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On-line ISBN 978-85-60944-08-8

An 6 Col. LEPSI IP/FE-USP 2006

 

Diversidade e adversidades na escola: queixas de professores frente à educação inclusiva

 

 

Cláudia Dias Prioste

claudiaprioste@hotmail.com

 

 


RESUMO

A educação inclusiva amplia o campo de estranhamentos na escola. Dificuldades no encontro com o aluno e a impossibilidade de ensinar o inapreensível tornam-se focos de angústia. Alguns professores adoecem, outros desistem da profissão, outros se tornam indiferentes. No entanto, há aqueles que atravessam os estranhamentos, suportam a angústia e criam alternativas de ensino. Este artigo expõe três situações nas quais professores relatam experiências com educação inclusiva expondo suas adversidades, sentimentos e desafios face à inclusão de crianças com necessidades educacionais especiais na escola regular. A partir destes fragmentos procuramos discutir a angústia e o mal-estar docente sob a perspectiva psicanalítica.

Palavras-chave: mal-estar docente; educação inclusiva; psicanálise e educação.


 

 

Introdução

O movimento da educação inclusiva, embora já existente há algumas décadas, ganhou força e se consolidou a partir da Declaração de Salamanca sobre Princípios, Políticas e Práticas em Educação Especial, produzida pela UNESCO em 1994 em Salamanca, na Espanha, ao propor que todas as crianças, sempre que possível, deveriam aprender juntas em programas pedagógicos centrados na criança, independente de suas condições intelectuais, físicas, sociais e emocionais.

O Brasil foi um dos países signatários da Declaração de Salamanca, assumindo o compromisso de implantar a educação inclusiva nas escolas brasileiras. No entanto, este compromisso, na prática, tem gerado diversas polêmicas e questionamento por parte dos professores. Estas polêmicas envolvem, sobretudo, queixas relacionadas à falta de capacitação para trabalhar com crianças com necessidades educacionais especiais; falta de materiais educativos apropriados e, principalmente, falta de apoio e recursos no atendimento pedagógico em classes comuns.

Para autores como Jerusalinsky (2000), Skliar (2001) e Kupfer (2000), a educação inclusiva envolve uma gama de fatores relacionados aos aspectos históricos, políticos, culturais que devem ser cuidadosamente considerados. Kupfer (2000) faz uma crítica a alguns teóricos da educação que preconizam o ideário da inclusão "a qualquer custo". A autora alerta que, se não houver medidas que facilitem a aplicação das políticas inclusivas, o custo pode ser muito alto, sobretudo para a saúde mental dos professores, já que muitos, por não saberem abordar a inclusão, acabam solicitando afastamento médico.

O que estes autores sinalizam é que a educação inclusiva – um direito conquistado pelos movimentos sociais que lutam em favor dos direitos das pessoas –, dependendo da maneira como tem sido implantada nas escolas, pode tornar-se um dos fatores que contribuem aumentar a incidência do mal-estar docente.

Neste sentido, tem sido comum ouvirmos os professores dizendo que, além de terem um trabalho, por si só exaustivo, a inclusão de crianças com necessidades educacionais especiais lhes traz maior sobrecarga de responsabilidade e trabalho, sobretudo quando não podem contar com apoios fornecidos pela escola e pelos serviços públicos comunitários.

O mal-estar docente tem sido alvo de debates nos últimos tempos. Pesquisas apontam a atividade docente como altamente estressante, repercutindo negativamente na saúde física e emocional dos profissionais (Capel, 1987; Cooper, 1996; Zaragoza, 1999). O termo mal-estar, segundo Zaragoza (1999 p. 12), está relacionado a um incômodo indefinido, algo que vai mal sem que seja possível localizar o que não está funcionando bem nem o porquê. Capel (1987), em seus estudos com professores do ensino secundário, relata que os problemas ocupacionais podem ser constatados a partir da alta incidência de problemas de saúde, assim como na redução da freqüência ao trabalho. Reis e Araújo (et al, 2006), em estudo com professores da rede Municipal de Ensino da Bahia, constataram que o cansaço mental e nervosismo são freqüentes entre professores.

