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On-line ISBN 978-85-60944-08-8

An 6 Col. LEPSI IP/FE-USP 2006

 

Estudo de caso ou relato clínico?

 

Study of case or clinical report?

 

 

Bernard Pechberty

 

 


RESUMO

A noção de caso clínico está ligada à história da medicina, e em seguida da psicopatologia e da psicologia. Na França, as ciências da educação, disciplina mais recente, utilizam pouco esse termo em função das filiações científicas diferentes dos pesquisadores clínicos. Debates epistemológicos e institucionais estão presentes. É como professor em ciências da educação e psicologia, orientando-me graças à psicanálise, que se dá minha intervenção.
No ensino, um modelo de transmissão clínica que coloca em seu centro a construção clássica do "caso", estaria exposto à crítica de uma falsa objetivação, de um distanciamento defensivo do pesquisador e de seu objeto. As curas conduzidas por Freud não são casos, elas mostram a precisão de seu trabalho entre clínica e teorização, e a complexidade de sua escrita com implicação. Em nossas pesquisas clínicas, nas ciências da educação, os dados estabelecidos no quadro da pesquisa ultrapassam amplamente a noção restritiva de caso.
Na pesquisa, a noção de relato clínico construído sobre sujeitos, grupos e instituições, parece-me mais fecunda que a de caso. A transmissão clínica diz respeito não somente a conhecimentos teóricos que o material recolhido teria para ilustrar sob a forma de vinhetas, mas também a uma relação com o saber clínico e com o inconsciente na qual se inicia o pesquisador aprendiz, e que opera em sua apropriação dos textos teóricos, dos métodos empregados, entrevistas, observações ou análises de práticas profissionais. É a transmissão de uma iniciativa clínica de pesquisa que está em jogo e que implica para o estudante a dimensão inconsciente em sua formação e seu trabalho de pesquisador. Diferentes transferências e contra-transferências estão em obra entre os monitores universitários ou profissionais, e a escrita de pesquisa deve ser testemunha disso para o estudante ou para o futuro clínico.
Além da linguagem do caso, a atenção levada à singularidade psíquica dos sujeitos estudados é decisiva, redobrada pela consideração da singularidade do pesquisador e de seu inconsciente. A transmissão clínica parece-me colocar assim a questão da construção da situação estudada e a da escrita do material psíquico exposto, através de um olhar científico – orientado pela consideração do inconsciente – para conduzir a convicção de um leitor anônimo.

Palavras-chave : Psicanálise de crianças, o si profissional, relato clínico, transmissão


ABSTRACT

The notion of clinical case is related to the history of medicine, and afterwards, psychopathology and psychology. In France, the sciences of education, a more recent subject, barely use this term because of different scientific affiliation of clinical researchers. Epistemological and institutional debates are present. It is as a sciences of education and psychology teacher, guided by psychoanalysis, that is my intervention.
In teaching, a model of clinical transmission that places in its core the classic construction of the ‘case’ would be exposed to criticisms of a false objectivation, of a defensive distance of the researcher and his/her object. The cures led by Freud are not cases, they show the precision of his work between the clinic and the theory, and the complexity of his writings with implication. In our clinical researches, in sciences of education, the set data in the research board widely overtake the restrictive notion of case.
In research, the notion of clinical report built about individuals, groups or institutions seems to be more productive than the notion of a case. The clinical transmission is concerned not only with theoretical knowledge that gathered material could illustrate through vignettes, but also with the relation with clinical knowledge and the unconscious in which the apprentice researcher starts, and that works in his/her appropriation of theoretical texts, and in the methods used, in interviews, observations or analysis of professional practices. It is the transmission of a clinical research initiative that is considered and that implies for students the unconscious dimension in his/her formation and work as a researcher. Different transferences and contra-transferences are going on between university monitors or professionals, and the writing of research should work as a witness for students or for future clinical professionals.
Beyond the language of the case, the attention towards the psychic particularity of the individuals studied is decisive, duplicated by the consideration of singularity of the researcher and his/her unconscious.

Key-words: Psychoanalysis of Children; the self professional, clinical report, transmission.


 

 

Agradeço a vocês pela recepção, bem como aos organizadores desse colóquio, e peço desculpas por minha falta de cultura em sua língua !

