6Study of case or clinical report?O relato de uma experiência: projeto Aleph Psicanálise& Educação author indexsubject indexsearch form
Home Pagealphabetic event listing  




On-line ISBN 978-85-60944-08-8

An 6 Col. LEPSI IP/FE-USP 2006

 

Culturas juvenis X cultura escolar: repensando as noções de (in)disciplina e autoridade no âmbito da educação*

 

Youth cultures X school culture: thinking over the notions of (in)discipline and authority in an educational approach

 

 

Mônica do Amaral

Docente da FEUSP e Membro Associado da SBPSP. monicagta@usp.br

 

 


RESUMO

A etnografia do olhar, tal como propõe Canevacci, combinada com um olhar atento às manifestações do erotismo e protesto juvenis, pode fornecer as bases epistemológicas de uma crítica contemporânea à razão ordenadora da cultura escolar. O divórcio entre a racionalidade (da organização da escola e dos conteúdos ensinados) e o processo de subjetivação dos alunos, tem causado danos irreparáveis à autoridade escolar. A idéia é fornecer bases para se repensar as noções de (in)disciplina e autoridade na educação, repensando o ato de transmissão a partir de uma escuta atenta às vozes dissonantes presentes nas culturas juvenis das metrópoles.

Palavras-chave: culturas juvenis - etnografia do olhar – o ato de transmissão renovado


ABSTRACT

The ethnography of the look [‘regard’, in French], as proposed by Canevacci, combined with an attentive look to youth manifestation of eroticism and protest may offer epistemological basis of a contemporary criticism of the ordering reason of the school culture. The divorce between rationality (of school organization and taught contents) and the students’ process of subjectivation have caused irreparable harm to school authority. The intention is to offer basis to think over the notions of (in)discipline and authority in education, re-thinking the action of transmission by means of an attentive listening to the dissonant voices present in youth cultures in the metropolis.

Key-words: youth cultures - ethnography of the look [‘regard’] - a renewed action of transmission


 

 

Introdução:

As reflexões que tenho feito a propósito de uma pesquisa/intervenção que recém iniciei em uma escola pública (em outubro de 2006) têm me levado a pensar em que medida os problemas relativos à autoridade do professor e de seu correlato, a indisciplina dos alunos em sala de aula, estariam relacionados com um tipo de razão ordenadora predominante na cultura escolar que tende a expurgar do ato de transmissão tudo aquilo que diz respeito aos afetos, ou ao imaginário juvenil, os quais, no entanto, parecem dar vida às vozes dissonantes das grandes metrópoles. E por que não? À própria escola. Na verdade, tem-se produzido, a meu ver, um verdadeiro divórcio entre a racionalidade (da organização da escola e dos conteúdos ensinados) e a subjetivação dos alunos.

Em um projeto de pesquisa anterior (biênio 2004-2005), com o objetivo de apreender o mal-estar reinante nas escolas públicas1, procurei analisar as relações de sentido que permeavam as atuações-limite2 dos jovens - em suas vertentes clínica e sócio-educativa – centrando particularmente a atenção em torno da qualidade do vínculo estabelecido entre professores e alunos e, em última instância, no interesse destes últimos pelo saber que lhes era oferecido pela escola. Estava atenta à complexidade do campo transferencial3 que se estabelecia entre professores e alunos, mas também entre os professores e os elementos considerados "estranhos" à cultura escolar (como alunos de fora, pais, profissionais e ONGs com propostas de desenvolver projetos na escola). Na verdade, tenho me interessado por investigar em que medida tais atuações – limite entre os jovens não se constituiriam em uma forma, desesperada e desesperançada, de se constituírem como sujeitos em uma sociedade que não lhes oferecem o esteio necessário para as suas experimentações visando a construção de um projeto para suas vidas. De outro lado, parece-me que o mundo adulto não se encontra preparado para acolher as angústias e chamados juvenis para um outro tipo de relação com o legado da cultura ocidental.

Dentre as questões que me chamou a atenção, saliento o desânimo da maioria dos professores entrevistados diante do que reconheciam como perda de prestígio do professor e de sua autoridade. Sentiam-se ameaçados por todos os lados: pelos alunos que não lhes obedeciam fazendo algazarra em sala de aula, e até mesmo "achincalhando" com eles quando exigiam dos mesmos uma "postura de aluno em sala de aula" (termo usado para se referir ao comportamento adequado à cultura escolar tradicional) ou mesmo concentração nas atividades em sala de aula; a Secretaria da Educação que, por sua vez, exigia sempre mais competência dos professores para lidar com os conteúdos e a inclusão dos diferentes; os pais que exigiam maior envolvimento da parte deles em atividades extra-escolares e os profissionais, que vinham "lhes ensinar" o que estavam cansados de saber – ou seja, como dar aula.