Diante da educação inclusiva, as preocupações e queixas de mal-estar e angústia dos professores podem se intensificar. Na psicanálise o termo mal-estar é usado por Freud para designar sinais de angústia. De acordo com Kaufman (1996 p. 317), a expressão mal-estar surgiu primeiramente em um artigo de Freud produzido em 1895 para destacar um desconforto típico da neurose de angústia, descrito como um mal-estar específico, acompanhado de vertigem, sensação de peso nas pernas ou de que o solo oscila, sem que isso implique em queda.

Em Inibições, Sintomas e Angústia (1926, p. 73) Freud estabelece a relação entre a geração de sintomas e a angústia. Considera que a angústia é um sintoma da neurose e que existe uma relação estreita entre neurose e angústia. Neste texto, a angústia é tratada como uma reação a um perigo que, ao contrário do medo, não se é possível localizar um objeto específico. Freud reconhece que todas as pessoas estão sujeitas a "perigos", porém ele questiona o porque de algumas pessoas conseguirem elaborar estes afetos e outras não. Para ele, a emergência da angústia está relacionada ao retorno do recalcado, isto é, de afetos que emergem de revivescências anteriores do sujeito. Mais tarde, em Novas Conferências Introdutórias sobre Psicanálise (1932, p. 97), Freud considera que há dupla origem na angústia "uma, como conseqüência direta do momento traumático, e a outra, como sinal que ameaça com uma repetição de um tal momento". Desta forma, uma determinada situação vivida pode ser percebida como angustiante, pois sinaliza a repetição de um momento traumático anterior.

Lacan relaciona angústia a um impedimento, movimento que se detém por uma armadilha, a armadilha narcísica. Angústia e narcisismo caminham juntos. Narcisismo implica em fixação na própria imagem especular. "O impedimento que aparece está ligado a esse círculo que faz com que, pelo mesmo movimento com o qual o sujeito avança para o gozo, isto é, para o que está mais longe dele, encontre essa fratura íntima muito próxima, de quê? De deixar-se levar por sua própria imagem, pela imagem especular. Essa é a armadilha" (Lacan, 1962-1963, p. 19).

Vivências angustiantes são recorrentes na escola, sobretudo em situações onde a diversidade se impõe. Tomando a angústia sob a vertente da psicanálise, algumas questões nos trazem inquietações: Que tipo de situação provoca a angústia do professor? Como o professor vivência a angústia? Como ajudar o professor a lidar com a angústia?

 

Aspectos Metodológicos

O presente trabalho constitui um recorte da pesquisa Diversidade e Adversidades na Escola1 desenvolvida em 2004 com dois grupos de professores de uma escola de Ensino Fundamental da rede pública estadual da cidade de São Paulo. A escola possuía alunos em situação de inclusão, além de contar com duas classes especiais para crianças com diagnóstico de deficiência mental. Participaram da pesquisa vinte e seis professores que, divididos em dois grupos, se reuniram mensalmente para debater questões relativas à educação inclusiva.

Durante as reuniões os professores discutiram alguns textos e vídeos, no entanto, foram os estudos de casos concretos de sala de aula que despertaram maior interesse dos grupos. Nestas ocasiões, os professores puderam ser escutados em suas preocupações com os alunos. Angústia e mal-estar foram expressões que emergiram com significativa tenacidade, por isso optamos por destacar algumas situações descritas como angustiantes pelos professores, com o intuito de traçarmos algumas breves considerações sobre o tema.