Sou professor pesquisador em ciências da educação. Trabalho também como psicólogo e psicanalista com crianças e famílias, numa instituição médico-educativa. A partir desses dois enfoques proponho algumas reflexões sobre nosso tema de colóquio.

Nesse sentido, eu diria que, na França, o termo caso clínico é pouco utilizado em ciências da educação, a não ser pelos psicólogos. Como essa disciplina não está presente nas formações médicas ou psicológicas, a noção de caso é vivida como medicalizante e inscrita num estilo positivista que evacua o laço psíquico que está em jogo entre o enunciador e a realidade psíquica do sujeito, objeto da formação ou da pesquisa.

Além da semântica, a transmissão da singularidade clínica de uma situação terapêutica, de ensino ou de formação parece ser a verdadeira questão. Uma singularidade inscrita no campo aberto pela psicanálise, com o objetivo de identificar dinâmicas inconscientes.

Faço uma primeira proposição: a escrita do caso na clínica pode orientar-se de duas maneiras. A primeira é antiga, e objetivante. Ela descreve uma sucessão de eventos, uma história, mas exterior e numa espécie de pseudo-realismo. Na segunda, o caso coloca em jogo a implicação e a contra-transferência do pesquisador e do clínico : ele se torna então um relato. Assim, na transmissão clínica vemos diferentes figuras, da vinheta que tem uma função pedagógica ilustrativa de uma teoria, até os "casos" que descrevem situações desenvolvidas, ou o relato que, mais uma vez, pode se tornar pseudo objetivo ou, ao contrário, descrever um processo e um encaminhamento. Isto recorta a oposição clássica entre o produto que é um resultado e o processo que acrescenta a ele uma história e uma mudança portadora de descoberta pelo pesquisador.

Prefiro falar em relato clínico, em ciências da educação e em psicologia, em nome da minha referência à orientação psicanalítica : o termo relato pretende ressaltar a importância da narração e da escrita, seu endereçamento, os determinantes transferenciais e contra-transferenciais entre o paciente e o terapeuta, entre o pesquisador e seus objetos – outros sujeitos que estão de acordo com ele.

Nesse sentido, o cruzamento das abordagens lingüística e clínica, por exemplo, nos ajuda a pensar e a melhor compreender o material em jogo. Essas observações nos remetem, historicamente, à escrita dos casos originais, de Freud, onde essas questões já se colocam (Fedida, Villa, 1999). Assim, vários traços caracterizam a escrita freudiana : o autor narrador se encarrega do discurso, mobilidade dos lugares enunciativos, endereçamento a terceiros específicos (Rudelic- Fernandez, 1999).

Apresentarei dois exemplos em que encontrei a questão dos casos e de seu relato clínico. O primeiro se refere a meu trabalho de doutorado sobre a evolução da psicanálise da criança e seus modelos. O segundo, relativo às ciências da educação, desenvolve determinantes de formação e de pesquisa sobre grupos clínicos de análise de práticas profissionais com professores.

Em meu primeiro trabalho, descrevo de que modo novos modelos trazidos pelos psicanalistas de crianças fizeram evoluir a metapsicologia freudiana inicial. Durante essa pesquisa, encontrei a apresentação de casos feita por terapeutas : os clínicos mostram sua prática, descrevem-na e querem assim transmitir suas proposições teóricas. Esses casos são interativos, como Freud nos ensinou a fazer. Do mesmo modo, M. Klein inventa, a partir de "conhecimentos gerais", como ela escreve no célebre "caso Dick". Ele põe sua teoria à prova, descreve sua conduta na cura em "Psicanálise de uma criança". Ela constrói, através de seu relato, um sentido que está ligado à sua relação com o saber psicanalítico e a seus destinatários. Constantemente criticou-se o aspecto dogmático desses casos, destinados a formar discípulos e ilustrar a verdade da teoria kleiniana. Os terapeutas em formação encontrariam aí um modelo de modo de fazer técnico e um saber definitivo posto em ato.

