6Diversidade e adversidades na escola: queixas de professores frente à educação inclusivaO psicanalista na instituição de educação infantil: uma posição ética author indexsubject indexsearch form
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On-line ISBN 978-85-60944-08-8

An 6 Col. LEPSI IP/FE-USP 2006

 

O que mantém educadores e alunos na escola? Contribuições da psicanálise para a educação

 

 

Cristiane FiauxI; Oziléa ClenII

Ifiaux@grani.com.br
IIozileaclen@yahoo.com.br

 

 


RESUMO

O presente trabalho versa sobre questões relacionadas ao desafio da psicanálise frente aos impasses oriundos da educação formal ministrada nas escolas públicas da cidade do Rio de Janeiro. O reinado da Globalização, considerada uma das faces do capitalismo atual, vem provocando profundas mudanças na ciência, na política, na economia, nos laços sociais, impondo uma nova cultura evidenciada pelo neoliberalismo e com isso novos padrões de vida são regulados pelo imperativo do gozo. Com a ilusão do tudo pode, da busca incessante pela felicidade plena, pelo prazer a qualquer preço, o sujeito fica à deriva, sem rumo, perde a sua identidade pela imposição do ideal de igualdade determinado pela massificação do sistema globalizado. Nesse contexto, a educação e a escola são também alvos desse sistema com seu tecido social modificado. Pergunta-se neste trabalho sobre o que regula as pulsões, quando há uma mutação, ou mesmo ausência da autoridade? Por outro lado, o que se transmite na escola e o que autoriza o professor a sustentar sua ação com o crescente declínio da função paterna e da mestria? Diante das questões postas trazemos o testemunho1 de um trabalho de interseção entre Psicanálise e Educação do qual fazemos aqui o recorte através do depoimento de um educador: "O aluno X foi suspenso, mas não foi embora. Ficou rodeando a escola até pular o muro da mesma e voltar. Desafiando as regras da instituição se juntou aos outros alunos. Mas, o que nos causou espantou foi o fato de a professora Y tê-lo convidado para uma conversa e, após alguma resistência, o encontro se deu e ela pôde escutá-lo". Frente a esse cenário, há que se perguntar. O que se transmite em uma escola?

Palavras-chaves: transferência; desejo; transmissão.


 

 

A educação encontra-se afetada pelo declínio da função paterna, o que modifica o funcionamento da lei, pela cultura de consumo e pelo excesso do individualismo. Fato este que fica explicitado por Lacan, no seminário 17, quando diz que o próprio sujeito torna-se objeto consumível.

Constatamos que estamos vivendo numa época onde há uma promessa de que se pode fazer o que se quer, de uma política "laisse-faire" que acaba se afinando com o sistema vigente regido pela ética do consumo. Nesta configuração, o sujeito encontra-se à deriva, fruto do momento em que os parâmetros sócio-culturais encontram-se abalados pelo excesso de oferta.

Percebendo que o desejo de saber e a arte de ensinar se enfraquecem, cabe aqui indagar: como situar o binômio ensino / aprendizagem neste cenário? Como lidar com seus impasses e suas contingências?

Sabemos que Freud se preocupou com a educação como uma das três tarefas impossíveis, sendo as outras governar e psicanalisar. Kupfer (2005), sinaliza, porém, que impossível não quer dizer que não possa ser realizável e nos lembra que "Freud foi um mestre da Educação, porque abriu caminho para a reflexão sobre o que é ensinar e o que é aprender" (p. 8).

Esse pensamento nos indica que não devemos recuar diante dos obstáculos e foi a partir daí que nos envolvemos e lançamos-nos neste trabalho com educadores de uma Escola da Rede Municipal do Rio de Janeiro, onde o fracasso escolar insistia apesar de todos os instrumentos criados para combatê-lo.

A partir da proposta do projeto Aleph2 foram feitos 12 encontros, durante seis meses, usando o espaço da própria escola, com a aquiescência da mesma e da Secretaria Municipal de Educação. Nesses encontros, os educadores puderam discutir e refletir sobre as questões que os afetavam, buscando encontrar possíveis saídas e soluções frente aos impasses vividos naquela escola.

Encontramos nessa escola um grupo de educadores queixosos, deprimidos, angustiados, doentes, revoltados e inconformados com o sistema político-educacional. Segundo os mesmos, sentiam-se desautorizados, pois as regras e o projeto político-pedagógico era constantemente modificado, além do fato de o material didático ser inadequado ao aprendizado dos alunos. Essas situações dificultavam ainda mais o manejo dos educadores na sua árdua tarefa de transmitir conhecimento.

