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On-line ISBN 978-85-60944-08-8

An 6 Col. LEPSI IP/FE-USP 2006

 

A transmissão do grande segredo1

 

Conveying the big secret

 

 

Simone Moschen Rickes

Psicanalista, membro da APPOA, professora do Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da UFRGS. simone.m.r@via-rs.net

 

 


RESUMO

O artigo propõe pensar a escola como guardiã do intervalo que há entre as palavras e as coisas que elas designam, discutindo o lugar deste intervalo enquanto motor de qualquer produção dita de conhecimento que mereça ser chamada de humana. A escola é vista como agente de uma tarefa de extrema complexidade: fomentar a construção e apropriação do conhecimento e, ao mesmo tempo, sublinhar sua impossibilidade de replicar o mundo que procura abarcar, colocando, nesta medida, a responsabilidade do sujeito em primeiro plano. Sublinhada a estrutura ficcional de toda verdade (Lacan, 1959-60), a transmissão que importa a escola fazer se verá atravessada de ponta a ponta por uma reflexão ética fortemente tecida à responsabilidade pelo mundo que o conhecimento inventa sem ao menos dominar as condições desta criação.

Palavras-chaves: transmissão; ética; experiência.


ABSTRACT

This paper proposes to contemplate the school as a guardian of the interval that exists between words and the things they designate, discussing the place of this interval considered as a motor of any knowledge production that deserves to be called human. The school is understood as an agent with a task of extreme complexity: promote the construction and appropriation of knowledge and, at the same time, emphasize its impossibility to replicate the world that it seeks to embrace, in this manner, placing the responsibility of the individual in foreground. Highlighting the fictional structure of all truth (Lacan, 1959-60), the conveyance that is important for the school to achieve will be seen impregnated by an ethical thought strongly woven to the responsibility for the world that knowledge invents without, at least, dominating the conditions of this creation.

Keywords: conveying; ethics; experience.


 

 

Às voltas com compor os elementos que gostaria de aqui compartilhar com vocês, elementos que me surgiram instigada pela pergunta que costura esta mesa, O que se transmite na escola?, reencontrei um poema de Alberto Caeiro. Diante do poema, impossível não lembrar do alerta que Freud faz aos psicanalistas: em matéria do humano, os artistas nos abrem caminho, nos antecedendo no ciframento das questões que nos concernem. Ao reler Caeiro fui tomada desta sensação; de que sob a forma de poesia ele antecipava parte daquilo que eu gostaria de trazer para este momento de trabalho. É acompanhada por suas letras que convido vocês a pensar comigo sobre algumas conseqüências que podemos tirar da pergunta sobre a transmissão no espaço escolar.

Importante situar de que se tratam de conseqüências, e não de respostas, por que uma pergunta pelo o quê nos lança em um terreno complexo: como responder, sem fazer uma redução da riqueza de pensamentos que ela nos abre? Riqueza que, neste caso, está diretamente ligada à pluralidade da instituição escolar: são muitas escolas – infantil, fundamental, média –; são muitas infâncias e juventudes – do sul ao norte desse país; são diferentes professores confrontados com diferentes espaços. Como tirar da pergunta sobre o que se transmite da escola uma conseqüência que pudesse se colocar como um fio a atravessar parte dessa pluralidade? Diante deste nó, diante do complexo emaranhado das diferenças, surgiu-me uma ponta pela qual pretendo começar a puxar o fio, qual seja: a escola como um agente privilegiado de transmissão do conhecimento, este entendido como um produto da tentativa, sempre fracassada, de transpor o intervalo que há entre as palavras e as coisas que estas palavras almejam nomear. A escola como guardiã deste intervalo intransponível. Vou iniciar minha reflexão por este ponto, que não é o começo da história, mas o meio pelo qual decidi recortar a questão. Vamos ao poema:

...
Entrevi, como uma estrada por entre as árvores,
O que talvez seja o Grande Segredo
Aquele Grande Mistério de que os poetas falsos falam.

Vi que não há Natureza,
Que Natureza não existe,
Que há montes, vales, planícies,
Que há árvores, flores, ervas,
Que há rios e pedras,
Mas que não há um todo a que isso pertença,
Que um conjunto real e verdadeiro
É uma doença de nossas idéias

A Natureza é partes sem um todo.
Isso é talvez o tal mistério de que falam.
Foi isto o que sem pensar nem parar,
Acertei que devia ser a verdade
Que todos andam a achar e que não acham,
E que só eu, porque a não fui achar, achei.

