicanálise coloca em geral sobre sua transmissão e, terceiro, porque no âmbito de uma transmissão como esta é preciso que se coloque a questão sobre qual é a "imagem que a Psicanálise tem da Educação", fundamental, uma vez que não podemos pensar em Transmissão fora de uma relação "transferencial" que implica que aí se joga fatalmente elementos, cuja força depende bastante dos lugares que cada um dos lados atribui ao outro.

Com relação a este último aspecto, relembramos que coube a Lacan particularmente em seu texto "A direção da cura e os Princípios de seu poder"(1966) destacar que a transferência não é unilateral, ou seja, que ela não começa do lado do analisante e ricocheteia no analista que faria bem se pudesse evitar ou se valer de sua "contratransferência"para bem conduzir o trabalho. Ao contrário, a transferência deveria ser pensada como uma estrutura mais do que como uma relação "intersubjetiva". Se há dois lados não é porque haja duas pessoas (de fato num certo sentido, como o sujeito nunca se constitui em relação a si mesmo, há bem mais do que duas pessoas numa sessão de análise), mas é porque eles se implicam um ao outro numa "mesma" estrutura, como os enxadristas, exemplo que Freud gostava de dar, se implicam um ao outro pelo jogo em "comum" que jogam. Jogo que embora esteja determinado por alguma coisa que cada um porte antes de começá-lo, só ganha sua força e poder a partir do que é feito destas coisas no interior do jogo.

Se não nos perguntamos sobre o jogo transferencial que se estabelece nesta relação entre educadores e psicanalistas quando o assunto é o que uma coisa tem a ver com a outra estamos condenados a pensar esta relação como sendo de "aplicação". Aplicação quer dizer que um campo se coloca "sobre o outro" (em nosso caso a Psicanálise sobre a Educação, pois não consta que tenha sido pensada até então uma aplicação da Educação a Psicanálise, o que por si só merece atenção dado o escandaloso desta simples enunciação) e busca fazer render um saber que é o seu de origem no campo e nas questões do outro campo.

Algo como se numa análise o analista tentasse conduzir o paciente a partir de suas próprias questões (porque não dizê-lo que aí estaríamos no nível do "governar" mais do que o de analisar).

Evidentemente que as regras do debate epistemológico não são as mesmas que aquelas de um processo analítico, e neste caso, a simples superposição entre o que se passa no campo do diálogo entre dois campos do saber e o que se passa no diálogo ente o analisante e o analista seria imprópria.

Mas se a Psicanálise põe em relevo que todo saber, seja ele particular de alguém ou "universal" e rigoroso como o da Ciência, guarda relações com o saber inconsciente, não deveríamos aceitar tão facilmente que estes dois níveis da questão se apartem.

Ao aceitarmos que um debate científico não pode ser pensado incluindo em seus termos um elemento transferencial não estaríamos, por acaso, aceitando que o saber científico, tal como afirma a Ciência moderna e a Psicanálise não cessa de desmentir, é uma soma de enunciados que em si mesmos independem das condições de sua enunciação.Quer dizer, que a história da Ciência e conseqüentemente o debate entre elas pode ser contada somente a partir do jogo epistemológico.

Ponto de vista, aliás, como destaca Lebrun (2004) que não cessa de alimentar a própria idéia de "importação conceitual" de um campo a outro. De fato, parecemos alimentar sem muito questionamento o diálogo interdisciplinar, como que negligenciando que os vários saberes guardam uma relação intrínseca com suas condições originais de enunciação do mesmo modo que as palavras são dificilmente traduzíveis de uma língua a outra porque guardam "uma relação que chamamos materna" com a língua. Os avisos de "atar cintos" que freqüentemente fazemos aos que se arriscam nesta empreitada, não faz senão mostrar a impotência em evitar que algo nesta viagem que o conceito faz de um campo ao outro se perca.

