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On-line ISBN 978-85-60944-08-8

An 6 Col. LEPSI IP/FE-USP 2006

 

Considerações sobre o relato de caso clínico na pesquisa e na transmissão da clínica

 

Discussion about the use of clinical reports in researches and in the transmission of the clinic

 

 

Rogério Lerner1

 

 


RESUMO

Além de uma teoria acerca do psiquismo, Freud instituiu uma estratégia de pensamento original a partir da qual a interrogação acerca do sofrimento mental passou a orientar-se ao campo decorrente da articulação dos termos inconsciente, psicopatologia e sexualidade em torno da noção de fantasia. Estes aspectos definem a materialidade discursiva da psicanálise.
As considerações sobre etiologia, semiologia e terapêutica tecidas pela psicanálise só têm algum desdobramento possível dentro do contexto instituído pelo contorno metodológico em questão. A clínica é a ocasião de instituição da cenografia que sustenta o método da psicanálise, sempre orientado às perguntas e às categorias de respostas que sustentam sua materialidade discursiva. Assim, o relato de caso clínico é uma oportunidade de transmissão das condições discursivas de ocorrência da psicanálise.
Perguntas oriundas da clínica psicanalítica podem se orientar a contextos distintos daquele que define a psicanálise, bem como perguntas oriundas destes terrenos "estrangeiros" podem ser endereçadas a ela, como, por exemplo, na pesquisa sobre articulação entre aspectos genéticos e psíquicos no autismo. Contextos distintos engendram métodos distintos, partindo de e orientando-se a materialidades discursivas específicas.
A sustentação de uma materialidade discursiva não só não se presta a de outra, como a ameaça. Desejamos discutir algumas conseqüências que tal tensão tem para o relato de caso clínico em pesquisas.

Palavras-chave: Psicanálise, metodologia, epistemologia.


ABSTRACT

Beyond a theory concerning psychic functions, Freud instituted an original strategy of thought from which the interrogation about mental suffering started to be addressed to the resulting field of the joint of the terms unconscious, psychopathology and sexuality around the notion of fantasy. These aspects define the discursive materiality of psychoanalysis.
Considerations on etiology, semiology and therapeutic approach proposed by psychoanalysis can only be held in the context instituted by the methodological contour in question. The clinic is the occasion of institution of the scenography that supports the method of psychoanalysis, always guided to the questions and to the categories of answers that sustain its discursive materiality. Thus, the clinical report is a chance of transmission of the discursive conditions of occurrence of psychoanalysis.
Questions raised in psychoanalytical clinic can be addressed to different contexts from the one that defines psychoanalysis, as well as questions raised in these "foreign" lands can be addressed to it, as, for example, in the research on joint of genetic and psychic aspects in autism. Distinct contexts produce distinct methods, leaving from and addressing to specific discursive materialities.
The sustentation of a discursive materiality is not only useless for another one, but also threatens the other one. We desire to discuss some consequences that such tension has for the use of clinical reports in researches.

Key-words: Psychoanalysis, methodology, epistemology.


 

 

As considerações que apresento neste trabalho decorrem da minha experiência como psicanalista e pesquisador e têm sido abordadas na disciplina por mim ministrada no programa de pós-graduação em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano. Ao apresentar-me como psicanalista e pesquisador, proponho uma disjunção entre estes termos. Não que a prática psicanalítica não possa ser uma pesquisa: quando tudo vai bem, ela é. Mas há ocasiões em que a psicanálise não coincide com uma prática de pesquisa e há pesquisas não psicanalíticas.

Mais do que uma teoria sobre o funcionamento mental, Freud instituiu uma estratégia de pensamento original a partir da qual a interrogação acerca do sofrimento psíquico passou a endereçar-se ao campo decorrente da articulação dos termos inconsciente, psicopatologia e sexualidade em torno da noção de fantasia. É balizada por estes aspectos que se define a materialidade discursiva da psicanálise.

Como qualquer materialidade discursiva, a psicanálise demanda uma rede de lugares que suportam e orientam as produções enunciativas dos atores institucionais. É a partir da assunção e da atribuição de lugares que o dispositivo discursivo se põe em marcha, sendo necessária a armação de uma cena na qual tais lugares se instalam. A cena genérica fundamental da psicanálise é a do atendimento. Alguns aspectos cenográficos podem variar de tempos em tempos ou em função da região em que se localiza determinado psicanalista, mas os elementos que suportam a legitimidade do que se considera ser uma prática psicanalítica têm de ser o lastro dos lugares que se instituem com a cena.

O encontro entre duas pessoas converte-se em um caso clínico como produto da armação da cena do atendimento psicanalítico e da instituição dos lugares que a compõem. A legitimidade de tal conversão é o poder de estabelecer tanto o verdadeiro como o falso; é também a coerção recíproca – ora mais, ora menos sutil - que os atores em relação exercem entre si: afinal, não se fala de qualquer coisa, de qualquer maneira, "livre" e impunemente, numa sessão analítica. Esta dimensão do poder não é privilégio da psicanálise: faz parte de qualquer discurso.