De outro lado, os alunos pareciam cada vez mais indiferentes ao que os professores ou a escola pudessem lhes oferecer, restando-lhes o prazer de estar uns com os outros, de relaxar e nada fazer que lhes custassem muito envolvimento ou esforço. Era a típica turma bof (termo utilizado na França que demonstra o tédio dos jovens para com tudo que venha do mundo adulto). Mas, ao contrário do que se poderia pensar, era nítida a ânsia por serem escutados, a vontade de vir a ter maior proximidade com os professores, de que fossem compreendidos em suas necessidades emocionais e até mesmo em seus gostos por música, e outros assuntos da atualidade que gostariam de ver debatidos em sala de aula.

A lacuna entre o passado e o futuro - considerada por Hannah Arendt (1992) central para se compreender o declínio da autoridade, assim como a perda de referências na tradição (greco-romana) da Civilização Ocidental - fazia-se ali presente por meio do mais completo descompasso entre as expectativas dos professores e as dos alunos, inclusive no que diz respeito ao significado da escola, que parece que vem perdendo espaço em relação a outros meios propiciadores de formação para a juventude de hoje.

Por tudo isso, tem ficado cada vez mais claro para mim que é preciso conhecer o que pensam esses jovens, quais são as manifestações culturais sobre as quais tem se interessado e porque consideram que a escola tem cada vez menos a lhes oferecer - enfim, o porquê do desencanto com a escola. De outro lado, é preciso romper com a resistência por parte dos professores e da própria escola em repensar seu modo de funcionamento, suas prioridades e sua própria concepção acerca do exercício da autoridade em sala de aula. E fazê-los ver que o desinteresse dos alunos em relação ao intercâmbio com o mundo adulto, talvez seja um sintoma de que a escola não está mais correspondendo às necessidades dos alunos para o seu crescimento emocional e até mesmo intelectual.

Pois, foi pensando nessa experiência anterior que propus recentemente, junto à Fapesp, um Projeto de Pesquisa de Melhoria do Ensino Público, visando abordar exclusivamente a dinâmica do cotidiano escolar de uma escola pública do ensino fundamental, com o objetivo de promover discussões e desenvolver projetos em seu interior que contribuam para a melhoria do ambiente em sala de aula, ou melhor, do intercâmbio entre alunos e professores, e conseqüentemente, contribuir para um ensino melhor. A idéia central é analisar como as noções de autoridade e tradição, tal como concebidas pela cultura escolar, podem ser repensadas a partir das possíveis "mutações culturais" promovidas pelo amplo espectro de culturas juvenis cultivadas pelos adolescentes. Nesse sentido, embora pretenda continuar pesquisando acerca das incidências das tendências à desagregação da sociedade contemporânea sobre a construção/desconstrução da identidade dos adolescentes, o objetivo é desenvolver um olhar atento voltado para as formas criativas e de protesto encontradas por eles, de expressão de suas necessidades emocionais e culturais, que estariam presentes em suas preferências musicais, de dança e outras formas plásticas de expressão artística. Considero, ainda, fundamental investigar, para além do processo de precarização das condições de trabalho do professor, como as novas tendências da cultura, em que prevalece o vazio e o individualismo exacerbados, estão presentes no desânimo e na falta de disposição por parte dos professores para repensar sua atuação em sala de aula, impedindo-os muitas vezes de visualizar suas próprias iniciativas criativas, capazes de tornar mais viva e significativa a qualidade das relações estabelecidas no cotidiano escolar. Por fim, pretendo mobilizar professores, estagiários e alunos em torno de um projeto de melhoria do ensino e da própria relação do adolescente com a escola.

O projeto pretende ainda promover uma espécie de ampliação do espaço educativo, estendendo o debate para a comunidade que envolve o entorno da escola. Para tanto, tenho procurado articular minha pesquisa na escola, com as atividades desenvolvidas pela ONG, Casulo, com longa experiência de trabalho comunitário dirigido em especial à população juvenil - entre 12 e 24 anos - na região (no bairro Real Parque). A idéia é envolver professores, estagiários4 e orientandos de mestrado e doutorado, mais diretamente em sub-projetos de pesquisa que visem a melhoria do ensino público.