" Para todas essas constatações, para todas essas questões as respostas e as interpretações não faltam, mas seu número e sua adversidade vêm, também, demonstrar sua fraqueza; todas as interpretações – econômica, antropológica, sociológica, etc – se sustentam pelo lugar de onde vêm, e como, aliás, poderia ser diferente? No mesmo movimento, entretanto, elas se especializaram e perderam sua articulação com o conjunto do campo social ao qual, no entanto, indubitavelmente se referem; todas emanam desses campos específicos que a proliferação dos saberes isolou, e o apelo à interdisciplinaridade só faz mascarar o fato de que elas não mais se articulam entre si." (p.16)

Mas para retomar, então, a enunciação de Freud, em sua História do movimento psicanalítico, logo no primeiro parágrafo, antes de estabelecer os critérios mínimos conceituais que definem o campo de pertencimento à Psicanálise, ele diz:

"Não é de se estranhar o caráter subjetivo desta contribuição que me proponho trazer à história do movimento psicanalítico, nem deve causar surpresa o papel que nela desempenho, pois a psicanálise é criação minha; durante dez anos fui a única pessoa que se interessou por ela, e todo o desagrado que o novo fenômeno despertou em meus contemporâneos desabafou sobre a minha cabeça em forma de críticas. Embora de muito tempo para cá eu tenha deixado de ser o único psicanalista existente, acho justo continuar afirmando que ainda hoje ninguém pode saber melhor do que eu o que é a psicanálise (...)" (p.18) (grifo nosso)

Quer dizer, motivado pela questão da "dissidência" que coloca inevitavelmente o problema do que faz a "unificação" de um campo, Freud responde dizendo que é a figura dele.

Podemos tomar isto na conta de um momento autoritário de alguém que vê seu invento seguir um curso que lhe escapa o domínio e que não ruma na direção por ele desejada. Podemos também tomar esta afirmação como o produto de alguém enraivecido pelas oposições colocadas por pessoas estimadas (como Jung, por exemplo) e que na época começavam a se afastar de Freud para seguir seus caminhos teóricos próprios.

Tudo isto guarda seu fragmento de verdade, mas nos faz restringir a análise ao âmbito do inconsciente de Freud (de fato não é raro que desejemos bancar o analista de Freud) e deixa escapar os efeitos que sua tomada de posição teve sobre o movimento psicanalítico.

Com efeito, com este gesto ele se torna "A" referência( escrito assim sem a barra que indicaria a castração) daquilo que pode ou não ser considerado propriamente psicanalítico.

Um certo efeito possível disto dependendo da transferência que se tenha com o "Mestre" é aquele que encontramos quando vez ou outra alguém evoca o nome de Freud, ou de qualquer outro que a gente deseje colocar neste lugar, para garantir "a Verdade" da Psicanálise.De fato pulula nas instituições, particularmente nas lacanianas, uma espécie de anátema freqüentemente disparado: Você não é psicanalista!". Anátema pronunciado a partir do fato de que "Eu não te reconheço", narcísico, portanto, como se o meu não reconhecimento tivesse o efeito mágico de tornar sem efeito o que o outro diz, mas anátema que segue de perto este mesmo que Freud fundou com seu gesto.

Mas um outro efeito importante disto pode ser pensado a partir da retomada que faz Lacan da função do "ao-menos-um", que se define mais como um lugar, menos que como uma pessoa, lugar responsável, entre outras coisas, pela unificação de um campo.

O "Pai da horda", figura mítica criada por Freud (1914) para indicar que o Pai ganha sua força depois que morre enquanto pessoa pela mão de seus filhos rebeldes, ou seja, enquanto um lugar simbólico, é o rastro que Lacan persegue para sustentar sua definição do "ao-menos-um".

Quando se trata de "fundar" um campo (como era o caso de Freud) não se pode escapar da necessidade de ocupar este lugar de "ao-menos-um" para quem os critérios que legislam não são os mesmos. E será este "um" que morre como pessoa que sutentará com um "Nome" o "Um" da unificação.Como a clave de sol na partitura musical que cria a condição de valor de cada nota a ser escrita nela, assim como "o laço" (social chamamos entre os humanos) que elas terão entre elas, mas só pode fazê-lo pela condição de que não seja uma nota em si mesma. Ninguém pode tocá-la, ela está morta enquanto nota (embora chame Sol, figura sempre paterna) para possibilitar todo um sistema funcionar.

O que unifica as pessoas num dado campo teórico, por exemplo, (embora isto valha para tudo o que unifica um agrupamento humano qualquer) não é a mera concordância conceitual, mas "um Nome".

De fato não é nada raro encontrar desavença entre as pessoas que concordam entre si nos argumentos e, ao contrário, encontrar uma convivência pacífica entre pessoas que não concordam em muitas coisas sobre o que pensam. (como Freud e Pfister, por exemplo).

Quer dizer, é como se de algum modo Freud soubesse (embora pouco importa o quanto ele sabia ou não) que o que unificaria o campo psicanalítico, verdadeira idéia fixa para ele seria "um Nome" e não este ou aquele conceito que em geral permaneceriam todos sendo objeto de controvérsias.