Mas na construção desses escritos, vê-se também de que modo M.Klein quer nos transmitir pistas de suas descobertas. Em seu encontro com Rita, que ela nos descreve a menina de 3 anos que tem angústias e pesadelos terríveis. A terapeuta vai à sua casa, mas Rita não quer olhar para ela e vai para o jardim. M. Klein a acompanha e logo interpreta sua transferência negativa. Ela associa seus medos noturnos, em que uma bruxa vem perseguí-la e a transferência de Rita, o que tem efeitos terapêuticos imediatos. Num relato tardio desse encontro, M. Klein descreve suas dúvidas e intervém diretamente sobre a transferência negativa, "o que não se fazia na época" (M. Klein, 1955, in J. M. Petot, 1979). Ela mostra de que modo, através de seu sentimento que faz interpretação, ela encontra novas e definitivas pistas para a psicanálise da criança.

Quando D. Winnicott nos transmite seu pensamento clínico, ele compõe a apresentação de seus casos. O encontro com a pequena Piggle é descrito como uma "psicanálise sob demanda", em algumas sessões (D. Winnicott, 1977). O relato se apresenta como uma conversa entre ele e a criança. Em "A consulta terapêutica e a criança",(D. Winnicott, 1972), ele quer transmitir sua convicção de que algumas consultas psicanalíticas têm tanto efeito quanto uma psicoterapia longa e cara. Nesta obra, os relatos de consultas são breves, e descrevem a regressão rápida, com trocas faladas a partir dos "squiggles" desenhados. A brevidade dos relatos tem uma brevidade demonstrativa e corresponde à densidade das dinâmicas psíquicas mobilizadas em pouco tempo.

F. Dolto nos fala igualmente em seus seminários de psicanálise com crianças, através de histórias ou de vinhetas, de sua prática do pagamento simbólico : a criança é mostrada aí como responsável por seu tratamento, que ela deve pagar, a seu modo, com dinheiro ou objetos. Em sua formação clínica, jovens terapeutas de crianças imitaram seu modo de fazer e, por exemplo, a técnica do pagamento. Eles imitavam esse modo de fazer identificando-se com F. Dolto. A experiência mostrou que essa identificação não durava. Por que? Esta técnica contada, descrita nos "casos", só adquire sentido através da concepção da criança própria dessa psicanalista. Ela é sujeito do inconsciente, pois é imediatamente inscrita na linguagem, como o adulto. Ela está imediatamente situada no simbólico, como diz F.Dolto, na filiação teórica de J.Lacan.

É impossível tornar-se F. Dolto, M. Klein ou D. Winnicott. A transmissão desses diferentes modos de fazer, de interpretar ou de modificar o quadro só adquirem sentido através de uma experiência psíquica particular. Elas supõem a interiorização e a aceitação de uma certa concepção do infantil que pertence a cada analista. O clínico que aprendeu através de casos terá que incorporar esse desvio teórico e dar-lhe sentido com sua própria subjetividade , e em se posicionando. Vemos assim operarem-se diversos modos de transmissão. Assim, a descrição do squiggle, jogo dividido, faz com que se partilhem sentimentos e pensamentos, entre o terapeuta e a criança. O clínico permanece em contato com sua própria experiência infantil, através do jogo. Mas isso só adquire um sentido de formação através do desvio teórico, onde D. Winnicott associa o brincar, o playing, com a área transicional e a experiência cultural do adulto.

A construção desses casos permite uma transmissão técnica necessária, mas é paradoxal. Ela apresenta um modelo que não o é, pois a iniciativa que subentende a técnica de um analista está ligada à sua história e às suas filiações, ao modo com que ele acolhe o infantil da criança em tratamento, e o seu. O interesse do caso não seria então remeter a outros aspectos da obra do clínico e ao que provoca mais amplamente uma discussão na cultura clínica? O relato não é mais formador se remetido a outros sentidos, potenciais, que o clínico, ou o pesquisador que vierem depois poderão construir, reinventando-o em seu nome?

Assim, privilegiei o caso como relato clínico e ressalto sua narração, ligada à história de um clínico pesquisador para destinatários – clínicos, pesquisadores – cujo lugar será determinante para dar-lhe sentido après coup.