Alberto Caeiro

"Que Natureza não existe" certamente poderia ser uma fala proferida por um psicanalista; ser cuja visão desnaturada do homem já se alardeou pelos quatro cantos do território. Pensar, porém, na inexistência da Natureza não é, contudo, desconsiderar as bases materiais de nossas vivências: o organismo e seu entorno. Ambos estão aí e não cessam de resistir às nossas tentativas de domesticação simbólica. Ambos fazem presença na medida da resistência que expressam às nomeações que tentam capturá-los.

Se por um lado a Natureza se apresenta como aquilo que resiste à nomeação, por outro, o próprio registro dessa resistência precisa passar pela palavra. É através da palavra que inscrevemos a impossibilidade de circunscrever e controlar a Natureza, realizando-a como dimensão perdida que a linguagem procura apreender. Fazemos a experiência desse vazamento incessante da Natureza ali, justamente, onde tentamos estabelecer, com as palavras, algum saneamento.

Só podemos estar à altura da empreitada de fazer passar pelos canos das palavras uma Natureza que jorra sem cessar, se estivermos dispostos a perder a perspectiva de uma totalização. Se há algo que não pode ganhar registro de experiência é a totalização que o termo Natureza evoca – aliás, a própria noção de experiência, a qual vamos recorrer na seqüência de nosso pensar, depende diretamente da impossibilidade de apreender a coisa em si. É como conseqüência da perda da coisa em si que a experiência pode ter lugar. Toda experiência humana, seja a de um organismo que, uma vez nomeado, ganha o estatuto de um corpo, seja a de um entorno, somente registrado na medida do permitido pelos instrumentos simbólicos coletivamente compartilhados; toda a experiência humana só pode ser abordada, inscrita, psiquicamente registrada, se nela se inscreve a perda, o corte, a falta. O todo não tem como ser abordado humanamente.

Assim, qualquer construção de conhecimento que procure dar conta da Natureza – seja lá o que esse termo possa significar – precisa, paradoxalmente, tolerar perder parte daquilo que almeja conhecer. Conhecer implica tolerar perder, e mais, sustentar a responsabilidade oriunda desta perda – a responsabilidade pelo corte que desenhou determinado conhecimento e que produziu determinadas condições de possibilidade para a experiência humana. Perder a Natureza, perder o objeto é a única forma de fazer seu registro, inscrevendo-o e produzindo-o no quadrante simbólico, aquele que constitui o que reconhecemos como humano.

Se pensarmos que o conhecimento produzido pelos homens, no transcurso dos tempos, não é um espelho do mundo, mas, ao contrário, cria um mundo e com ele possibilidades de trânsito pelo mundo inventado, seremos levados a propor que toda a produção de conhecimento retira sua validade do compartilhamento e não da coincidência que almeja estabelecer com o objeto. Lembro aqui uma passagem de Lacan: "A nominação constitui um pacto, pelo qual dois sujeitos ao mesmo tempo concordam em reconhecer o mesmo objeto. [...] se os sujeitos não se entenderem sobre este reconhecimento, não haverá mundo algum, nem mesmo perceptivo, que se possa manter por mais de um instante." (Lacan, [1954-1955] 1987, p.215 – grifo nosso). É no compartilhamento da nomeação que reside a experiência de permanência do mundo, a experiência da consistência do conhecimento.

Como a consistência se calca no compartilhamento e não na coincidência da palavra com o objeto, não temos como exorcizar toda incerteza ou varrer o fantasma da ficção que toda a nomeação, que toda a construção de conhecimento carrega consigo. É por que o conhecimento se tece com os fios da linguagem que não é possível, ao próprio conhecimento, almejar coincidir com os objetos por ele criados, pois sabemos que entre a linguagem e as coisas há, no dizer de Lacan, litoral, ou seja, uma heterogeneidade intransponível que não cessamos de querer ultrapassar. Se o conhecimento não replica o mundo não é por que ainda não chegamos lá, mas pelos limites que a linguagem lhe impõe. Limites que são ao mesmo tempo a sua possibilidade e da nossa responsabilidade, uma vez que diante desse quadro vai importar que nos perguntemos pelos efeitos que os contornos, implicados em que cada ato de nomeação, introduzem no mundo nomeado.