Como uma forma de ampliar essa discussão, proponho retomar, em seguida, um debate promovido por um estudioso das culturas juvenis na Itália, Massimo Canevacci, e analisar em que medida seu olhar "antrológico pós-moderno" pode nos auxiliar a refletir sobre o papel de tais manifestações culturais na escola pública brasileira. Não sem antes retomar uma discussão semelhante feita no seio da antropologia brasileira, através do testemunho de Gilberto Velho.A intenção é retomar alguns aspectos desse debate no sentido de nele se inspirar para analisar as culturas juvenis: desde as que tem suas raízes nas culturas tradicionais (a umbanda, o maracatu), ou ainda as que dão continuidade aos movimentos de oposição juvenil às formas de discriminação social (como o hip-hop), até aqueles movimentos que pretendem criar algo totalmente novo sem vinculação com o passado, como as músicas techno, os movimentos anarco-punks, ou mesmo, a body-art, etc.

Neste artigo, procurarei me ater apenas às questões que tem surgido do ponto de vista epistemológico, procurando ver em que medida pode se articular essa visão antropológica contemporânea com a psicanálise, concebida de acordo com a vertente da teoria dos campos.

 

Uma questão de método: da antropologia à psicanálise

Antes de adentrarmos nas discussões ensejadas por Máximo Canevacci acerca das tendências contemporâneas de manifestação das culturas juvenis nas metrópoles, centrando-se particularmente na realidade européia, gostaria de retomar um debate realizado pela antropologia no Brasil, cujas tendências procuro recuperar por meio de um artigo do professor Gilberto Velho, publicado na coletânea, Culturas jovens – novos mapas do afeto, organizada por Maria Isabel Mendes de Almeida e Fernanda Eugênio (2006).

Chegando ao término da leitura desta interessante coletânea - resultante do esforço conjunto de professores e pesquisadores, sobretudo do R.J., ligados às áreas de Antropologia Social, Sociologia e Psicologia Clínica - chamou-me a atenção o fato de Gilberto Velho, Prof. Titular de Antropologia Social do Museu Nacional da UFRJ, autor do epílogo, conceber a juventude como "uma categoria complexa e heterogênea",cuja diversidade vem sendo analisada, não pelo viés sóciocêntrico, mas em termos de "ethos, estilos de vida, visões de mundo", que compõem o que autor chama de "modos de construção social da realidade".

Nesse sentido, o estudo das identidades juvenis deverá ser feito pelo mapeamento da construção social das mesmas, procurando-se identificar os multipertencimentos dos indivíduos. Inspirando-se em Schutz, em seu livro Fenomenologia e Relações Sociais (1979), salienta a importância de se analisar, no mundo contemporâneo, o trânsito permanente dos indivíduos entre mundos socioculturais e campos distintos de significado. Até mesmo as noções de geração e as classificações etário-geracionais são passíveis de variações histórico-culturais, não podendo, pois, ser concebidas como categorias universais.

Ressalta ainda que a antropologia brasileira contemporânea tem analisado a construção das identidades juvenis, seus projetos e trajetórias sociais como "um campo de possibilidades"5, cujo terreno inicial é constituído pelas relações familiares, mas que se estende a inúmeros outros campos, que podem se tornar objeto de pesquisa, tais como: sua inserção na escola, as relações de amizade e namoro, esporte, transgressões, profissionalização, entre outros.

Considera que embora já tenhamos ultrapassado a era das manifestações da contra-cultura dos anos 60 e 70, ainda hoje a juventude expressa seu forte anseio de participação política, como foi o caso dos "cara-pintadas", cuja participação no processo de deposição do ex-presidente Fernando Collor fora essencial. Do ponto de vista cultural, considera que o movimento internacional do New Age, de algum modo deu continuidade ao movimento dos anos 60, com seus diferentes estilos de vida alternativos. Está se referindo aos movimentos musicais do funk, hip hop, forró, assim como os tradicionais samba e chorinho, que tem estimulado "interações interclasses e interétnicas inéditas pela sua extensão e profundidade"(p.197). Pondera, de outro lado, que o desenvolvimento da técnica(informática) está difundindo novas formas de socialização, de namoro e amizade, que antes seriam inacessíveis pela distância geográfica ou até mesmo social. Menciona ainda como a forte preocupação com a saúde tem fomentado os esportes entre a juventude e se constituído em fator de aglutinação. Também a relação entre os gêneros tem sido alterada, com a maior liberdade sexual e o maior espaço conquistado pelas mulheres, sendo uma de suas manifestações o "ficar".