No campo das ciências da educação, proponho agora o relato de certos elementos clínicos provindos de um grupo de análise das práticas que realizei como professor durante quatro anos, num liceu técnico e profissional. A iniciativa adotada inspira-se naquela iniciada por Balint, favorecendo os laços entre as dinâmicas psíquicas latentes e a compreensão da prática profissional, segundo o método associativo vindo da psicanálise. A cada sessão propõe-se a um professor o relato de um momento de questionamento em sua prática – (questão, termo que utilizo mais do que problema – podemos evocar assim situações que vão "muito bem" e no entanto estão carregadas de determinantes inconscientes). Portanto, é um relato associativo que se estabelece, constituído por pensamentos, imagens e emoções, e os participantes do grupo são convidados a reagir em seu nome e também em resposta ao discurso. Este relato, desenvolvido pelo clínico e endereçado ao grupo e uma certa imagem de si mesmo, fará retorno sobre o locutor. Através das associações que ele faz, o professor que expõe se encontra entre a linearidade do relato e sua desconstrução, o que atualiza sua divisão subjetiva, e a descoberta de elementos inconscientes, ativos na prática. Graças à duração do trabalho (uma semana, um ano), a compreensão de conflitos psíquicos latentes e de repetições inconscientes sobre a cena profissional será possível. Laços inéditos se formam entre o que é dito sobre o trabalho no liceu, com colegas e alunos, e os fragmentos do íntimo, do privado, do sentimento singular.

Nesse grupo, que reunia 10 professores, o trabalho foi complexo. Durante vários meses, havia uma queixa onipresente, e os relatos diziam respeito a alunos descritos como incapazes de trabalhar e agressivos, mas também à instituição, que não dava suporte e aos diretores do estabelecimento, que não protegiam os professores. Os participantes descreviam situações e, se delas participavam, eram cada vez mais como silhuetas de personagens fixos, sempre vítimas dos alunos e da instituição ameaçadora. Os relatos se apresentavam como uma espécie de pseudo-realidade, como uma observação "objetiva" de situação, como um "estudo de caso". Eles faziam pensar em quadros fixos, descrevendo sucessões de comportamentos dos alunos, e somente as críticas e a queixa davam cor aos relatos.

Todo o grupo aderia a esses discursos individuais que nada podiam dizer subjetivamente sobre o sofrimento descrito. Os participantes não faziam idas e voltas associativas sobre os próprios alunos e sobre eles mesmos, o que os teria implicado numa experiência intersubjetiva. Todos os movimentos psíquicos eram dirigidos de modo acusatório para um exterior ameaçador. Nenhum questionamento sobre a relação era possível. Meu esforço de condução consistiu, durante vários meses, a querer inserir cada sujeito em seu discurso, e isto de modo recorrente. Regularmente, voltava-me a mesma imagem de remar contra a corrente num mar que ameaçava tornar-se violento, em direção a um horizonte fechado, sem esperança. Eu pressentia a ameaça dessa tempestade cada vez mais preocupante e cansativa uma vez que seus sinais estavam em toda parte sem que ela viesse jamais.

A evolução do trabalho e do grupo se deu quando Martine, professora calma, tolerante e humanista tomou a palavra, fora de si, após um curso de literatura onde as coisas haviam se passado muito mal. Em seu relato, ela exprimiu sua raiva contra seus alunos. Ela os representava como "jovens apodrecidos pelo dinheiro e o consumo", com propósitos muito violentos. Durante esta evocação, ela enunciava algo de insuportável para ela, mas também sua relação com ideais muito antigos. Seu relato descolava do presente da situação para ir na direção de uma história. Suas associações a levavam ao tempo de sua adolescência, à idade de seus alunos, quando ela era ao mesmo tempo militante política para mudar a sociedade e boa aluna. Atrás da raiva, emergia a culpa de não mais encontrar o contato, ou de não poder compreender os alunos adolescentes, quer dizer, identificar-se com eles e com seu mundo. Seu discurso reunia diferentes níveis psíquicos e permitia-lhe sentir e formular a distância entre seus ideais narcísicos e a decepção inevitável que a eles se seguia. Através de seu relato, suas palavras e seus afetos dolorosos, Martine se deslocava psiquicamente. Ela compreendia que ela não deveria mais esperar de seus alunos que eles correspondessem às suas expectativas enraizadas em sua própria história. Ela começou a olhar de modo diferente as condutas dos alunos em classe, cuja excitação violenta se alimentava de sua própria rejeição. Esta elaboração pelo relato levava-a a sentir-se menos atacada pelos alunos, nas ressonâncias de sua parte adolescente que ela descobriu estar sempre viva em seus valores e em sua profissão.