Interessante pensar, porém, que não é somente como sustentadora da impossibilidade da palavra recobrir o mundo que a escola pode ter lugar, mas também como instância que instiga e impulsiona a ilusão de que, sim, através do alargamento do conhecimento poderemos avançar os litorais que separam estas esferas irredutíveis. Tarefa de extrema complexidade: fomentar a construção e apropriação do conhecimento e, ao mesmo tempo, sublinhar sua impossibilidade de replicar o mundo que procura abarcar, colocando, nesta medida, a responsabilidade do sujeito em primeiro plano.

Vale sublinhar que a atitude frente à não coincidência entre as palavras e as coisas, frente à impossibilidade de estabelecer uma relação totalizada entre estes domínios distintos pode se inscrever desde diversas posições. Aquilo que de mais nefasto podemos fazer se situa numa reação, por vezes desesperada, de buscar restituir certezas, equivalendo as palavras ao mundo das coisas, tomando-as como passível de transpor, sem perdas, para o registro simbólico, a vida que pulsa rebelde. Desde esta perspectiva, tomamos os sentidos constituídos no laço social que nos organiza como sendo imanentes aos objetos que eles estruturam – e não produto de um acordo entre pares datado temporalmente e enraizado territorialmente. Como contraponto à cegueira da totalização, podemos caminhar nas sombras, apreciar as partes, deixar-nos afetar pelo mundo construído de forma compartilhada saboreando o desenho a que chegamos como um fruto possível de uma composição atual de forças que nos escapam e às quais estamos sujeitos. Podemos nos inspirar em Caeiro: "foi isto o que sem pensar nem parar, acertei que devia ser a verdade". E acrescentaria: é diante disso, desse acerto – ou erro – que como sujeitos devemos nos responsabilizar frente a nossos pares.

Creio que a escola é um agente privilegiado de transmissão desse dever de responsabilidade frente aos contornos que o conhecimento impõe ao mundo. Talvez seja essa uma de suas tarefas mais nobres: transmitir a falta inscrita em cada nomeação, o litoral que separa – e une – as palavras e a Natureza e, no mesmo gesto, fomentar a experiência da responsabilidade frente ao fato de que não é a coisa em si que apreendemos com o conhecimento, mas sim um mundo de possibilidades – e de impossibilidades - que criamos a cada proposição. A transmissão do Grande Segredo de que os falsos poetas falam, a transmissão da experiência de que não há um todo a que as coisas pertençam, de que um conjunto real e verdadeiro é uma doença de nossas idéias é uma das tarefas privilegiadas da escola.

Sobre a responsabilização, vale ainda uma palavra. Trata-se de um gesto banhado também por uma complexidade ímpar, na medida em precisamos nos responsabilizar por uma produção, por uma nomeação que propriamente não dominamos. Barthes (1997), na inspiradora conferência denominada Aula, situa algo que pode nos ser caro: "na língua servidão e poder se confundem inelutavelmente. Assim que enuncio, (...) duas rubricas se juntam em mim, sou ao mesmo tempo mestre e escravo: não me contento com repetir o que foi dito, com alojar-me confortavelmente na servidão dos signos: digo, afirmo, assento o que repito" (p.14). Ao pronunciar as palavras se é, ao mesmo tempo, e num mesmo movimento, mestre e escravo, quem escolhe e quem é escolhido pelas letras que saem da boca. Para que alguém possa dizer algo, precisa se apropriar da linguagem, se colocar numa posição de escolha, de sujeito de seu dizer, mas quando as palavras lhe saem, quando começa a construir a ficção que representa o mundo e a si, esse mesmo sujeito passa a ocupar a posição de objeto de seu dizer – ainda que não se reconheça aí. É nesse lugar de tensão entre o domínio e o assujeitamento que somos chamados à responsabilidade. Somos chamados a suportar, na mais ampla acepção desta palavra, a perda necessária para que se opere a passagem do mundo das coisas – entidade mítica para sempre perdida – para o mundo das palavras. Nesta travessia nos encontraremos com os mais inusitados perigos. A transmissão que importa à escola fazer implica uma reflexão fortemente tecida à responsabilidade pelo mundo que o conhecimento inventa sem ao menos dominar as condições desta criação.