Esta obra de engenharia discursiva que é a psicanálise é complexa e vasta. O atendimento é uma circunstância fundamental, mas não é a única. Há diversas circunstâncias que representam, entre outras coisas, oportunidades de conservação e reforçamento deste dispositivo de poder. Aqui podemos mencionar várias formas de relato de caso clínico, tais como supervisões, apresentações de pacientes, seminários clínicos, entre outros. Nessas situações, articula-se o que se diz na sessão com o que se considera uma apreciação psicanalítica do material; são determinados objetivos a se alcançar; aventam-se estratégias para tanto e, eventualmente, os riscos de fracasso. Podem ser sugeridas formas de leitura do que diz o paciente e até algumas falas do analista. Acima de tudo, adverte-se que a psicanálise é uma ética que, como tal, impõe a seus praticantes a proscrição, o impedimento de ferir tal princípio.

Com a abertura ao inconsciente, circunscreve-se a especificidade da forma psicanalítica de tomá-lo como objeto. O que o relato transmite é, afinal, o conjunto de condições discursivas que são o dispositivo de poder de instituição da sua cena primeva: o atendimento clínico.

A fundamentação metodológica do discurso psicanalítico repousa no poder que tal dispositivo tem de sustentar proposições acerca de seu objeto de conhecimento. Tal objeto é definido pelo encadeamento de alguns pressupostos que levam a uma singular articulação de perguntas da qual partiu Freud e outros tantos, bem como pela forma inventada para fazer-lhes face. Isso não significa dizer que as verdades estão previamente à disposição do psicanalista simplesmente esperando o momento de sua revelação: a resposta que a psicanálise tem para oferecer muitas vezes é a própria formulação de uma pergunta. É assim que a psicanálise pesquisa, alicerçada em hipóteses que lhe orientam um método coerente com as categorias de resposta, sem, no entanto, antecipar-lhes a conclusão, ou seja, seus conteúdos.

Se os pressupostos forem desencadeados, se as perguntas forem desarticuladas ou a forma de fazer-lhes face for desprezada, o método perderá sua fundamentação. Neste caso, a psicanálise divorcia-se da pesquisa. Isso pode acontecer, inclusive, em atendimentos em que se antecipam conclusões previamente contidas nas hipóteses, sendo que tais hipóteses deveriam restringir-se ao método e à sua coerência com as categorias de respostas.

Ocorre que os discursos não se resignam a limitar a extensão da verdade que tecem acerca de seus objetos. Agem como se as fronteiras do seu contexto metodológico fossem catapultas para a conquista do além.

Perguntas oriundas da clínica psicanalítica podem ser endereçadas a contextos distintos daquele que define a psicanálise, bem como perguntas oriundas destes terrenos "estrangeiros" podem ser endereçadas a ela. Contextos distintos engendram métodos distintos, partindo de materialidades discursivas específicas.

A sustentação de uma materialidade discursiva não só não se presta a sustentação de outra, como a ameaça. Lembremos que se trata de dispositivos de poder que, como tais, não cessam de não se resignar. Nessa medida, a aproximação entre métodos distintos carreia o surgimento de uma tensão entre os campos em questão.

É disso que se trata quando o relato de caso clínico é posto a trabalhar junto a pesquisas que não se orientam pelo método psicanalítico. Justamente porque o relato de caso clínico transmite os elementos fundamentais do discurso psicanalítico como dispositivo de poder, sua aproximação de outros discursos inevitavelmente se faz em meio à tensão decorrente dos diferentes exercícios do poder enunciativo.

Uma conseqüência comum é a aplicação de um discurso a outro. É o que acontece quando elementos de um discurso são postos a traduzir ou explicar elementos definidos por outro discurso. Ocorre uma descaracterização recíproca dos fundamentos metodológicos de ambos, uma vez que são utilizadas verdades produzidas a partir de pressupostos, perguntas e procedimentos específicos para substituir verdades produzidas a partir de outros pressupostos, outras perguntas e outros procedimentos. Em ambos os campos discursivos, os pressupostos são desencadeados, as perguntas são desarticuladas e a especificidade das formas de fazer-lhes face é desprezada. Trata-se de uma tentativa de estender o poder de enunciação de um dispositivo discursivo a outro, aplacando a tensão entre ambos por meio de uma prática de dominação que leva a uma hegemonia. Quando o relato de caso clínico é posto a trabalhar na tensão com outros elementos discursivos, é freqüente que surjam, como conseqüência, formas de hegemonia psicanalítica. As hipóteses que deveriam apenas orientar o método são antecipadas como conclusões, universalizando-se.