A partir dessa tomada da palavra, o clima do grupo mudou e um trabalho psíquico centrado sobre as pessoas pôde começar. Os participantes também começaram a dar um outro sentido às suas críticas. Estas se baseavam sobre vivências de perseguição inteiramente atribuídas ao exterior. Agora, os professores tomavam consciência de sua própria rejeição em relação a esses alunos que estavam tão longe de suas expectativas e das imagens de alunos ideais. Eles se diferenciavam, cada um em seu ritmo, entravam mais em contato com a realidade de seus alunos e de seu próprio Si de aluno, adolescente ou criança, inconsciente mas presente em sua profissão e em sua personalidade profissional. Por Si-profissional, indicamos o conjunto dos níveis psíquicos, inclusive inconscientes, que sustentam a identidade profissional do professor. Podemos assim falar da influência do si-aluno (ou do si-criança) presente na personalidade profissional do professor.

Novos e surpreendentes laços poderiam se estabelecer. Uma professora de alemão que expressava seu desprezo pela falta de cultura de seus alunos associou suas críticas à sua dificuldade em exercer a autoridade, em colocar limites, o que a remeteu à sua história de aluna e de criança. Ela expressou seu profundo tédio como aluna de antigamente, durante as aulas, inclusive de alemão, sua dificuldade em tomar a palavra, sua insatisfação com certos professores. Como outra professora de línguas, que falou do quanto ela estava paralisada pelo medo da violência de seus alunos, mas também pela sua, quando ela se permitia falar de seus sentimentos em classe. A partir daí, os laços se estabeleceram mais facilmente, e os conflitos do Si professor e do si aluno orientavam-se nos relatos para identificações inconscientes sempre vivas. A enunciação adquiria uma outra densidade e dava conta da multiplicidade das facetas do locutor. Os discursos e os relatos eram mais flexíveis, e testemunhavam das idas e voltas entre as situações expostas e os determinantes psíquicos que vinham à consciência. Eu não tinha mais a impressão de remar na tempestade, e o horizonte fechado aparecia-me agora como uma parte da experiência inconsciente dos participantes que me havia sido transmitida, e a angústia de se afogar ou de afundar estava sem dúvida ligada à sua própria desorientação num grupo que lhes permitia enfim falar e compreender de outro modo.

Outros fenômenos surgiram. Depois dessa virada, os participantes trocaram algumas vezes, numa discussão mais implicada, vivências comuns e singulares sobre sua feminilidade difícil de assumir em classe, sobre as relações sexuadas com alunos da classe, sobre as roupas. Esses tempos de partilha em grupo intercambiavam-se com relatos individuais. Esses momentos de "conversas" parecem-se ser próprios da conduta de um grupo clínico, em instituição. Do mesmo modo, os participantes retiravam o anonimato dos alunos evocados, o que permitia confrontar as representações dos diversos participantes, prática que eu admiti. Esta condução de grupo também me ensinou a ser mais flexível em minha orientação e a considerar a particularidade do enquadre.

Voltei a esse material recente para a palestra de hoje. Minha tentativa é de não desenvolver os acontecimentos sucessivos ou fazer a crônica de um grupo, mas descrever um momento de passagem que me surpreendeu e me fez compreender de outro modo uma experiência vivida durante essa condução. Assim, faço um relato desse momento de mutação e de seus efeitos, para melhor captar a dinâmica própria desse grupo de professores, sua ligação com a instituição, o lugar da ilusão grupal e narcísica, a segurança construída. Escrevendo esse texto, percebo a distância entre a espontaneidade dos relatos e das trocas vividas no grupo e a dificuldade da escrita em descrever o clima tão particular desse trabalho. Várias temporalidades parecem-me em jogo, a da experiência psíquica do grupo, de meu sentimento durante a condução e a da escrita après coup para este texto.

Tento descrever uma atmosfera e uma dinâmica nas quais estive imerso, tanto quanto os participantes. Esta mudança grupal me permite pensar também sobre a pertinência de certos conceitos clínicos. Assim, o recurso ao conceito de ilusão grupal de D. Anzieu (D.Anzieu, 1975) e suas colocações posteriores me parecem apropriados para descrever dois momentos dessa experiência, o primeiro designando um movimento defensivo do grupo, centrado sobre a queixa, e o segundo ressaltando, após a intervenção de Martine, a passagem a uma segurança narcísica adquirida que vai, a partir daí, sustentar o trabalho subjetivo dos relatos e a maturação desse grupo. Isto se cruza com outras reflexões ou pesquisas clínicas e teóricas em curso no lugar do narcisismo no aspecto profissional.