Mas retomemos a idéia de travessia. Eis aí mais um elemento que a escola é capaz de agenciar de forma privilegiada. Vindos de casa – e aqui vale o alerta que estamos falando de uma infância, ou pelo menos de algumas, mas não de todas –, território em que se desdobra a língua e os sentidos construídos ao longo de uma série de gerações que se sucederam na árvore genealógica familiar, as crianças ingressam na pequena pólis em que se constitui a escola, onde o lugar de cada um não está dado a priori, nem mesmo é franqueado por adultos que abrem espaço aos pequenos, mas precisa ser conquistado nas relações e embates com os pares. É também na escola que a criança é convocada a falar a língua de todos, se aproximando e se apropriando de um patrimônio cultural e de formações de sentido construídas historicamente e compartilhadas coletivamente. De algum modo, ingressar na escola é se ensaiar na travessia do privado ao público e suportar os perigos desse percurso; é ser introduzido no ordenamento compartilhado que ultrapassa qualquer tentativa familiar de proteger os pequenos do embate com a diferença que o Outro pode e deve representar – diferença irredutível a qualquer tentativa de domesticação.

Podemos ainda potencializar a idéia de travessia desde uma outra perspectiva. Recorramos à etimologia da palavra experiência. Larrosa (2002) nos auxiliará neste percurso. Diz ele: "a palavra experiência vem do latim experiri, provas (experimentar). O radical é periri, que se encontra também em periculum, perigo. A raiz indo-européia é per, com a qual se relaciona antes de tudo a palavra travessia, o percorrido, a passagem. (...) A experiência é a passagem da existência, a passagem de um ser que não tem essência, ou razão, ou fundamento, mas que simplesmente "ex-iste" de uma forma sempre singular, finita, imanente, contingente (...) a palavra experiência contém inseparavelmente as dimensões de travessia e perigo"(p.25). Pensar a escola como um lugar de travessia, de travessia e de perigo, parece-me particularmente fecundo quando abordamos o início da escolarização formal, pois o ingresso nesta pequena pólis, neste lugar mágico das letras, é a entrada em uma zona de passagem que se estende da casa à rua. O perigo vai por conta do desamparo estrutural com o qual precisamos lidar toda vez que estamos dispostos a dar lugar à intransponível cisão que até então vimos trabalhando, ao litoral que separa a Natureza, os objetos, das palavras. O conhecimento busca, sem nunca totalizar esta operação, produzir a travessia do intransponível e, a cada tentativa, novos perigos se desenham, novas possibilidades se inscrevem. Lembro aqui da frase do poeta Hölderlin: "onde há perigo cresce também o que salva".

E por falar em poetas, gostaria, para encaminhar o final desta intervenção – que deve acabar pela metade, fazendo jus ao espírito da reflexão –compartilhar com vocês o escrito de mais um poeta. Trata-se do poema-prosa de Manoel de Barros O apanhador de desperdícios (2003). Suas letras me darão a oportunidade de sublinhar a importância dos volteios e dos desperdícios na construção dessa travessia de um perigo que é a experiência.

Uso a palavra para compor meus silêncios.
Não gosto de palavras fatigadas de informar.
(...)
Dou respeito as coisas desimportantes
E aos seres desimportantes.
Prezo insetos mais que aviões.
Prezo a velocidade
das tartarugas mais que a dos mísseis.
Tenho em mim esse atraso de nascença.
Eu fui aparelhado
para gostar de passarinhos.
Tenho abundância de ser feliz por isso.
Meu quintal é maior do que o mundo.
Sou um apanhador de desperdícios:
Amo os restos
como as moscas.
Queria que a minha voz tivesse um formato de canto.
Porque eu não sou da informática:
eu sou da invencionática.
Só uso as palavras para compor meus silêncios.