Mas Freud prossegue contando sua História da Psicanálise e diz que as dissidências estabelecidas parecem padecer sempre do mesmo erro: "esquartejam a teoria" e dão a cada pedaço separado uma dimensão de totalidade.

Retoma, portanto, o problema da unidade em outro nível, agora conceitual, para dizer que a teoria psicanalítica não pode ser tomada aos pedaços sob pena de perder o laço de dependência que cada conceito tem com o outro. Isto não quer dizer que a teoria seja "Toda", na perspectiva do famoso "como um todo" tão utilizado nos dias de hoje, mas que ela é "Uma", singular, e como tal se descaracteriza ao modo do que se passa naqueles espelhos feitos para que a gente se divirta com a alteração provocada em nossa imagem, quando exagerada ou diminuída em algum aspecto.

Este ponto será fundamental para a questão da Transmissão da Psicanálise na medida em que adverte sobre o que um programa deveria conter como preocupação principal, ou seja, a transmissão d "A" Psicanálise.

Bem entendido, Não-Toda não é a mesma coisa que esquartejada. Aliás, neste ponto vale ressaltar que este acabaria sendo o erro freqüente de uma Psicologia que se constituiu "universitarizando" (aqui por referência ao que Lacan (1969-70) chamou de Discurso Universitário) o discurso psicanalítico , mesclando-o a tantos outros e que se tornou uma espécie de intermediário da transmissão da Psicanálise para a Educação. Uma Psicologia chamada da Educação que faria, a partir de sua divisão interna, a Psicanálise figurar nos capítulos sobre o desenvolvimento e sobre a aprendizagem, esquartejada, portanto.

Feita a observação do risco de esquartejamento da teoria Freud prossegue comentando que lhe apontam sua hesitação em colocar seu nome como "autor" das idéias básicas da Psicanálise, mas que ele já aprendeu a admitir o preço que todo fundador tem que pagar.

Embora fundador, mas sem deixar de indicar, de um modo bem particular e que reflete já a implicação em suas próprias formulações teóricas o que recebeu de seus mestres e como chegou a partir disso a "criar" a Psicanálise.

O conceito de transmissão viria a ser desenvolvido bem depois por Lacan, mas nos parece evidente que o germe de sua definição já estava presente neste texto de Freud.

Ele destaca que recebera idéias de três mestres que em seguida recusariam admitir os créditos referentes a elas.

Fato curioso ressaltado por Freud e que significa dizer que "é possível aprender alguma coisa de alguém que não tem a intenção de nos ensinar", de alguém que não sabe, rigorosamente falando, nem que está nos ensinando, nem o que está nos ensinando.

Normalmente pensamos que ensinar é um gesto "intencional" e de fato é (como indica a raiz etimológica da palavra ensinar, em-signar, colocar em signos) e é por isso que vai ser necessário nomear diferentemente, como "Transmissão" o que se passa neste nível.

Mas porque continuar a atribuir os créditos de uma idéia a alguém que não reconhece ter sido o autor? Por que não admitir simplesmente ter sido o autor desta idéia?

Para além das razões pessoais de Freud parece evidente que continuar atribuindo a procedência da idéia a alguém provém da necessidade de admitir que não se teria chegado a ela sem a participação deste outro.

Ainda que ele não tenha enunciado intencionalmente e que talvez nem soubesse fazê-lo a questão é indicar que este outro funciona como "suporte da minha interrogação", sem o qual não poderia sequer formular a questão.

Destaca-se aí a função "transferencial" de todo conhecimento que quer dizer que é no "laço" sempre "particularizado" com o outro que o conhecimento se constrói.

Mas destaca-se também que o inconsciente participa da aprendizagem e que se neste caso Freud pôde atribuir a alguém a origem de suas idéias nem sempre este é o caso. É possível que aprendamos algo sem saber de onde isso veio.

Isto coloca um problema sobre a questão da "autoria", evidentemente, a medida que torna difícil esclarecer "quem disse". Problema, aliás, também sensível, embora por caminhos diferentes, à Foucault, quando trata da questão da autoria.

Neste sentido, Freud parece responder diferenciando dois níveis de apropriação de uma idéia: o primeiro que ele chama, em francês, de "aperçu passageiro" e o segundo também em francês de "épouser une idée".

Quer dizer, que há um nível em que a idéia "nos ocorre" e a comentamos, sem nos determos muito nela nem a retomarmos noutro momento, e outro nível em que nos apaixonamos por ela a ponto de nos dedicarmos seu desenvolvimento.