Isso não quer dizer que não há outras formas de trabalhar sob a mencionada tensão decorrente da heterogeneidade discursiva. Considero a articulação como uma delas. Para tanto, é necessária, da parte do pesquisador, a disposição de não se deixar levar pela inexorável tendência totalitária do discurso. É necessário arrefecer o ânimo de usar uma única explicação para todos os problemas tomados em questão. É bastante óbvio, mas não é nada fácil.

A fim de não se pretender reduzir um campo a outro, cumpre escolher alguns aspectos de cada um dos campos para serem aproximados. Não se trata de estender a explicação de um para recobrir a de outro, mas de propor uma aproximação que permita um debate entre tais aspectos. É freqüente que tais debates circunscritos venham a se mostrar profícuos a ponto de acarretar uma inflexão sobre um ou mais campos originais ou até mesmo inaugurar um novo campo discursivo.

A circunscrição dos aspectos em debate visa a evitar o desencadeamento dos pressupostos, a desarticulação de perguntas, o desprezo pela especificidade das formas de fazer-lhes face e a antecipação de hipóteses metodológicas como conclusões.

Para se trabalhar com o relato de caso em pesquisas que envolvem a mencionada heterogeneidade discursiva, não se deve esperar que algum elemento clínico seja mais bem explicado por uma ou por outra perspectiva. Cada perspectiva tem definições específicas do que é um elemento clínico, que não se restringe a sua descrição fenomênica. Não se deve esperar que perguntas oriundas de um campo que não é a psicanálise sejam respondidas pela atividade clínica da última. É mais favorável que sejam construídas e endereçadas perguntas que não estejam previamente no programa de pesquisa dos campos envolvidos, partindo da consideração de que tais campos, sozinhos, não contam com recursos metodológicos para fazer-lhes face.

Como se pode notar, a articulação que ora proponho é, por decorrer da perspectiva teórica que entende práticas discursivas como dispositivos de poder, uma postura metodológica. Apenas no escopo desta postura metodológica é que se podem propor procedimentos que lhe sejam coerentes, o que torna improcedente a pretensão do estabelecimento de uma técnica garantidora de resultados.

 

Bibliografia

Freud, S. (1900) A interpretação dos sonhos. Edição standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1982.

________ (1912) A dinâmica da transferência. Edição standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1982.

________ (1913) Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise. Edição standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1982.

Foucault, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1992.

__________ A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 2004.

Guirado, M. A clínica psicanalítica na sombra do discurso: diálogos com aulas de Dominique Maingueneau São Paulo: Casa do Psicólogo, 2000.

Guirado, M; Lerner, R. (orgs.) Psicologia, pesquisa e clínica: por uma análise institucional do discurso. São Paulo: Annablume/FAPESP, 2007.

 

 

1 Rogério Lerner é psicólogo e psicanalista, tendo concluído o doutorado em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pela Universidade de São Paulo. Atualmente, é professor-doutor do departamento de Psicologia da Aprendizagem, do Desenvolvimento e da Personalidade do Instituto de Psicologia da USP e membro da Pré-escola Terapêutica Lugar de Vida. Seus temas de investigação têm sido psicanálise, desenvolvimento humano, análise de discurso, educação e saúde mental, tendo por produto a publicação de artigos e livros.
Dentre as pesquisas com que está envolvido atualmente, coordena a intitulada "DESENVOLVIMENTO E SUAS BASES NEUROFISIOLÓGICAS: debates entre as concepções de Freud e Vygotsky, descobertas neurocientíficas contemporâneas e o discurso de profissionais envolvidos com a queixa escolar" e participa de outra, "Leitura da constituição e da psicopatologia do laço social por meio de indicadores clínicos: uma abordagem multidisciplinar atravessada pela psicanálise" (projeto temático FAPESP).
Publicações mais relevantes:
GUIRADO, M. (Org.) ; LERNER, R. (Org.) Psicologia, Pesquisa e Clínica: por uma análise institucional do discurso. 1. ed. São Paulo: FAPESP/Casa do Psicólogo, 2007.
LERNER, R. A psicanálise no discurso de agentes de sáude mental. 1. ed. São Paulo: FAPESP/Casa do Psicólogo, 2006. v. 1. 103 p.
LERNER, R. Matriz discursiva da contra-transferência: discussão ética acerca do acompanhamento terapêutico e de instituições de saúde mental. Psyche, 2006.
LERNER, R. . A dimensão da enunciação no discurso da mãe acerca da criança psicótica. Revista Estilos da Clínica, São Paulo, v. VII, n. 13, p. 116-121, 2003.
LERNER, R. . A psicanálise na escola. In: Lino de Macedo; Bernadete Amendola de Assis. (Org.). Psicanálise e Pedagogia. 1a. ed. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2002, v. , p. 85-96.