Enfim, a idéia do autor é de que além do fato da identidade juvenil ser construída a partir de diferentes lugares, a conjugação da música, do esporte e dessas novas formas de sociabilidade, estaria proporcionando uma maior interação entre pessoas de origens e meios sociais distintos. Na verdade, essa é uma questão a ser investigada em São Paulo, pois está se referindo a uma realidade muito presente no Rio de Janeiro.

O autor chama a atenção, portanto, para a variedade e a riqueza das manifestações político-culturais e até mesmo afetivo-sexuais que não poderia ser analisada segundo os critérios de uma crítica ideológica apoiada nas experiências dos anos 60/70.

O estudo do amplo espectro das culturas juvenis contemporâneas, aliado ao fato de estar convencida de que a potência crítica das mesmas subsiste, embora suas formas de manifestação tenham mudado radicalmente, é que me fez entrar em contato com as investigações de Máximo Canevacci, antropólogo italiano que vem apontando o papel fundamental das chamadas "culturas extremas" juvenis, portadoras de uma crítica social que se faz presente acompanhando de perto o que há de mais massificante na cultura promovida pela Indústria cultural e, desse modo, realizam uma espécie de mimese que percorre o objeto e com ele se mistura, fazendo-o explodir por dentro. Ao conhecer algumas manifestações culturais entre os jovens da periferia de São Paulo, levantamos a hipótese de que as músicas de protesto urbano, como o hip-hop ou mesmo algumas derivadas de culturas tradicionais, como a umbanda, o maracatu e o caribó, parecem exercer uma função semelhante. A crítica de hoje, segundo o autor, diferentemente dos anos 60, deixou de ser feita pelo enfrentamento da cultura dominante por meio de uma contra-cultura, passando muito mais por uma espécie de entrada disruptiva (que promove cortes no interior do discurso, fazendo-o explodir por dentro) na cultura pulverizada das metrópoles, resgatando em suas inúmeras manifestações formas de contestação, muitas vezes dilacerantes, a uma razão ordenadora.

Eu diria, no entanto, que podemos concordar em parte com Gilberto Velho, de que a participação política juvenil no Brasil não desapareceu em prol de outras formas de manifestação cultural, como de algum modo sustenta Canevacci, mas que talvez, dependendo da classe social, se formos pensar sobretudo nos jovens pobres das grandes cidades, parece prevalecer no microcosmo escolar da rede pública de ensino, algo muito próximo da idéia de "caos organizador" sustentada por Lipovetsky (1992), outro pensador contemporâneo, de acordo com o qual convivem, lado a lado, a ordem e a desordem, resultando na fragilização cada vez maior dos indivíduos, que no caso da escola envolve a subjetividade de professores e alunos. Uma conjuntura extremamente desfavorável para uma manifestação política propriamente dita, fazendo emergir muito mais fragmentos de protesto ao lado do tráfico e do crime.

Considerando tais nuances que diferenciam uma e outra realidade dos jovens das metrópoles no Brasil, de um lado, e nos países de primeiro mundo, de outro, há, no entanto, uma espécie de inspiração teórico-metodológica de nossa pesquisa no tipo de investigação antropológica realizada por M. Canevacci sobre as culturas juvenis, cujas idéias encontram inspiração, por sua vez, na linha de pensamento filosófico de Bataille. Massimo Canevacci, em seu artigo "Eróptica: etnografia palpitante para um olhar díspar"(2005b) propõe uma espécie de etnografia do olhar que possa se abrir para o "sentir polissensorial", em que se articulam as dimensões estética e antropológica. Propõe o que denomina de "eróptica", uma espécie de conceito híbrido entre o olho e o erotismo. Aqui o autor toma de empréstimo as idéias desenvolvidas por Bataille em duas de suas obras – As lágrimas de Eros (1995) e História do olho (2003)- particularmente no que se refere à arte deste de proceder a uma espécie de leitura transdisciplinar do real – transitando entre a psicanálise, o surrealismo, a antropologia e a literatura - dando ensejo ao que M.Canevacci vai chamar de "olho participante" (em que o pesquisador se põe a olhar e, ao mesmo tempo, deixa-se olhar). A meu ver, o conceito de "Eróptica" assim como de "olho participante" são fundamentais tanto para repensar o modo de fazer pesquisa como na leitura das culturais juvenis, tão ricas em manifestações "polifônicas" e polissensíveis".

