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On-line ISBN 978-85-60944-08-8
On-line ISBN 978-85-60944-08-8
An 6 Col. LEPSI IP/FE-USP 2006
Análise dos fenômenos de indisciplina na relação professor-aluno
Catarina Angélica Santos
RESUMO
O tema indisciplina foi investigado como um dos impasses identificados pelos docentes no processo ensino-aprendizagem da matemática nas séries finais do ensino fundamental. Tratou-se de repertoriar as dificuldades surgidas em sala de aula e analisá-las, à luz da psicanálise, a partir do relato dos professores sobre a situação em que o impasse se manifestou e das alternativas utilizadas para solucionar o problema. As situações de impasses narradas concernem às dificuldades com a indisciplina e aparecem em primeiro plano. O que orientou a análise dos depoimentos foi o estudo da presença de elementos da subjetividade do professor nas situações repertoriadas. Tais depoimentos de indisciplina integram um capítulo da dissertação de mestrado apresentada em 2005 ao Programa de Pós-graduação em Educação, da Fae/UFMG. Extraiu-se, dessa pesquisa, um episódio de indisciplina e sua análise para ser apresentado na forma de comunicação oral no VI Colóquio do Lepsi.
Palavras-chave: Indisciplina; subjetividade; relação professor-aluno.
Introdução
Foi a partir do trabalho de assessoria, desenvolvido com os professores das escolas públicas de Belo Horizonte, como psicóloga, que nasceu o desejo de apresentar um projeto de pesquisa junto ao Programa de Pós-graduação em Educação, da Fae/UFMG, em 2003, com o objetivo de formalizar o que já acontecia e também oportunizar a análise, a investigação e a construção de algum dispositivo que pudesse contribuir com a prática docente.
Interessava-nos investigar, analisando o discurso dos professores, os impasses no ensino-aprendizagem da matemática que mais os incomodam. Ocorreu-nos também investigar os impasses junto aos professores de matemática do terceiro ciclo ou das séries finais do ensino fundamental. Em minha experiência de trabalho nas escolas, o que se pode extrair do discurso deles é que os conflitos são mais intensos com os adolescentes e dizem respeito aos relacionamentos entre professor e aluno. Os docentes relatam que ficam perdidos, sem saber o que fazer ou que atitude tomar diante de determinadas situações de enfrentamento e, especialmente, de desacato à autoridade.
Iniciamos o percurso de nossos estudos sobre as relações entre psicanálise e educação com as primeiras incursões da teoria psicanalítica pelo campo educacional, apresentando ao leitor dois pontos de vista de Freud, importantes para nossas investigações. A primeira idéia é a de que a educação, em sua época, era nefasta ao sujeito, quando poderia ser profilática; a segunda, extraída do texto de 1933, refere-se à educação como salutar para o sujeito e para a sociedade. Freud tratou da questão da educação, não prescrevendo um método, mas introduzindo o questionamento ético da função de educar.
Pedagogos como Pfister (1909), Aichhorn (1922) e Zulliger (1928) no início do século XX, fascinados pelas idéias psicanalíticas foram os primeiros a aplicar esses conhecimentos no campo educativo. Outros autores produziram estudos mais recentes enveredando-se pelo texto freudiano e lacaniano e articulando teorias, com as quais se pudesse refletir sobre as questões educacionais, seja no que diz respeito às produções sintomáticas dos alunos, seja para analisar a subjetividade na relação professor-aluno na sala de aula.
Como referencial para nossos estudos, utilizamos vários textos de Freud e de autores pós-freudianos como Maud Mannoni (1984), Anny Cordié (1987), Catherine Millot (1987), Mireille Cifali (1982, 1987, 1991); e brasileiros — Maria Cristina Kupfer (1989, 1992, 2000), Leandro Lajonquière (1992, 1999) e Ana Lydia Santiago (2005). Surpreenderam-nos pesquisas de professoras da educação matemática como Tânia Cabral, (1998), Nelma Cabral (2001) e Elaine Catapani (2001), pela utilização da teoria psicanalítica para compreensão dos fenômenos educativos, além do fato de a proposta dessas educadoras incluir a subjetividade do professor edo aluno, tratando-as no campo do ensino-aprendizagem.
Para realizar o trabalho junto aos professores, optou-se pelo método da Conversação, recentemente criado pelo psicanalista Jacques-Alain Miller (1996) para os encontros clínicos do Campo Freudiano. Tal dispositivo pode ser utilizado em reuniões em que se quer fazer interagir posicionamentos e saberes de campos diversos do conhecimento. Segundo a afirmação de Miller (2003), a Conversação é uma ficção operativa a serviço da produção do saber ou do surgimento de uma nova perspectiva, em nosso caso, sobre os impasses na relação professor-aluno-conhecimento. Outra vantagem desse método, na pesquisa com professores, é que ele pode favorecer a análise dos pontos de cristalização que tanto interferem nos trabalhos entre eles e com os alunos. A Conversação permite, ainda, a promoção de um debate, uma reflexão e uma "discussão viva em detrimento de uma escuta passiva dos participantes"1.