 

Fragmentos de casos

Destacamos três fragmentos de casos nos quais os professores utilizam o termo angústia com referência às situações vivenciadas em sala de aula. Não pretendemos aqui fazer diagnósticos da angústia do professor, tampouco nos ater às questões mais detalhadas sobre o processo de inclusão. Nosso intuito é analisar situações descritas pelos professores como angustiantes, nas quais procuramos identificar diferentes soluções encontradas pelos mesmos. A partir destes breves relatos procuraremos discutir aspectos da angústia do professor no que tange à educação inclusiva, apoiando-nos em uma perspectiva psicanalítica.

O primeiro caso se refere à inclusão, na quarta série, de um jovem com diagnóstico de deficiência mental, no qual a professora relata dificuldades em se aproximar do aluno. Os outros dois se referem à inclusão de alunos com deficiência visual. Estes casos têm em comum a dificuldade dos professores em ensinar cores aos alunos cegos. Apesar de desafios semelhantes, as reações dos professores foram bem diferentes, como veremos a seguir.

Caso 1

A professora Gilda recebeu em sua classe de quarta série um aluno com diagnóstico de deficiência mental. Não nos foi explicitada a maneira pela qual se deu a inclusão. Gilda se queixa de que o aluno não faz nada em sala de aula e que ela não consegue aproximar-se dele. Durante o ano, recebeu orientações da coordenadora, no entanto, Gilda continuou se queixando das dificuldades com Renato. Ao final do ano, a professora dizia estar muito angustiada, pensando em abandonar a profissão.

Exemplo de queixa feita em um dos encontros realizados no início do ano:

"Olha eu acho importante a gente saber [sobre inclusão], mas eu tenho, particularmente, uma queixa da inclusão. Assim eu não sinto que tenho estrutura para trabalhar com o deficiente. Eu tenho o caso do Renato, eu não consigo me aproximar do Renato. Isso cria uma angústia".

Com o passar do ano, a angústia da professora pareceu mais intensa, e no último encontro, ela desabafa:

"Eu continuo angustiada [...] Estou preocupada com o Renato, está daquele jeito. Eu acho que eu fui com muita sede ao pote. Eu tenho muita dificuldade em trabalhar com essas pessoas e aí eu não fui muito bem. [...] Eu pedi ajuda no início e me falaram ‘você está querendo uma receita pronta’. Mas não era isto – então eu não consegui. Pronto! Não consegui! Eu me culpo, eu acho que eu não sei trabalhar, eu chego em casa muito nervosa porque não sei trabalhar. Eu acho que é isto. Não tenho tempo. Não tenho tempo de ficar ali pertinho dele. ‘Renato, vamos fazer isto?’ ‘Vamos?’ aí eu sento e ele faz. Mas, eu tenho mais 30 que bagunçam. Então vou ter que abandonar minha carreira, porque não é possível. Porque é só a gente ali no dia a dia".

A professora se queixa da inclusão e, mesmo assumindo sua dificuldade em aproximar-se do aluno, nos dá a impressão de acreditar que o problema é a inclusão e não a relação com Renato. Entretanto, é a dificuldade de aproximação e de ensinar que parece produzir a angústia. Uma angústia que se acentua durante o ano, culminando na intenção de abandonar a profissão.

Caso 2

Áurea nos conta que recebeu um aluno com deficiência visual em sua sala de aula. Não especificou a série, nem detalhou as condições. Disse, apenas, que foi uma determinação da escola e que ela se viu obrigada a aceitá-lo, embora não se sentisse preparada para aquela situação. Queixa-se por não ter tido chance de argumentar. O ápice do problema ocorreu em uma atividade de pintura:

"Ele queria fazer como os outros estavam fazendo. Então falei para ele: você pode pintar. Aí ele fazia assim [...] raspava o próprio rosto na carteira pra conseguir [...] eu levei um choque. Foi um choque muito grande. [...] Olha foi uma loucura total, tanto é que na época fiquei até doente."