Considero, nesse sentido, que essa forma de abordar o método etnográfico de pesquisa confere não apenas à antropologia, mas também à psicanálise, instrumentos de pesquisa fundamentais que permitirão encontrar nas formas de manifestação das culturas juvenis os elementos que têm sido expurgados da razão ordenadora da escola.

A idéia é que talvez a razão reinante na cultura escolar, sustentada por professores, coordenadores e direção da escola de ensino médio e fundamental (respeitados seus diferentes matizes) possa ser rompida e renovada por dentro a partir do contato com o que há de mais crítico e transformador das culturas juvenis; estas, portadoras das vozes dissonantes e marginalizadas, mencionadas pelos autores supra-citados como potencialmente críticas.

Seria interessante analisar os pontos de convergência entre o método antropológico proposto por Canevacci, que inspirado em Bataille, propõe um método etnográfico pós-moderno, "eróptico", e o método psicanalítico, entendido como método de ruptura de campos, que faz emergir a verdade subversiva que estaria contida no marginal, no acessório, na periferia ou mesmo no fragmento.Com isso rompe-se com todo modelo conclusivo ou com pretensões totalizantes e propõe-se, ao contrário, conforme salientara Habermas (2002), "o rastrear intransigente das mediações, das pressuposições e das dependências ocultas" (p.263).

Nesse sentido, as idéias de Bataille e Canevacci interessam-me pelo fato de apontarem para um recorte epistemológico que, ao romper com métodos e conceitos totalizantes, permitem identificar e rastrear o potencial crítico contido em tudo aquilo que fora expurgado da razão ordenadora da modernidade. Uma questão que me parece estar presente nos embates entre a cultura escolar e as culturas juvenis, mas cuja trama está sendo objeto de investigação em nossa pesquisa em andamento.

 

As intervenções em sala de aula – uma demonstração de quão a escola pública vai mal e aquela, um pouco pior.

Numa das salas, da parte da manhã, em que os alunos da 8ª série estão desde o início do ano sem grande parte das aulas, ou seja, ficando em sala, à deriva, sem o que fazer: ou obrigados a fazer coisas sem sentido, como palavras cruzadas e redações que jamais serão lidas por alguém, durante cinco a seis horas por dia!

O interessante é que esta sala era o próprio reflexo do caos organizador daquela escola: não tinham aula, não havia referência alguma de um adulto que com eles estivesse preocupado, com sua formação ou o que quer que seja. Quando entramos na sala para fazer uma atividade com eles, estavam desconfiados, agitados, falando sozinhos, alguns reproduziam falas sem sentido de anúncios da TV. Somente depois de dois dias junto a eles é que foi possível estabelecer alguma organização para o trabalho e finalmente muitos deles conseguiram, com a ajuda dos profs e de alguns de meus orientandos, expressar o que sentiam por essa escola: falta de compromisso da direção, abandono e ressentimento por estarem saindo da escola sem preparo algum! No final, como uma das coordenadoras entrou na sala, exigiram que ela respondesse pela direção a uma série de questões para as quais não havia resposta, tais como: - Onde estava a diretora que lhes deixava sem aulas! E para onde ia o dinheiro da APM, uma vez que não cuidavam devidamente de suas instalações? Por fim, uma classe que não era classe conseguiu formar um grupo que se responsabilizaria por sua formatura. E assim davam a si mesmos, uma recompensa pelo descaso da escola para com eles!

E no trabalho realizado noutra turma da 8ª série, o que nos chamou a atenção, dos pesquisadores e professores, foi o pedido de socorro dos adolescentes contido na letra de rap que eles nos trouxeram. Ficou estampado o papel da escola e da sociedade para esses jovens sem muitas perspectivas para o seu futuro. Vou aqui mencionar apenas o refrão do rap que eles intitularam:

"Realidade, não fantasia"

"A falta de emprego e compreensão
transporta o piveti pra uma vida de ladrão
a falta de emprego e compreensão
mata os sonhos da pessoa e (os) joga dentro do caixão"

Ou uma frase colocada a esmo em outro cartaz, demonstrando a falta de opção dos garotos pobres da periferia de São Paulo: - Viva nessa droga de mundo, mas nunca no mundo das drogas!