Para reforçar o fracasso situado nesta escola, os educadores3 se diziam desmotivados em relação ao ato de ensinar, expressando seus desagrados, o medo, o desespero e a fragilidade para lidar com os alunos. Estes faziam uso da escola para depositar suas fúrias, suas violências, suas ameaças e suas "passagens ao ato", quando agrediam colegas e professores. Os educadores diziam: "Cada dia cresce mais a violência e a falta de respeito".

Aquele lugar chamado escola funcionava para os alunos como um grande "ringue", onde as lutas e as agressões, segundo os educadores, eram tão violentas que se tornavam "impossíveis" de serem aplacadas. Diziam eles: "Se entrarmos nesse meio seremos atingidos". Estes educadores clamavam por soluções frente à desordem dos alunos, o que evidenciava a falta de autoridade que predominava nesta escola, e assim eles diziam não saber o que fazer com aquela condição.

O que pudemos presenciar neste grupo é que suas queixas e suas lamentações em relação aos alunos eram pautadas na falta de limites, nas brigas, no uso indevido do celular dentro da sala de aula, nos desentendimentos entre eles, na falação que chegava a impedir os professores de darem as suas aulas. Diziam sentirem-se estressados e esgotados pela agitação dos alunos. Entretanto, constatamos esta mesma desordem no corpo docente. A agitação do corpo docente era tão exacerbada que encontrávamos certa dificuldade para ouvirmos suas falas. Eles também faziam uso do celular de forma abusiva, falavam ao mesmo tempo, se agrediam com palavras, além de entrarem e saírem da sala sem pedir licença.

A análise dos depoimentos desses professores precisava ter como foco principal o desenvolvimento de um processo de reflexão sobre suas queixas, indiferenciadas, generalizantes, para então fazer emergir a demanda, articulada e simbólica.

"Vejo o que está dando certo e vou deixando; tem que ver o que harmoniza mais. Não sei qual a receita, mas vou desenvolvendo o trabalho" (palavras de uma educadora). É fundamental deslocar o professor de um lugar estático e retificar sua posição subjetiva, fazendo com que se responsabilize por seus atos. Suportar a existência da falta, ou de um não-saber, possibilita que o professor trabalhe a partir das diferenças de seus alunos.

Cabe destacar que estes educadores trabalhando na mesma escola e apresentando tais características, não se constrangiam em dizer que, apesar se verem todos os dias não se conheciam e que esses encontros possibilitavam essa aproximação. O curioso é que apesar de perceberem esse "viver cada um na sua", demonstravam uma familiaridade nas provocações e desentendimentos uns com os outros, ficando em evidência a falação numa repetição de suas próprias lamentações. Estávamos diante da proliferação do gozo da fala que assim como emperra, também promove o laço social.

Era comum testemunhar na fala de alguns educadores manifestações de angústia quando se ouvia: "não dá mais, eu não consigo fazer nada" (sic).

Lacan, no seminário 10, diz que "A angústia é esse corte – esse corte nítido sem o qual a presença do significante, sem funcionamento, sem sulco no real é impensável; (...) é o inesperado, a visita, a notícia, aquilo que é tão bem exprimido pelo termo ‘pressentimento’, que não deve ser simplesmente entendido como pressentimento de algo, mas também como pré-sentimento. (...) a verdadeira substância da angústia, é o aquilo que não engana, o que está fora da dúvida" (p. 88).

A angústia, que a priori inibi a ação ou está a serviço do sintoma, por sua vez pode transformar-se em um dispositivo que impulsiona para uma nova ação que se vislumbra criativa, no sentido de buscar possibilidades de fazer frente ao cotidiano muitas vezes avassalador. É a necessidade de um "saber fazer" que se instala como condição preponderante. O desejo advém a partir da suspensão da inércia paralisante e move a busca de possibilidades para agir.

Apesar da existência de um saber, do qual ainda não se apropriavam, os educadores demandavam um passaporte para tomar decisões, definições ou demarcações de lugares. Supomos que é preciso aprender a "se virar com o não-saber" e considerar que o papel do educador não é saturar o educando de conhecimentos. Acreditamos que a angústia dos professores pode se apaziguar no espaço da fala. São as elaborações a posteriori que causam efeito sobre e dão sentido ao que se fala; é "só depois do ato" que se torna possível a significação, ato esse que muitas vezes surpreende também o psicanalista na difícil tarefa de estabelecer um diálogo da psicanálise com a educação.