A professora expressa o tom de angústia e sofrimento que aquela situação lhe provocou. Ressaltou que precisou sair de licença médica por um longo tempo. Para explicar sua contestação em receber o aluno, Áurea apelou à lei, justificou que ao assinar seu diploma, não havia nada especificando habilitação em crianças com deficiência e, por isso, não poderia ser responsável por qualquer criança que apresentasse deficiência em sua sala de aula. Também fez uma relação direta entre seu pedido de licença médica e as dificuldades encontradas com os alunos em situação de inclusão. A professora relata que tinham outros alunos nestas condições em sala de aula. Áurea, a partir desta experiência, passou a acreditar que a educação inclusiva é um risco para a saúde do professor.

Caso 3

Dulce relata que na escola na qual trabalhava anteriormente, foi matriculado um aluno com deficiência visual. A reação dos professores, de um modo geral, foi de recusa em receber tal aluno, mas Dulce se prontificou a inseri-lo em seu grupo de quarta-série. Segundo ela, estava motivada por curiosidade e desejo de aprender com a nova situação.

Como a escola não dispunha de recursos para apoiá-la, Dulce foi procurar o Laramara, instituição tradicional no atendimento de cegos, onde ela pôde aprender braile, assim como obteve orientações específicas sobre educação para crianças em situação de deficiência visual. Os profissionais da instituição não só orientaram a professora como a ajudaram no trabalho de preparação e integração da classe. Contudo, alguns problemas surgiram, e um deles ocorreu quando Gerson quis conhecer as cores. Dulce nos conta:

"Eu falava verde... agora verde.... e o que era o verde para esse menino? Então fiz uns buraquinhos nos lápis e falei: ‘Agora você tem condição de pintar’ [...] Gente, eu fiquei uma semana sem dormir porque queria explicar para ele o verde. O que é o verde? Eu falava, qual é o seu time? ‘Palmeiras’. Palmeiras é verde. O Corinthians é branco... porque a cor da blusa... explicava, tentava falar[...] O verde é uma coisa... feliz; o preto é uma cor que combina com tudo; o vermelho é uma cor forte, que você sente, uma coisa que o coração palpita... e eu dizia branco, é uma coisa lisa, que combina com tudo. Tocando as folhas das árvores ele poderia sentir. E ele foi... pintava igual. Gente aquilo... o que eu acho é assim... eu aprendi... ele aprendeu.... e a sala inteira aprendeu. E hoje, até hoje eu recebo cartas dele, telefonemas.... Ele está no colegial. É uma emoção."

Dulce explica que um dos fatores que ajudou o grupo a aceitar o garoto foi o fato dela deixar claro que qualquer pessoa ali poderia tornar-se deficiente visual. Ela garante que essa compreensão ajudou o grupo a se unir.

"Então todo mundo viu que isto podia acontecer... [qualquer um poderia tornar-se deficiente visual] e se acontecesse um ia depender do outro. Então criou aquele clima... aquela sensação de que um teria que ajudar o outro."

Destacou também um episódio em que assumiu o desafio de ensiná-lo a assinar o próprio nome, primeiro no quadro negro e, depois, progressivamente, foi ajudando Gerson a transferir a assinatura para um espaço menor, o papel. Até que ele, após bastante treino, passou a assinar seu próprio nome. Esse feito trouxe bastante satisfação tanto ao aluno quanto à professora.

As lágrimas nos olhos embargaram a voz de Dulce, seu relato contagiou o grupo, que também se emocionou. A satisfação obtida pela professora traduziu-se em um vínculo forte com o garoto, que se estendeu durante anos, permitindo que ela pudesse acompanhar os reflexos daquele trabalho. Mas Dulce não nega que foi um desafio e que, em alguns momentos, chegou a perder a paciência com Gerson:

"Gente, mas aquilo foi muito fantástico.... até hoje eu acho que só aprendi. Tinha dia que eu perdia a paciência porque ele me enchia o saco, né! Mas... eu falava ‘chega!, chega!’, depois ele falava ‘tá bom, desculpa’, perdia a paciência com ele".