Quer se trate de "casos" individuais relatados na clínica de crianças, ou da descrição das dinâmicas pessoais em grupo (C. Blanchard, Laville, 1998), colocam-se aí questões complexas. Essas questões, como disse, já estão presentes na escrita e nos casos descritos por S.Freud, no relato de suas cinco grandes psicanálises. O relato, ou a "história" de casos manifestam assim vários pólos de tensão que assinalam o caráter clínico e psicanalítico : essas tensões se referem a laços entre o singular descrito e sua universalização possível, entre a intersubjetividade e a objetivação da subjetividade (M. Bertrand, 2004), entre a empatia com o sofrimento psíquico que aparece na formação ou na busca e compreensão dos processos, entre as ida e vindas da contra-transferência (ou do desejo de analisar, numa formulação lacaniana) e o material clínico, enfim, a questão do tempo que acabo de citar. Na medida em que o relato clínico solicita esta diversidade de níveis é que se dá sua transmissão, de modo vivo, nos registros da formação ou da pesquisa. O relato clínico não mostraria então um pensamento em movimento confrontado a um objeto - as dinâmicas inconscientes – que exige mais precisão na descrição do que ele consegue esconder?

Se ele é lido como ferramenta de informação, o relato clínico indica regras e responde à questão do como fazer, como cuidar ou formar. Vemos D. Winnicott trabalhar com o squiggle a partir de seus relatos de consultas. Podemos também implantar um grupo clínico a partir da descrição de seu dispositivo e de suas regras – o que eu não fiz no fragmento relatado. Mas o leitor, futuro clínico em formação, ao implantar um squiggle ou um dispositivo de grupo, não pode, a não ser imaginariamente, reproduzir ou imitar o estilo singular de terapia ou de condução que pertencem apenas a seu autor. Do mesmo modo, o pesquisador reinventa apropriando-se de elementos de uma cultura clínica nos limites de sua pesquisa. Coloca-se a questão de dar conta dos processos, das dinâmicas às quais ele também está submetido.

A questão da nomeação pelo caso ou pelo relato parece-me então de cultura profissional e de determinantes institucionais que devem ser explicitados, mas que têm um valor secundário. No fim de contas, é a consideração da singularidade inconsciente do relato, objeto do relato e de suas exigências que dá seu sentido clínico à transmissão, quer se trate da forma do caso ou da vinheta articulada a um pensamento. O relato descreve então uma dinâmica que transmite a leitores imprevisíveis, clínicos ou pesquisadores, uma escrita paradoxal. Esta escrita é racional, mas também deve representar uma realidade psíquica inconsciente, feita de materiais heterogêneos, dos quais uma parte escapa necessariamente a qualquer saber. A escrita clínica coloca assim o desafio de fazer ouvir, em sua forma especifica, o equivalente daquilo que cada um experimenta quando aceita perder um certo domínio e deixar operar os processos primários, dentro dos enquadres que permitam sua emergência.

É disso que queria falar e relatar. Este é o caminho de uma descoberta que me parece estar em jogo na transmissão clínica e que deve ser sempre recomeçada.

Obrigado pela escuta de vocês.

 

Referências Bibliográficas

Anzieu D. 1975. Le groupe et l’inconscient, Paris, Dunod.

Bertrand M. 2004. Trois défis pour la psychanalyse, Paris, Dunod.

Blanchard Laville 1998. L’apport du groupe d’inspiration Balint aux enseignants et aux formateurs d’enseignants, in Analyser les pratiques professionnelles (coord. Blanchard-Laville C., Fablet D.), Paris, L’harmattan.

Fédida P. ; Villa F. (sous la direction de) 1999. Le cas en controverse, Paris, PUF.

Golse B. ; Missonnier S. 2005 (sous la direction de) Récit, attachement et psychanalyse, Ramonville, Erès.

Pechberty B. 2000, L’infantile et la clinique de l’enfant, Paris, Dunod.

Winnicott D. 1972, La consultation thérapeutique et l’enfant, Paris, Gallimard.