O poema inicia de modo instigante: "uso as palavras para compor meus silêncios, não gosto das palavras fatigas de informar". Palavras fatigadas de informar; pontuação pertinente em tempos de vertiginosa aceleração da produção e disseminação da informação, tempos em que o acesso ao elaborado até mesmo no além mar se dá de forma instantânea através da rede de computadores, tempos em que a escola não tem como sustentar sua função de modo exclusivo na transmissão da informação. Há enciclopédias virtuais muito mais informadas do que professores de invejável erudição. Aquilo que se transmite na escola deve, cada vez mais, ser buscado em outro lugar – até aqui vimos propondo que este lugar se inclina na direção de sublinhar a falta inscrita em toda produção de conhecimento e a responsabilidade que disso deriva.

Desde há muito sabemos, com Walter Benjamin ([1936] 1994), que o incremento da produção e disseminação das informações não redunda na ampliação da experiência e da sabedoria que dela se gostaria que adviesse. "A informação só tem valor no momento em que é nova. Ela só vive nesse momento, precisa entregar-se inteiramente a ele e sem perda de tempo tem que se explicar nele" (p.204). Não nos admira que a hipervalorização da informação venha acompanhada de uma aceleração vertiginosa das vivências, fazendo com que nos sintamos em atraso crônico frente às novidades do mercado – inclusive às do mercado do conhecimento.

É ainda Benjamin ([1933] 1994) que nos diz: "uma nova forma de miséria surgiu com esse monstruoso desenvolvimento da técnica, sobrepondo-se ao homem. [...] Pois qual o valor de todo esse patrimônio cultural, se a experiência não mais o veicula a nós?" A datação do texto não restringe sua atualidade. Ele é de 1933, mas poderia certamente ser escrito nos dias de hoje. Sua atualidade, contudo, não precisa ser desdobrada em uma recusa dos avanços que a técnica possibilitou; não necessariamente precisamos nos inclinar na direção de uma ruminação nostálgica e, por que não dizer, em alguma medida estúpida. Penso que a atualidade das palavras de Benjamin está na pontuação de que uma ampliação, seja ela da técnica ou do conhecimento, não redunda em uma apropriação humana. Diante desta denúncia nos resta a pergunta: o que pode permitir que o patrimônio cultural acumulado na história dos homens possa se vincular a nós; quais as condições da transmissão desse patrimônio; quais as condições da transmissão que interessa a escola operar?

Benjamin ([1936] 1994) insiste na palavra experiência, diferenciando-a da vivência e articulando-a de forma inextrincável à transmissão. A experiência é absolutamente dependente da transmissão. É o momento da transmissão que abre espaço à apropriação do vivido denominada pelo autor de experiência: é no momento em que se coloca, para o sujeito, a responsabilidade de narrar e fazer passar ao outro o vivido - aquilo que foi historicamente acumulado -, que se abre a possibilidade de que uma experiência se desenhe. Se a experiência tem seu ponto de adensamento no momento da transmissão, poderíamos pensar que a escola operou parte de sua potencialidade quando fez passar a seu aluno o dever de fazer passar a outros o conhecimento por ele (re)construído enquanto uma versão possível da Natureza e dos objetos. Algo da sabedoria se transmitiu quando um novo passador se formou.

E já que estamos nas passagens, é na travessia da generalização do conhecimento à particularidade da forma como alguém o narra que vemos se desdobrar a singularidade de um recorte que deixa cair algo. Sim, por que toda narrativa sobre o vivido implica uma versão estilística, implica que os traços de quem narra sejam inscritos, redundando numa versão do acontecido. Lembremos do poeta: "Queria que a minha voz tivesse um formato de canto. Porque eu não sou da informática, eu sou da invencionática".

Se a informática nos abriu a possibilidade de um acúmulo sem bordas do até então produzido como conhecimento, realizando o sonho de um reservatório infinito da informação, a invencionática nos coloca diante de uma questão crucial: qual o recorte que vamos dar a esse espaço ilimitado da informação? Como vamos fazer passear a tesoura das palavras, elegendo o quê, em que seqüência, com que desenho? Ao nos colocarmos esta indagação, já estamos no campo da invencionática, da necessidade de nos encontrarmos com nossas marcas estilísticas naquilo que construímos como narrativa endereçada ao Outro. Harald Weinrich (2001), num interessante livro sobre a arte e a crítica do esquecimento, faz a instigante afirmação: "tornou-se evidente que vivemos numa sociedade super-informada, na qual a verdadeira sabedoria não consiste em adquirir informações [...], mas em rejeitá-las" (p.285). A verdadeira sabedoria sobrevém da capacidade de perder, de deixar cair algo, capacidade que é posta à prova toda vez que nos empenhamos em nos apropriar de algo.