Apesar das dificuldades encontradas, a professora revela que nunca se sentiu tão valorizada perante o grupo quanto naquela ocasião. Ressalta que o grupo esteve muito integrado e que a experiência marcou-a profundamente.

 

Considerações sobre os casos

Nos casos citados acima foi possível identificar três situações nas quais os professores se referem à angústia: Gilda, frente às dificuldades de ensinar um aluno com deficiência mental; Áurea, quando vê o aluno com deficiência visual passar o rosto sobre a carteira tentando conhecer as cores; Dulce, quando recebe a demanda do aluno com deficiência visual por conhecer a cor verde. Nas três situações as reações foram diferentes. Uma se paralisa e quer desistir da profissão, a outra fica doente e pede licença do trabalho, e a última cria uma ação pedagógica e continua trabalhando com muita satisfação. Estes relatos nos provocam a questão: qual seria o fator, ou os fatores determinantes para que um professor adoeça, um desista e outro crie uma ação pedagógica?

É claro que esta questão não é simples de ser resolvida e envolve múltiplos fatores que este trabalho não comporta. No entanto, algo nos parece claro: a maneira com que cada professor lida com a angústia parece ser determinante, isto é, a maneira como cada professor reage face ao encontro que lhe causa estranhamento pode nos indicar algumas pistas.

A professora Áurea demonstrava claramente a crença de que as crianças com deficiência deveriam ser educadas por professores especialistas. Já a professora Dulce optou por acolher o aluno em sua classe, pois estava disposta a assumir os desafios que a novidade lhe impunha. Curiosidade e desejo de aprender foram os fatores que a motivaram.

Disposição para encarar situações novas parece ter sido um diferencial entre as professoras. Isso não quer dizer que uma exerça melhor sua função do que as outras, pois não sabemos sobre as condições em que elas estavam inseridas, nem temos maiores informações sobre o trabalho delas. A professora Gilda buscou ajuda na própria escola, mas parece que seus apelos não foram atendidos. Áurea não se mobilizou ou não teve condições de buscar ajuda. Não se sabe se a carga horária de trabalho dela possibilitava atividades extras, ou se realmente não acreditava ser sua incumbência o ensino de crianças com deficiência. A professora Dulce buscou, por si própria, ajuda externa específica que lhe trouxe não só informações, mas segurança em sua nova empreitada. No entanto, isto não a poupou de situações angustiantes. Dulce sabia que as orientações recebidas não eram garantias de que situações desafiadoras irrompessem.

A limitação dos alunos cegos em aprender cores tornou-se uma barreira para as professoras Áurea e Dulce, já a professora Gilda se deparou com o desafio de ensinar um jovem com deficiência mental a ler e escrever . Enfim, as professoras se depararam com a limitação de ensinar algo que, num primeiro momento, se apresenta como impossível. Como se aproximar de determinado aluno que parece fechado em seu mundo? Como ensinar cores a uma criança cega?

Diante da curiosidade de seu aluno em conhecer as cores, Áurea entra em choque. O tom emocional da professora ao descrever o caso reflete a situação de estresse vivenciada por ela. Também sugere a falta de informação e apoio oferecido pela escola mediante a inclusão do aluno. Adoecer foi a única forma encontrada para expressar suas angústias.

A professora Gilda expressa tristeza, impotência, e sente-se fracassada na educação de Renato. Seu pedido de ajuda foi interpretado como se ela quisesse uma receita. Entretanto, ela estava expressando sua dificuldade para se aproximar do aluno, de estabelecer laço com ele, o que parece ter sido desconsiderado.

A angústia da professora no decorrer do ano foi se acentuando a ponto de ela pensar em desistir do trabalho. É óbvio que não é pertinente reduzir a angústia da professora a um único fator, a inclusão de Renato. Porém é importante considerar que este aluno foi eleito como causa da angústia, e isto pode não ser fortuito.