Freud parece resolver a questão da autoria pelo viés da "implicação", mas nos permite também pensar o peso da implicação na questão da Transmissão de um conhecimento.

Provavelmente isto guarda sua relação com a invenção lacaniana do cartel, pelo menos no que diz respeito ao convite feito a todo participante para que apresente aos outros aquilo que construiu "com outros" e que só pôde construir a partir daquela história particular com aquele grupo.

Lembremos o aforisma lacaniano: "o analista se autoriza de si mesmo e de outros", os outros formam parte decisiva na "autoria" de um trabalho.

 

A Transmissão a educadores

Porque transmitir a Psicanálise a educadores? Dizíamos no início ser esta uma questão fundamental, principalmente porque nos convida a abster-se narcisicamente de pensar que é certo que os educadores precisem.

Mas a pergunta não se dá numa perspectiva utilitarista, no nível do para que "serve ?", mas num nível Ético, do "com que intenção?". Não poderia ser um saber paralisante como no caso da centopéia?

Com efeito, é pelo desejo de transmitir a Psicanálise a educadores que temos que nos perguntar. E esta pergunta, como destacávamos no início, passa fortemente pela questão da imagem que os analistas fazem da Educação

Cifali (1982) destaca de maneira interessante que Freud parecia se relacionar com a Educação de uma forma ambivalente. De um lado declarava, e nunca deixou de declarar até o final de sua vida, que a Educação, ou seja a questão das "novas gerações" era uma questão de importância para a Psicanálise, de outro lado (este bem mais sutil) parecia atribuir menos-valia ao trabalho docente como parece ter sido transmitido para as "gerações seguintes" de psicanalistas.

Com efeito, Freud quando adentrava outros campos de pesquisa e de saber costumava fazê-lo com um misto de admiração e de receio em ser questionado pela sua inevitável ignorância com relação às questões específicas deste campo.

Foi assim com a Arte, com a Literatura, com a Sociologia, etc., sempre ressaltando que aí ia para "aprender". De fato até hoje as relações da Psicanálise com estes campos goza de um bom status.

Mas quando se tratou da Educação Freud sempre se pronunciou em termos de "ensinar". A Educação teria algo a "aprender" com a Psicanálise e os educadores deveriam fazer análise para serem melhores educadores, coisa que ele nunca recomendou a outra categoria profissional.

Mas nesta atitude de Freud com relação a Educação esconde-se " ao modo do recalcado" uma história particular entre os dois campos que o aforisma freudiano que goza da maior celebridade no campo psicanalítico parece denunciar:" Psicanalisar, educar e governar são três ofícios impossíveis " (1925) .

O "parentesco" admitido por Freud ao alinhar estes três ofícios sugere um grau de proximidade entre eles. Ainda que seja uma proximidade relativa indica que eles possuem um ponto comum.

Na verdade veremos essa questão ser retomada em Lacan que explicita o parentesco escrevendo estes três impossíveis ao qual acrescentará o "desejar" com quatro discursos, a saber: o do Mestre, o da Histérica, o do universitário e o da Psicanálise (Lacan, 1969-70).

Ele o escreve com as mesmas letras e com os mesmos lugares variando entre eles somente a posição que cada letra ocupa em cada discurso. Ou seja, mais do que indicar um parentesco há aí a indicação de que se trata da "mínimas diferenças".

Quer dizer que a economia destes discursos é tão próxima que ao primeiro deslize se está no campo alheio.

É o que explica as indicações reiteradas tanto de Freud como de Lacan sobre o que faz a diferença entre os discursos e que marca a "especificidade" da Psicanálise.

Não tentar fazer o analisante identificar-se com o analista (educar) e não "desejar" com muito entusiasmo curar o paciente (governar) são recomendações reiteradas de Freud e Lacan que não fazem senão demonstrar a tentação do analista em ceder a estes dois discursos.

Mas a diferença ainda que mínima existe, a Psicanálise "não é" Educação, nem governo.

Mas será este "não é", denegatório, que marcará uma relação entre estes campos que tende ao sintomático, assim como esclarecia Freud ao dizer que o sintoma é uma "formação de compromisso". Se estabeleço minha especificidade ao me diferenciar de um campo estou de um certo modo em perpétuo compromisso com ele.

De fato, esta história remonta a aurora da Psicanálise quando ela ainda não se diferenciava muito bem da Educação o que comprova o número de vezes que Freud associava o trabalho analítico a uma sorte de reeducação.