Noutro grupo o lema era: - Nóis capota, mas não breca! Quando vi isso, solicitei a um professor que os fizesse pensar sobre o que tinham escrito. Esse professor,também poeta, que gosta de compor músicas e trocadilhos, logo lhes perguntou: -Então, quer dizer que a gente se mata, mas continua correndo risco? E a pergunta gerou muita discussão no grupo...

Por fim, o grupo Elementos cantou um rap curtinho, começando pelo chamado: PCC! Como os professores demonstrassem sua tristeza e insatisfação, em seguida corrigiram: - Não é o Primeiro Comando da Capital e sim o Primeiro Comando das Classes!

E para mim que via tudo aquilo acontecer na minha frente, me fez dar corpo a algumas idéias que eu já vinha formulando: estavam vivendo no limite da transgressão, entre a vida e a morte, numa realidade que mais parecia ficção!Um mundo que mata os sonhos da pessoa e os joga dentro do caixão!Diante de tantas adversidades, como era possível recriar-se? Uma tarefa que tantos dizem ser própria do adolescente.

Quando discutimos com os professores, foi ficando claro que o único modo que lhes restava para fazer uma crítica à sociedade, uma vez que esta lhes voltava as costas, e à escola, que parecia encontrar-se à deriva, sem direção, era acoplar-se ao lema PCC para em seu interior, explodi-lo por dentro e capturar os sentidos possíveis, fazendo-os incidir sobre os dois lados: a escola e a sociedade. É o primeiro comando das classes!Que exige a presença da direção da escola, da sociedade e do governo para que não lhes reste apenas o tráfico, o roubo e a droga como opções!

 

Uma discussão sobre essa primeira fase da pesquisa

Diante de todas essas revelações tão contundentes e escancaradas sobre o caos na escola e a violência em seu exterior, mas muito presente no cotidiano de uma comunidade de pessoas pobres, que vivem em barracos a um quarteirão dos prédios mais luxuosos do Morumbi, começamos, eu e minha equipe, a nos colocar no lugar daqueles professores, que ficam literalmente entre a cruz e a espada. Com exercer qualquer tipo de autoridade, em tais circunstâncias?

De um lado, uma burocracia desumana que instituiu um sistema centralizado de distribuição de aulas, em princípio para evitar qualquer tipo de favorecimento local, mas que impede uma resposta imediata para os problemas de reposição de professor. Uma questão que se vê agravada pela falta de empenho da direção daquela escola em formar turmas à noite. Um problema que tem gerado outros, em cascata: os professores titulares da noite, ao perderem suas aulas, assumem as aulas dos profs adjuntos da manhã (e isso no meio do ano); estes, por ficarem com poucas aulas, faltam, dando prioridade para outras escolas onde tenham maior carga horária. Os que faltam não são substituídos porque a Secretaria Municipal decidiu que não contratará professores eventuais.Os professores ficam fragilizados e estressados com toda essa situação, o que os deixa à mercê dos mandos e desmandos da direção e da secretaria. Os alunos, por sua vez, por sentirem esse descaso em relação a eles por parte da escola, quando um professor entra em sala de aula, não têm para com ele qualquer respeito ou consideração.

O interessante é que o pouco tempo que estamos nessa escola já foi suficiente para produzir alguma inquietação no corpo docente e discente, direcionando suas ações com o fito de provocar algumas mudanças nas regras do jogo (do caos organizador). Uma professora que não conseguia entender como aqueles alunos não queriam ouvir uma boa aula, começou a se interessar em ouvi-los. Contou-nos que estava programando com eles uma visita ao Casulo(a Ong que incentiva a propagação das culturas juvenis na comunidade), para assistir a uma peça de teatro. Outra professora, que entrou para dar aula de matemática na primeira sala onde fizemos uma intervenção, sentiu que os alunos queriam aprender e que estavam interessados em escutá-la.A coordenadora entendeu que aquela classe que estava sem aula, praticamente durante todo o ano, não poderia se organizar sozinha, que precisava mais do que nunca de um adulto que lhes desse respaldo (no caso para sua formatura). E a direção começa a ficar preocupada...em dar satisfações sobre sua ausência e decisões arbitrárias.

 

O princípio de uma reflexão teórico-metodológica

Fiquei pensando como foi possível em tão pouco tempo entender em grande parte a dinâmica daquela escola, apoiando-nos praticamente em sete intervenções em sala de aula.

Nossas intervenções deram vida, por meio das expressões plásticas e musicais dos alunos, ao olhar abafado dos professores sobre sua própria realidade de trabalho, ao mesmo tempo em que colocava em relevo a realidade dos alunos daquela comunidade encravada no seio de um dos bairros mais ricos e luxuosos da capital.