Já a professora Dulce, ao se deparar com a limitação de ensinar cores, sentiu-se angustiada, perdeu o sono, mas não perdeu a esperança de criar uma maneira diferente para que seu aluno se aproximasse da cor verde. Gerson não podia enxergar o verde como Dulce enxergava, mas isto não a impediu de estabelecer algumas relações de aproximação entre o aluno e a cor verde. O que é a cor verde para Gerson? Não temos como saber, pois isto é da ordem do singular, somente ele saberá o que é o seu verde. O que importa é que a angústia de Dulce, neste caso, foi a mola propulsora para a criação de uma ação pedagógica.

A maneira com que cada uma enfrentou a angústia parece ter sido determinante no desencadeamento do problema. Portanto, podemos supor que a estrutura do professor desempenha um importante papel. É claro que as condições de trabalho insatisfatórias podem intensificar a angústia, contudo, não há certezas de que pretensas condições favoráveis possam eliminar o mal-estar do professor. Aliás, eliminar a angústia não é o que recomenda a psicanálise.

 

Mal-estar e angústia docente

No âmbito da educação, o mal-estar docente tem sido tomado como um sintoma de nossa época que acomete um grande número de profissionais. Zaragoza (1999) defende que o mal-estar docente está intrinsecamente relacionado às condições de trabalho do professor e ao baixo status social da profissão. Para o autor, o mal-estar docente tem como causa uma série de fatores, que envolvem as rápidas mudanças sociais:

"Os professores se encontram ante o desconcerto e as dificuldades de demandas mutantes e a contínua crítica social por não chegar a atender essas novas exigências. Às vezes o desconcerto surge do paradoxo de que essa mesma sociedade, que exige novas responsabilidades dos professores, não lhes fornece os meios que eles reivindicam para cumpri-las. Outras vezes, da demanda de exigências opostas e contraditórias." (Ibid, p.13)

Os problemas mais comuns associados ao estresse ocupacional do professor são: doenças cardiovasculares, labirintite, faringite, neuroses, fadiga, insônia e tensão nervosa.

Pesquisa realizada com professores do Ensino Municipal da Bahia identificou que 70,1% dos professores se queixam de cansaço mental. Estas queixas estão relacionadas ao tempo de docência igual ou maior que 5 anos; carga horária de trabalho semanal igual ou superior a 35 horas; além de alta demanda psicológica, ou seja, trabalho que exige concentração intensa, pressão de tempo para realização de tarefa, além de ritmo e volume de trabalho (REIS, et al, 2006).

Zaragoza defende que as conseqüências do mal-estar docente são diversas, variando desde abandono da profissão, doenças mentais e dificuldades na atuação profissional. Vale destacar que o mal-estar docente não é um fenômeno que ocorre apenas entre os professores brasileiros. Pesquisas acerca deste problema tiveram repercussão no início na década de 80 nos países da Europa. A difusão do termo provém do artigo de Pámela Bardo (1979) The Pain of Teacher Burnout, citado por Zaragoza (1999, P. 57). Burnout, segundo o autor, é uma expressão associada a esgotamento e estresse, ou literalmente, "sair queimado". Os sintomas deste problema caracterizam-se por: "um alto índice de absentismo; falta de compromisso, um desejo anormal de férias, baixa auto-estima, uma incapacidade de levar a escola a sério".

Em dois dos casos que descrevemos os sintomas descritos por Zaragoza são notáveis: uma das professoras pede licença médica, a outra se acha incapaz de ensinar e quer abandonar a profissão. É provável que estas professoras estivessem com sobrecarga de demandas pessoais ou profissionais, e que a situação inusitada tenha acentuado o sentimento de impotência. No entanto, embora possamos considerar os fatores sociais para explicar alguns aspectos do mal-estar docente, isto não ajuda a responsabilizar o professor por suas escolhas. É inegável que condições adversas podem causar angústia, no entanto, se reduzirmos a estas respostas, acreditaremos que toda angústia é mortífera e que deve ser banida, e isto não é verdadeiro. Como pudemos ver, uma professora suportou a angústia e a transformou numa ação educativa.