Mas num trabalho longo nunca "todo-ele" terminado a Psicanálise construiu sua especificidade precisando destes dois discursos, de um modo específico, mais do que outros para fazê-lo.

Melhor dito, enquanto o recurso a outros campos como o da Arte e o da Literatura, por exemplo, serviam para compartilhar pontos em comum (como exemplo temos a idéia de que "os artistas chegam voando ali onde os analistas só chegam coachando", quer dizer fazemos a mesma coisa ainda que os artistas a façam melhor) o recurso buscado no governar e no educar era o de "oposição". Aliás, nunca é demais ressaltar o desprezo manifesto de Freud pela atividade política pelo que ela se assenta na negligência dos fatos reais em prol dos ideais, tal como ele destaca a propósito do residente americano Wilson (1990)

"Em conseqüência, lhe era natural, em seus pensamentos, ignorar os fatos do mundo exterior real, e mesmo de negar sua existência quando estas fossem incompatíveis com suas esperanças e seus desejos. Ele não tinha então nenhuma razão para diminuir sua ignorância pelo exame dos fatos. Nada existia a ele a não ser intenções nobres."p.15

Um livro que se tornou um clássico no assunto da Psicanálise e Educação, pelo menos no Brasil, "Freud Antipedagogo" de Catherine Millot (1987) é uma prova eloqüente disto que vai inevitavelmente se estabelecer como um campo do "narcisismo das pequenas diferenças" entre a Psicanálise e a Educação.

A começar pelo título que ressalta o "anti" que quer dizer contra. Seria Freud inimigo da Pedagogia?

De fato se acompanhamos todo o percurso do texto compreendemos que Freud foi fazendo reservas, que no fundo não eram diferentes da mesma que faria também aos analistas em seu trabalho, ao excesso de expectativa que se deposita num método qualquer de ensino exatamente porque existe um fator do lado do aluno (como do analisante) que é inacessível a influência do professor.

Mas fazer reservas implica em ser "anti" pedagogo?

Ao longo do livro a autora se empenha em fazer um percurso, muito bem construído, para responder as questões: Teria a Psicanálise uma "metodologia" a oferecer a Pedagogia ?, e qual seria a posição de Freud sobre a Educação?

Para a primeira ela responde com um não, para a segunda ela responde dizendo que a posição de Freud é "inconclusiva" no assunto e que Freud não tem um "Tratado" sobre a Educação.

O que chama a atenção são as perguntas mais do que as respostas que, aliás, cumpre ressaltar são muito bem construídas enquanto respostas a estas perguntas.

Mas porque se perguntar sobre um método pedagógico psicanalítico depois de toda a recuperação que fez Lacan (autor que ela mesma cita como base para sua leitura de Freud) da insistência de Freud em evitar qualquer metodologia rígida.

Freud como Lacan não eram pródigos em dar conselhos técnicos, como todos sabem, porque queriam exatamente marcar o risco dos procedimentos técnicos rígidos quando se trata de interferir em sujeitos.

Toda a teorização psicanalítica estava empenhada em desmontar a exigência que no final é mais correlata de um paradigma da Ciência moderna tecnicista de um método como uma técnica universal.

A pergunta sobre uma metodologia é menos psicanalítica do que pedagógica, envolvida como está, esta última, no projeto científico-tecnicista da modernidade.

O mesmo vale para idéia de um "Tratado" ou de uma "conclusão" de Freud sobre a Educação.

Ainda que a autora demonstre porque a resposta é não nos dois casos, fica como assunto intocado que isso é assim porque é característico da teoria psicanalítica e não só do que ela pensa sobre a Educação. Não fazer Tratados nem concluir, mas "causar" questões aos quais o outro possa se implicar é a posição ética básica da Psicanálise em geral.

Mesmo com relação à própria teoria psicanalítica Freud sempre insistiu com relação a seu caráter "inconclusivo", ela está sempre aberta a reformulação pelo exercício da clínica.

Aqui novamente a autora parece ter sido mais movida por questões de uma Pedagogia científico-tecnicista do que pela Psicanálise, uma Pedagogia que ama as formas "Todas", que não se acanha de aglutinar pensamentos diversos e contraditórios entre si em busca de uma teoria "como um todo", que trabalhe o homem em "todos" os seus aspectos.

Mas a "História" da Psicanálise com a Educação não pode ser contada sem que a gente restabeleça estes elementos recalcados para os analistas. É neste sentido que anunciávamos em nosso título como sendo a Educação um fato inconveniente para a Psicanálise.