O aluno adquire na relação com o professor algo transmitido, para além do conhecimento, e é convidado a usar seu pensamento, a obter prazer pelo acesso ao saber e se encher de esperança pela capacidade de criar. É a posse desse saber que possibilita descobertas e nisto reside a tarefa de fazer desejar, de fazer saber, que se presentifica na relação professor-aluno.

Lacan, no seminário 20, seguindo Freud, já nos pôs avisados de que há um saber que não se sabe4, e que "o que descobrimos na experiência de qualquer psicanálise é justamente da ordem do saber, e não do conhecimento ou da representação. Trata-se precisamente de algo que liga, em uma relação de razão, um significante S¹ a um outro significante S²".5 O saber da prática pedagógica diz respeito ao domínio de conteúdos propostos e da transmissão de regras e normas sociais. Este saber está, em certo nível, "dominado, articulado por necessidades puramente formais, necessidades de escrita, o que culmina em nossos dias em um certo tipo de lógica".6

Este é o tipo de ensino, de aprendizagem que conhecemos no dia a dia das escolas. Não há espaço, ainda, para uma avaliação diferenciada, sobretudo na rede pública onde a aprovação automática (que pretendia ir neste sentido) tomou a forma de: todos passam mesmo, deixa-se para o final do ciclo a tarefa de perceber se um aluno está aprendendo ou não e de interrogar-se por quê! Numa outra direção encontramos escolas onde o professor se vê compelido a prestar contas de conteúdos e prazos objetivos, não sem sofrimento e angústia.

No trabalho realizado, a solicitação dos professores dizia respeito à urgência em ouvi-los como sujeitos. A escuta possibilitada a eles favoreceu um espaço de acolhimento de suas questões. Mas a crença de que a razão é suficiente para dar conta da realidade, é refutada por Lacan que diz em seu seminário 7: "Na perspectiva freudiana, o princípio de realidade apresenta-se como que se exercendo de uma maneira que é essencialmente precária. (...) O idealismo consiste em dizer que somos nós que damos a medida da realidade, e que não se deve buscar para além disso. É uma posição reconfortante. A de Freud, aliás como a de todo homem sensato, é coisa bem diferente" (p. 43).7

Nesse sentido, a função do psicanalista na escola, apesar de se diferenciar de uma terapia, não deixa de lado o que lhe é mais caro, a função da fala como meio de trabalho. O professor, por sua vez, se aproxima também da função do analista na medida em que precisa suscitar desejo de saber nos seus alunos.

Durante nossa intervenção, os educadores manifestavam seu inconformismo também com a imposição dos governantes. Assim, deslocavam as suas implicações como educadores à família, à direção da escola, ao sistema político, não acreditando em nada e até em si mesmos. Este aspecto apontava para uma angústia paralisante que quase sempre os impedia de agir.

Lacan, quando elaborou sua Proposição sobre o psicanalista da Escola (1967), fez a distinção entre a psicanálise em extensão e intenção. Ambas estão interligadas quando sustentadas pelo desejo do analista no que concerne ao tratamento do sujeito (p.5). Já Freud, em "O Mal-estar na civilização" (1930), afirma que "as práticas educativas são determinadas pelos recalcamentos sofridos pelo educador, que incidem sobre a parte infantil da sua sexualidade".

Podemos refletir a partir desses extratos de Freud e de Lacan que o ato de educar confronta o educador com o material de sua própria infância e com aquilo que traz em sua experiência como aluno. Indo mais além, a figura do educador pode encarnar figuras parentais e é nessa relação educador/aluno que se processa a transferência e a transmissão. Portanto, o ato de educar e o desejo pelo saber têm relação com os primórdios da vida de cada um.

Ora, se a cultura globalizada pode ocasionar a permissividade, como pode-se pensar sobre esse sujeito que se encontra sem referências e com suas pulsões liberadas? Como se pode pensar a educação se esta implica em uma orientação, e mesmo um recalcamento dos representantes pulsionais?