Para Freud (1926), a angústia é uma reação frente ao perigo iminente, seja este oriundo do meio externo ou de pulsões internas. Porém, nem todas as pessoas reagem da mesma forma frente ao perigo, isto é, algumas conseguem elaborar a situação e outras não, mas, de um modo geral, a angústia surge enquanto defesa às situações tidas como ameaçadoras ou estranhas.

No texto "O Estranho" (1919), Freud demonstra que nem todas as situações novas causam estranhamento às pessoas. "Algumas novidades são assustadoras, mas de modo algum todas elas" (p. 239). Ele contesta a suposição de que a estranheza decorre da inabilidade em abordar intelectualmente a situação. Freud vai mais longe, analisa os estranhamentos que acontecem entre os indivíduos como aspectos inconscientes que emergem e que estão além da compreensão intelectual.

Como já dissemos, para Lacan a angústia está relacionada à fixação narcísica; neste sentido, pode-se supor que a angústia do professor em relação a alguns alunos está associada à dificuldade deste em desvencilhar-se de si mesmo no estabelecimento de laço com o Outro, este Outro estranho. Segundo Lacan, a angústia não é emoção e, sim, um afeto. Algo que está à deriva no sujeito. O afeto é o que não foi recalcado, por isso passível de irromper sob determinadas circunstâncias. O contato com o diferente, com o Outro tomado como estrangeiro constitui um terreno fértil para a emergência de afetos recalcados.

Do ponto de vista lacaniano, a angústia não é para ser tratada, curada, e sim atravessada. A angústia é um resto que não entra na rede de significantes, ela não é apreendida. Para Miller, Lacan recorreu à angústia para "apreender o que não é significável, o que é o resto de toda a significação" (Miller, 2005:11). A angústia, para o analista, é tomada como um motor que move o analisando, por isso precisa ser manejada ao invés de eliminada.

 

Considerações finais

Consideramos que a angústia na escola deve ser abordada sob esta mesma perspectiva. Isto é, não há nada que possa curar a angústia do professor, mas pode-se buscar atravessá-la e, nesta travessia é importante que ele receba suporte. Isto não quer dizer que o professor, necessariamente, tenha que passar por processo analítico, posto que há professores que não fizeram análise e conseguem gerenciar sua angústia, transformando-a em intervenções pedagógicas criativas.

A própria palavra suporte – evocada diversas vezes nos grupos de professores pesquisados – nos remete a duas pistas. Em primeiro lugar, sugere a necessidade de o professor tolerar suas incumbências, suportar o próprio desejo de ser professor, enfrentando as adversidades do cotidiano. Em segundo, implica na busca de um aparato que lhes ofereça sustentáculo e firmeza face ao mal-estar de suas escolhas. Não estamos sugerindo que o professor deva se acomodar com o mal-estar e com todas as incumbências que lhe são exigidas, pelo contrário, é importante que assuma uma posição ativa e de enfrentamento das adversidades.

Se o mal-estar, como vimos, está, muitas vezes, relacionado aos estranhamentos que irrompem na relação com o aluno, um dos possíveis suportes ao professor seria tornar esse estranho um pouco mais familiar e menos ansiógeno. Ocorre que isto não se dá pela via da informação, ou seja, não basta descrever ao professor os quadros clínicos de determinada deficiência, pois assim como o mapa não é a cidade, a criança não é seu diagnóstico. Isto tampouco advém pela via da explicação, isto é, explicar ao professor que uma criança age de determinada maneira porque seu histórico familiar é tal, não o ajudará a fazer laço com este aluno, pelo contrário, poderá intensificar o estereótipo e fortalecer o muro entre ambos.