Procuramos desenvolver uma análise sobre a natureza de tais impasses nas relações que se estabelecem na sala de aula, mobilizando recursos teóricos da psicanálise. Nesse aspecto, nossa investigação voltou-se para as relações entre tais comportamentos e a reação provocada nos professores sob a ótica do questionamento da autoridade. Vimos nos depoimentos uma forma de tratar essas situações limite, identificadas como "comportamentos indesejáveis dos alunos", tomando como referência o controle das ações dos discentes.
Indisciplina: "Comportamentos indesejáveis dos alunos"?
Ao pesquisar nos dicionários de pedagogia (Laeng, 1973) e psicologia (Cabral, 1971), sobre a definição de indisciplina constata-se um fato curioso: o verbete indisciplina não aparece nos dois dicionários, e a definição de disciplina somente aparece no primeiro. Neste, enfatiza-se o sentido moral, e o conceito se desdobra em torno da idéia de regras de condutas impostas que, se observadas, garantem o trabalho pedagógico. A indisciplina pode ser tomada como a inobservância das regras, isto é, remete-se a tudo que foge às regras estabelecidas como naturais pela escola.
Portanto, a disciplina do aluno parece ser uma condição sine qua non para a aprendizagem e é reveladora do ideal de aluno que a escola persegue. Em relação à psicologia, pode-se demandar seu saber para a solução dos problemas disciplinares que desestabilizam o cotidiano escolar, seja em forma de palestras que orientem os professores, seja no atendimento clínico ao aluno cuja atitude foge às regras estabelecidas pela escola.
Para ilustrar a questão da indisciplina apresentamos o depoimento de um professor que parece ter sido surpreendido pelo ato inesperado de sua aluna:
Jogar papel no chão
Tive um problema com uma aluna que estava jogando papel no chão. Chamei a atenção dela e falei: "Minha filha, você não está na sua casa. Sua família lhe permite fazer um troço desses?" E aí eu fui falando do papel importante da família e tal. Ela disse que eu estava metendo o pau na família dela. Na hora em que eu saí da sala para atender a supervisora, ela saiu deliberadamente, foi na direção da escola e falou horrores de mim. Eu só falei: Minha filha me desculpe, se eu disse do jeito que você está falando agora. Você não me leve a mal, pois você não está acostumada com esse tipo de educação, não. Você sentiu-se ofendida porque eu lhe cobrei uma postura. O vice-diretor e a diretora ficaram do lado da aluna. Em momento algum, eles questionaram a atitude dela de jogar papel no chão. Questionaram sim o que ela falou de mim e nem me ouviram. Então eu tomei uma atitude também. A partir daquele momento, eu não falo mais nada naquela escola. Vou ser simplesmente um "dador" de aula e não um educador. Chego lá e dou a minha aula. O aluno que aprendeu, bem; o que não aprendeu, tchau. Vou arrebanhar os que são bons. [...] Desde o primeiro dia de aula, eu tive um embate com essa aluna, justamente, porque eu cobrei dela uma atitude diante do exercício, da atividade na sala de aula que ela não fez. Então, criou uma antipatia, ela não gosta de mim, literalmente. [...] Então, quando às vezes muitos professores tomam atitude de surdo e mudo e a sala fica de qualquer jeito [...]. Pôxa, você toma uma postura e ali na direção eles passam a mão na cabeça do infrator (7ª reunião).
A partir do episódio acima relatado, o professor localiza o impasse com a aluna no plano do imaginário, justamente, porque, no primeiro dia de aula, já havia sido criada uma antipatia, quando ele cobrou da aluna uma atitude diante do exercício que ela não fez. Eu cobrei dela uma atitude diante do exercício, da atividade na sala de aula que ela não fez. Então, criou uma antipatia. Constata-se que, no início do depoimento, outro impasse é criado, exatamente quando o professor cobra, de novo, da aluna uma atitude e ela não responde da forma que ele esperava. Dessa maneira, o docente diz para a aluna o que é correto fazer na sala de aula e ela parece dizer: não é correto.
Há uma falta de resposta da aluna. Como se pode notar, há uma repetição das mesmas cenas, ou seja, o modo como o professor privilegia a questão do dever (obrigação). Ele cobrou uma atitude da discente diante do exercício, e ela não respondeu; cobrou outra atitude perante o ato de jogar papel no chão, e a aluna, também, não respondeu da forma esperada. Parece-nos que aqui a questão é cobrar uma atitude da aluna, no sentido de apontar um modo de se comportar corretamente na sala de aula. Por que isso gera antipatia? Porque o docente cobra algumas atitudes, e a aluna não responde do modo como ele espera, ou simplesmente, ela não responde.
O professor não se detém somente na ação específica da aluna — jogar papel no chão — e vai além falando sobre o papel importante da família, fazendo uma espécie de sermão. Dito de outra maneira, o docente dá uma lição de moral, e a idéia dessa lição é a cobrança de atitudes, do cumprimento do dever pela aluna.