Há ainda outro elemento necessário para a produção de uma experiência, elemento cada vez mais escasso, em verdadeira extinção: o tempo. Artigo de luxo em um mundo em franca aceleração. O tempo é companheiro inseparável da experiência. A velocidade que se acelera e que pede a cada momento a produção de uma novidade resiste à estruturação de um sujeito da experiência. Não é a toa que Manoel de Barros constata: "tenho em mim este atraso de nascença". Sobre o tempo como elemento constituinte da experiência, Benjamim nos oferece uma bela imagem, "O tédio é o pássaro de sonho que choca os ovos da experiência. O menor sussurro nas folhagens o assusta. (...) Quanto mais o ouvinte se esquece de si mesmo mais se grava nele o que é ouvido" ([1936] 1994, 204-5 – grifo nosso).

Diante da falta de silêncio, nosso poeta se situa na contramão. Ele inicia e termina seu poema- prosa referindo que usa as palavras para compor seus silêncios. Palavras compondo silêncios é aquilo que fertiliza a arte da invencionática. Não palavras para suspender o silêncio, ou ainda palavras para apagá-lo, mas palavras para compô-lo. Palavras que, de modo paradoxal, sublinham o silêncio que está inscrito em cada tentativa de invencionar o mundo, em cada tentativa de produzir e transmitir um conhecimento que, pelo compartilhamento, é alçado ao patamar de legítimo.

Lembremos de um último trecho de Benjamin: "a narrativa [...] não está interessada em transmitir o ‘puro em si’ da coisa narrada, como uma informação ou um relatório. Ela mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retirá-la dele. Assim se imprime na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso" (Idem, p.205). A narrativa é uma das formas de manifestação da invencionática. A alusão à mão do oleiro em Benjamin nos catapulta para o seminário de Lacan, a Ética da Psicanálise.

Lacan toma o fazer do oleiro para pensar a criação que se sustenta, paradoxalmente, no vazio. Diz ele: "o oleiro, assim como vocês para quem eu falo, cria o vaso em torno desse vazio, com sua mão, o cria assim como o criador mítico, a partir do furo. – [...] há uma identidade entre a modelagem do significante e a introdução no real de uma hiância, de um furo" (p.153). À medida que avançamos tecendo os fios da rede significante, produzimos o texto-tecido com o qual procuramos nos abrigar das intempéries de um desamparo endêmico, ao mesmo tempo em que sublinhamos, de forma incontornável, o furo que impulsiona o fuso nesta tecelagem infinita. Enquanto houver silêncio, as palavras seguirão compondo, enquanto houver furo a rede significante seguirá sendo tecida, enquanto houver abismo entre as palavras e a Natureza, a travessia continuará sendo feita. Cabe à escola – e não só a ela – zelar pela manutenção dos litorais que nos relançam a cada dia na arte sem fim da invencionática. Só assim teremos e daremos acesso ao Grande Segredo de que nos falam os falsos poetas.

 

BARROS, Manoel. Memórias Inventadas: A Infância. São Paulo : Planeta, 2003.

BARTHES, R. Aula. São Paulo : Cultrix, 1997

BENJAMIN, Walter. Experiência e Pobreza. In: Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política. São Paulo : Brasiliense, 1996. p.114-119.

___. . [1936] O narrador. Considerações sobre a obra de Nicolai Leskov. In: Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política. São Paulo : Brasiliense, 1996. p.197-221.

LACAN, J. [1954-55] O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise. Rio de Janeiro : Jorge Zahar, 1987

___. [1959-60] A ética da psicanálise. Rio de Janeiro : Jorge Zahar, 1997

LARROSA Jorge. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Revista Brasileira de Educação. n.19, Jan/fev/mar/abr, 2002

PESSOA, Fernando. Ficções do interlúdio (1914 – 1935) Lisboa : Assírio & Alvim, 1998. p.228

WEINRICH, Harald. LETE – Arte e crítica do esquecimento. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 2001.

 

 

1 Trabalho apresentado no VI Colóquio do Lepsi na Mesa intitulada O que se transmite na escola?. Como se refere a um trabalho apresentado, o texto guarda traços de sua origem oral.