A travessia do mal-estar implica primeiramente na criação de um espaço em que o professor possa ser escutado e, ao ser escutado, possa ele mesmo se escutar. Um espaço para que ele possa expor seus medos, explicitar suas dúvidas e sensações acerca de determinadas crianças, enfim, um espaço onde se possa deixar emergir o conflito, simbolizando seu mal-estar. Um momento no qual o professor possa pensar a relação com o aluno em sua singularidade.

Contudo, falar do mal-estar não basta, pois corre-se o risco de apenas criar-se mais e mais sentidos, fixando os atores escolares ao queixume. É isto que vemos em muitas reuniões de professores. Fala-se muito e muda-se pouco. A passagem para o Real, tal qual nos propõe Lacan, está calcada no ato. De acordo com Leite (2000) a segunda clínica lacaniana implica na separação entre o sentido e o Real, e passa a ser pensada no que está além do querer dizer, passa a ser pensada a partir da vontade de gozo.

Nesta perspectiva, o tratamento analítico não mais se fundamenta na interpretação que confere sentido ao que é dito, mas sim no ato que busca responsabilizar o sujeito por seu gozo.

Transpondo esta noção para o plano da educação, não se pode conceber uma modalidade de suporte ao professor que apenas estabeleça dia e horário para o queixume instituído, é importante que ocorra uma passagem ao ato, isto é, para ações nas quais os professores possam ser autores e executores de seus projetos. Ações nas quais, a equipe docente possa não só refletir sobre os discursos que circulam na escola, como também responder por suas escolhas, por seu desejo de ser professor. Suportar este desejo constitui uma grande travessia.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

CAPEL, S.A. The incidence of and influences on stress and burnout in secondary school teachers. British Journal of Educational Psychology, Edinburg, v. 57, p. 279-288, 1987.

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_____, Sigmund. (1926) Inibições, sintomas e angústia. Rio de Janeiro: Imago, 2001.

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JERUSALINSKY, A. & PÁEZ, S. M. C. Carta aberta aos pais acerca da escolarização das crianças com problemas de desenvolvimento. Estilos da Clínica – revista sobre a infância com problemas. Vol. V. Nº 9. São Paulo: USP – Instituto de Psicologia, 2º semestre 2000.

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KUPFER, M. C. Porque ensinar a quem não aprende? Estilos da Clínica – revista sobre a infância com problemas. Vol. V. Nº 9. São Paulo: USP – Instituto de Psicologia, 2º semestre 2000.

LACAN, Jacques (1962-1963). Seminário 10 - a angústia. 4ªed. Recife: Centro de Estudos Freudianos do Recife, 2000.

LEITE, Márcio P. Na segunda clínica de Lacan a palavra não se dirige ao Outro. In Estilos da Clínica – revista sobre a infância com problemas.Vol. V. Nº 9. São Paulo: USP – Instituto de Psicologia, 2º semestre 2000.

MILLER, Jacques A. Introdução a leitura do Seminário 10 da Angústia de Jacques Lacan. Opção lacaniana – revista brasileira internacional de psicanálise, São Paulo: Edições Eólia, maio-2005.

REIS, E. J. F.B; ARAUJO, T.M.; CARVALHO, F.M; BARBALHO, L.; OLIVEIRA E SILVA, M. Formação de profissionais da educação: docência e exaustão emocional. In Educação e Sociedade. Vol. 27. n. 94, Campinas, Jan./abril.2006. Disponível em meio eletrônico: http://www.scielo.br/ scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-73302006000100011&lng=en&nrm=iso

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ZARAGOZA, José Manuel E. O mal-estar docente: a sala de aula e a saúde dos professores, Bauru: Edusc, 1997.

 

 

1 Pesquisa de Mestrado defendida na Faculdade de Educação da USP na linha de pesquisa Psicologia e Educação sob orientação da professora Dra. Maria Izabel Galvão em 2006.