Lajonquière (1996) faz uma discussão sobre a lei e a norma quando se refere à indisciplina na escola e aponta que há, na atualidade, um debate pedagógico sobre a conveniência psicológica da lei. Ressalta que é curioso esse debate, pois duvidar da necessidade de existirem obrigações escolares deriva da ilusão de se dispensar a existência da lei no campo subjetivo. O autor sustenta que, no cotidiano escolar, não imperam leis, mas quase leis, ou que, se quisermos, apenas regras e normas morais.
"Enquanto a lei é a expressão da vontade geral de renunciar a alguma coisa (aquilo que a lei proíbe), a regra, ao contrário, é o princípio constitutivo de hábitos morais, isto é a lei proíbe e abre um leque de possíveis-outros. Entretanto, a regra prescreve categoricamente a prática de atos concretos. Em suma a lei diz: "não faça isso porém faça outra coisa"; a regra formula o imperativo de fazer como todos, ou caso contrário, não fazer nada".(p.30 - grifos do autor)
Assim, por um lado, a lei se funda numa contingência simbólica, e, por outro, a regra impera diante da necessidade imaginária de fazer Um-Todo graças à negação de qualquer alteridade. Dizendo de outra maneira: o estatuto da lei é simbólico; o da regra é imaginário.
Pode-se constatar que, em referência ao episódio de jogar papel no chão, o professor localiza o impasse no plano do imaginário em que impera a regra e a moral, conforme nos afirma Lajonquière (1996). Nesse caso, a regra já prescreve o conteúdo, ou seja, deve-se fazer como todos fazem, daí a vontade do professor de que o dever seja cumprido.
A aluna sente-se ofendida, pois não aceita que lhe dê lição de moral, especialmente, porque o professor se refere à sua família. Sua contra-reação efetua-se no sentido de se encaminhar à diretoria da escola para fazer uma reclamação do professor. Nesse sentido, o docente sofre as conseqüências do seu ato, pois não é convidado a participar da conversa na sala da diretoria e se sente excluído. O Vice-diretor e a Diretora ficaram do lado da aluna. Em momento algum eles, questionaram a atitude dela de jogar papel no chão. Questionaram, sim, o que ela falou de mim e nem me ouviram.
Pode-se notar que, em episódios parecidos com esse, alguns alunos até aceitam determinadas lições de moral dos professores sem expressarem desobediência ou desacordo, são os chamados "bons alunos", e são benquistos por eles. Aqui, no entanto, a aluna reage diante da lição de moral do professor. O professor sente-se incomodado porque, no impasse instaurado com a aluna, sofre as conseqüências pela atitude tomada, ao contrário do que ocorreu em outros episódios da pesquisa, em que a aluna respondeu prontamente à ordem do professor não lhe trazendo complicações.
Verifica-se que há uma reação da aluna, provavelmente, não esperada pelo professor que provoca nele um profundo mal-estar expresso no seguinte fragmento: Vou ser simplesmente um "dador" de aula e não um educador. Essa frase bastante curiosa nos leva a interrogar: o que seria um "dador" de aula? Na idéia do docente, parece ser: Chego lá e dou a minha aula. O aluno que aprendeu, bem, o que não aprendeu, tchau. Vou arrebanhar os que são bons.
Conclusão
Para finalizar, ressalta-se que o trabalho de pesquisa nos indicou o espaço da Conversação como dispositivo de mediação na relação professor-aluno como forma de tratamento do mal-estar docente, do que não vai bem na prática pedagógica. O que é surpreendente em todos os depoimentos da pesquisa, tomados como indisciplina pelos professores, é como eles são tocados em sua subjetividade. Os docentes interpretam que há sempre algo intencional, por parte dos alunos, para destituí-los do seu lugar de autoridade. Isso nos sugere que determinadas situações vividas com os alunos tocam algo de insuportável para a subjetividade deles, daí a reação de controle do comportamento discente. No evento que repertoriamos neste trabalho, pode-se notar que o professor tende a reagir às ações de sua aluna, tomadas como indisciplina, fora da esfera do ensino-aprendizagem, ou seja, o docente opera uma cisão nas relações com os alunos e o processo de ensino-aprendizagem.
Para minimizar os efeitos da exacerbação da subjetividade dos docentes e alunos, a análise desenvolvida procura remeter o professor a seu campo de trabalho, ou seja, o campo do ensino da matemática. Nas situações de indisciplina, quando o professor está no campo do ensino dos conteúdos matemáticos — que é de uma ordem mais objetiva, da cognição — como ele pode realizá-lo sem se haver com a subjetividade? Nota-se uma expressa contradição dos professores de matemática em relação ao processo de ensino-aprendizagem-conhecimento. Ao analisarem "os comportamentos indesejáveis" de seus alunos, os professores pudessem, quem sabe, não incluí-los no plano imaginário, tentando relativizar a atitude discente. Ao mesmo tempo, é importante que os docentes considerem a singularidade dos alunos, quando se deparam com as dificuldades de aprendizagem deles. Talvez, nos interstícios dessa contradição, possa advir uma prática inédita que dê conta dos impasses vividos na sala de aula de matemática.
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