As manifestações polissensoriais dos adolescentes que se manifestavam de modo caótico e barulhento ganharam sentido diante deles mesmos, ao começarem a substituir o verdadeiro solilóquio em que muitos deles se encontravam mergulhados por raps, os mensageiros de protesto dos jovens pobres das metrópoles. E as garotas, com sua sensualidade irreverente, exigiam de todos um olhar atento – e o direito a terem um espaço para seu ser mulher - que fosse capaz de ver nela o avesso do que diziam as letras funks que tocavam ao fundo, todas degradando a imagem feminina.E, claro, atingiram em cheio o coração da escola, que parecia há muito não escutá-los – ou seja, a burocracia, a direção e até mesmo os professores (a maioria só vinha pensando em remoção e aposentadoria).

Os professores, por sua vez, estão tendo a oportunidade de ressigificarem suas experiências e sentindo-se apoiados, intelectual, emocional e politicamente, reassumem a autoridade ameaçada.

Com afirma Georges Bataille, em seu livro A experiência interior (1954): " A experiência interior responde à necessidade...de por tudo em questão, sem descanso admissível. ... Mas esta experiência nasce do não saber e nele permanece decididamente"(p.15). O autor está se referindo ao experienciar sem juízos prévios, sem julgamento moral, em direção ao desconhecido. Experiência que ele vincula à autoridade e, ao mesmo tempo remete ao paradoxo: fundada sobre o questionamento, põe em questão a própria autoridade. Uma autoridade que se define por ser capaz de se colocar incessantemente em questão. De outro lado, uma autoridade que implica o rigor de um método, a existência de uma comunidade.

Um método que se abre, de acordo com a releitura de Maximo Canevacci (2005b), para o olhar participante de Eros - que olha e se deixa olhar- e assim se abre para a experiência do desconhecido e refunda a autoridade.

Inspirando-nos nessas idéias sobre o método, acreditamos que, ao constituir um campo de experiência que permita o encontro do mundo juvenil e de suas formas de expressão culturais, em meio a suas duras experiências de subjetivação/dessubjetivação, com o conjunto de professores e direção da escola, seja possível produzir rupturas e até mesmo abrir fendas nos discurso e práticas em seu cotidiano. Condição, a nosso ver, para o fortalecimento do corpo docente e de sua autoridade. E, desse modo, gerando melhores condições de subjetivação para aqueles alunos.

E, no plano da reflexão teórica, quais seriam as ressonâncias dessa experiência? Particularmente no que diz respeito ao tema da autoridade, como repensá-la a partir das idéias de M. Canevacci?

Uma contribuição do autor talvez consista no fato de ter enfatizado que o sentido do político mudou. Com isso, parece-me que o sentido da autoridade também. As formas de contestação também não são as mesmas, passando menos pela oposição a autoridades estabelecidas, normas e interdições, e mais por acompanhar os destroços "legados" pela mídia, por meio de uma linguagem que possa explodi-la por dentro, praticamente mimetizando-a, como o fazem algumas culturas juvenis na Itália, denominadas pelo autor de eXtremas, mas, como vimos, algo que também se dá no Brasil, porém, com outros matizes.

 

Referências Bibliográficas:

Arendt, H. Entre o passado e o futuro (1954). S.P., Ed. Perspectiva, 1992.

Bataille,G.(1943). L’expérience intérieure.Paris, Éditions Gallimard, 1954.

________ (1961). Les Larmes d’Éros. Paris, Ed. Jean-Jacques Pauvert, 1995.

________ (1967). História do Olho. São Paulo, Ed. Cosac&Naify, 2003.

Canevacci, M. Culturas eXtremas – mutações juvenis nos corpos das metrópoles. R.J., D.P.& A. Ed, 2005a.

____________ . Eróptica: etnografia palpitante para um olhar díspar. Revista IDE, Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, (41): 91-96, julho de 2005b.

Habermas, J. O discurso filosófico da modernidade.São Paulo, Martins Fontes, 2002.

Jeammet, P. et Corcos, M. Évolution des problématiques à l'adolescence- l'émergence de la dépendance et ses aménagements. Paris , Doin Ed., 2001.

Lipovetsky,G. Le crépuscule du devoir. Paris, Ed. Gallimard, 1992.

Musil, R. O homem sem qualidades.R.J., Ed. Nova Fronteira, 2006.