Como Freud destaca em sua História da Psicanálise, Breuer "cessou de teorizar" ali onde o que ele via (o amor de sua paciente por ele) lhe apresentava um "inconveniente".

Há uma relação entre o inconveniente e a tentação e que pode levar a cessação da teorização.

A Educação lembra o analista sua tentação e o risco de "regredir" em seu ato frente ao paciente fazendo-o a sua imagem e semelhança.

Mas se isso é um risco para o analista no trabalho com o paciente não o é para o educador que, aliás, vive disso embora para fazer bem seu trabalho tem que estar pronto para admitir, no final, que a criança que ele toma para educar não sairá a sua imagem e semelhança, pelo menos nos melhores casos.

Mas o risco maior desta posição não está apenas no equívoco de seu percurso, mas nos destinos transferenciais de sua formulação e disso, como sabemos, o analista não deveria renunciar.

Com efeito, o risco aí, e a experiência recente parece demonstrar que estamos imersos nele, é o de indicar que a Psicanálise não teria nada a fazer pela Educação a não ser oferecer análise aos educadores e alunos que quiserem e precisarem.

A análise continua sendo o lugar por excelência da oferta psicanalítica, mas se os analistas forem "falar" aos educadores, fato cada vez mais freqüente, para "criar demandas" de análise, ou seja, para estabelecer uma clientela, talvez fosse interessante se perguntar o quanto que o efeito de "fascinação" que criam (de fato qualquer um que tenha feito a experiência pode minimamente constatar) pode ter a ver com toda esta história recalcada em relação a Educação.

Mas para além deste campo de "compromisso", transferencial, parece haver a possibilidade de pensarmos outro laço possível, mais pela "miséria" partilhada do que pela "riqueza" que o campo "rico" traria ao "primo-pobre".

A miséria do "impossível" com o qual Freud marcou o denominador comum entre estas atividades.

Analistas e educadores ao lado de governantes partilham da impossível tarefa de "tentar interferir no destino" de alguém. Impossível porque sempre inadequada face ao "desejável", impossível porque interminável, teremos sempre que reinventar um caminho com o próximo.

É no campo da Ética que Psicanálise e Educação parecem poder ter seu encontro mais fértil, não para deplorarem juntas a miséria que compartilham, mas para pensarem no inventivo que o impossível exige.

O campo da Ética, diferentemente do da Ciência (que nada por acaso de tempos em tempos recorre à Ética para perguntar para onde deve ir), é aquele que implica que uma atividade deve primar por pensar seus objetivos submetendo o percurso à lógica instalada por ele. Como fez Lacan ao ressaltar que o fim (no sentido de encerramento) de uma análise estava submetido ao fim (no sentido de finalidade) da análise.

Na Educação como na análise, os fins precisam ser pensados de saída e nunca serem perdidos de vista.

A tarefa de inventar face ao impossível precisa ser contínua, é avessa a modelos ideais, e talvez seja este um bom campo onde a Psicanálise, dada a forma que pode ler o específico da Educação a partir do que construiu como especificidade para si mesma, pode ter algo a fazer pela ou "com" a Educação.

 

Notas:

(1) Referência ao livro de Lacan : "Mito individual do Neurótico"

 

Referências Bibliográficas

- Cifali,M.," Freug pédagogue? Psychanalyse et éducation", InterÉditions, Paris, 1982

- Freud,S., "Totem e tabu", in Edição Standard Brasileira das Obras psicológicas completas de Sigmund Freud, vl.XIII, Imago, RJ (1913)

-_______, "A História do movimento psicanalítico", in Edição Standard das Obras psicológicas completas de Sigmund Freud, vl.XIV, Imago, RJ (1914)

-_______, "Prefácio a Juventude Desorientada, de Aichhorn", Edição Standard das Obras psicológicas completas de Sigmund Freud, vl. XIX, Imago, RJ (1925)

- Freud,S.,Bullit,W.C. " Le président T.W.Wilson Portrait psychologique, editions Payot, Paris, 1990

- Lacan,J., "Escritos", JZE, RJ, 1998

-_______, "O avesso da Psicanálise", 1969-70, livro 17, JZE, RJ, 1992

-Lebrun, J.P., "Um mundo sem limite: ensaio para uma clínica psicanalítica do social", Companhia de Freud, RJ, 2004

- Millot, C. "Freud Antipedagogo", JZE, RJ, 1987