Velho,G. Juventudes, projetos e trajetórias na sociedade contemporânea. In: Almeida, M.I.M. de e Eugênio, F.(org.) Culturas jovens – novos mapas do afeto. R.J., Jorge Zahar, 2006, pp. .

 

 

* Este trabalho foi apresentado no VI Colóquio do Lepsi: psicanálise, educação e transmissão (FEUSP, Nov./ 2006).
This work was presented at the VI Lepsi Colloque: psychoanalysis, education and transmission (FEUSP, Nov./2006).
1 Por meio de um estudo de caso de uma Escola Estadual do Ensino Médio e atendimento clínico em uma Centro de Referência do Adolescente da Prefeitura de São Paulo, acompanhado de ampla revisão bibliográfica, como parte do projeto de pesquisa anterior, apresentado à ÙSP ( RDIDP), sob o título: "Projeto de pesquisa piloto para se pensar sobre políticas públicas de atenção à saúde mental do adolescente: uma articulação entre as dimensões sócio-educativa e terapêutica" (FEUSP, 2004).
2 Entendo por atuação-limite a atuação do mundo psíquico no mundo externo ou no próprio corpo, sem se encontrar acompanhada de elaboração mental, podendo referir-se, no campo clínico, seja a uma atuação do mundo psíquico no limite entre o mundo interior e o mundo exterior (típico dos casos-limite), seja a uma passagem ao ato (próprio ao funcionamento psicótico). Pode traduzir-se por sérios distúrbios alimentares (anorexia e bulimia), ou por comportamentos anti-sociais, ou ainda por meio de ações violentas contra o outro ou contra o próprio sujeito. No campo da vida escolar, pode ser identificada nas ações dos estudantes de natureza agressiva que ultrapassam o que se pode considerar como um chamado ao vínculo, recaindo em uma violência simbolicida capaz de destruir toda e qualquer possibilidade de diálogo, rompendo mesmo com a possibilidade de estabelecimento de relações de sentido.
A esse respeito, cumpre acrescentar que P.Jeammet (2001) contrapõe a esses comportamentos considerados patológicos entre os adolescentes, outros que, a despeito da fragilidade narcísica subjacente, podem dar uma "virada criativa" na vida do jovem.
3 Reinterpreto esse conceito em um sentido ampliado, estendendo-o para além do âmbito delineado pela psicanálise, que o circunscreve à relação analítica, cujos protótipos de relações infantis são atualizadas na relação entre professor e aluno, mas que sofrem um outro tipo de atualização que diz respeito aos efeitos desagregadores da contemporaneidade (hiper-moderna, para alguns) sobre o processo de construção e desconstrução da identidade do jovem de hoje.
4 Estes estagiários fazem parte do Programa de Formação de Jovens Professores, dirigido a moradores da região, que é desenvolvido pelo Casulo, oferecendo bolsas de estudo para cerca de 20 jovens freqüentarem o curso de formação de professores junto ao Instituto Superior de Educação de São Paulo - Singularidades. Em contrapartida, os jovens bolsistas contribuem com o Casulo, desenvolvendo projetos comunitários junto a jovens e crianças da região, como a Biblioteca Comunitária (com um acervo de 2000 livros). Estes jovens são ainda estagiários da única escola de ensino fundamental existente no bairro, onde pretendo desenvolver o presente projeto de pesquisa.
5 A esse respeito, cabe lembrar a adequação das idéias antecipadas pelo escritor Robert Musil, em seu romance "O Homem sem qualidades" (1938,2006), que, de modo brilhante, anuncia em que terreno se forjaria o homem fluido de hoje, que segundo ele, deveria se guiar muito mais pelo senso de possibilidade do que pelo senso de realidade, tão proclamado pelo pensamento pragmático burguês. Vejamos o que diz Musil sobre o senso de possibilidade: "quem o possui não diz, por exemplo: aqui aconteceu, vai acontecer, tem de acontecer isto ou aquilo; mas inventa: aqui poderia, deveria ou teria de acontecer isto ou aquilo; e se lhe explicarmos que uma coisa é como é, ele pensa: bem, provavelmente também poderia ser de outro modo. Assim, o senso de possibilidade poderia ser definido como a capacidade de pensar tudo aquilo que também poderia ser, e não julgar que aquilo que é seja mais importante do aquilo que não é" (p. 34).Uma idéia que me parece extremamente interessante para analisar o processo de construção identitária da juventude no mundo contemporâneo.