Um fato nos chamou a atenção nesta escola onde desenvolvemos o trabalho. Enquanto o grupo ficava numa angústia paralisante, esperando que as analistas tivessem a "poção mágica" para apaziguar as suas angústias, uma professora, que também é psicóloga, se destacava do grupo demonstrando uma identificação com a proposta do Aleph8. A sua fala era sempre a de apontar que a possível solução para enfrentar as desordens da casa estava com cada um dos educadores. Esta professora que sempre mantinha a calma frente ao desespero do grupo propôs-se a abrir um espaço, numa das salas da escola, para ouvir os alunos-problema. As suas intervenções e a sua disponibilidade em oferecer ajuda aos colegas promoveu uma certa mudança no grupo.

Foi esta professora quem se dedicou ao aluno "X", considerado o pior da escola, o "impossível", mas que não arredava pé e nem abandonava a escola. Segundo relatos dos professores ele era o elemento que provocava a rebeldia, incitando os outros alunos a fazerem da escola o ponto de bagunça, de desordem, impedindo que os professores prosseguissem com suas aulas.

Este aluno era suspenso, expulso, encaminhado ao Conselho Tutelar e retornava à escola. O que o movia a isso? Não era por acaso que ali ele se alojava, mesmo aprontando "as suas", chamando a atenção de todos.

Esse fato instigou a referida professora e a levou a fazer um convite ao aluno e ele, mesmo na sua inquietude, demonstrando, segundo ela, desconforto, não faltava aos encontros, era ouvido e contava, a seu modo, a sua história. Chegou a levar um colega seu que fazia parte das suas ordenanças.

A partir de então, os educadores passaram a relatar que "X" mudara, que já se prontificava a ajudar os outros alunos, passou a ter um bom relacionamento com o professor de Educação Física, passando a ajudá-lo nas tarefas, ficando sempre ao seu lado. Não podemos esquecer de ressaltar a transferência que se operou com este professor, assim como com a professora que iniciou os contatos. Um dado importante a ser sinalizado é que o aluno "X" estava sempre assustando o professor de Educação Física, chegando a ameaçá-lo de morte.

O que parece ter acontecido foi o efeito do acolhimento dado por esta professora a este aluno, que se estendeu aos demais colegas. Nomeado "sem solução", suas mudanças foram sendo transmitidas ao corpo docente que, refletindo sobre as conseqüências que se operavam, começa a se implicar de forma individual, também vislumbrando algumas saídas possíveis para muitos impasses. Ao final dos encontros, declaram-se responsáveis por um saber fazer de cada um deles. Foram mais além ao dizerem que o aluno "X" escolheu a escola como se fosse sua casa e ficava em busca de alguém que pudesse lhe dar atenção, que o aceitasse e acolhesse-o, pois o pior o esperava: as drogas, o tráfico e a morte. Talvez tivesse encontrado algum sentido para pular o muro da escola, não mais para fora desse espaço, mas para fazer-se escutar.

Não nos resta dúvida de que é a partir da experiência do infantil e de sua marca particularizada que se promove a transmissão.

A contribuição que a Psicanálise pode oferecer ao campo da Educação é o pensar sobre o que está em jogo no ato de ensinar. Abarcando a proposta de interdisciplinaridade da qual o analista não pode se furtar e, por outro lado, não pode banalizar sob o risco de reduzir sua ação, ele pode, entretanto, fazer laços com outros saberes. Concluímos pensando que é possível criar novas ferramentas que validem o saber da prática psicanalítica na interlocução com a educação.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

COHEN, Ruth Helena Pinto. Uma questão entre Psicanálise e Educação sobre a etiologia do fracasso escolar. Tese de doutorado defendida no Instituto de Psicologia da UFRJ, 2004.

FREUD, S. O interesse educacional da psicanálise. In: O interesse científico da psicanálise. Rio de Janeiro: Imago, 1974, vol. XIII.

_______ O mal estar na civilização. Rio de Janeiro, Imago, 1976, vol XXI.

Kupfer, M C. Freud e a educação o mestre do impossível. São Paulo, Scipione Editora, 2005.

LACAN, Jacques. O seminário 7: A ética da psicanálise. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1992.

_____________ O seminário 10: A angústia. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2005.

_____________ O seminário 17: O avesso da Psicanálise. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1991.

_____________ O seminário 20: Mais ainda. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1992.

_____________ Proposição de 9 de outubro de 1967. Em: Opção Lacaniana, nº 16, agosto de 1996.

 

 

1 Projeto Aleph – www.projetoaleph.com.br – PROJETO DE PESQUISA E INTERVENÇÃO COM EDUCADORES SOBRE A PROBLEMÁTICA DO FRACASSSO ESCOLAR.
2 Projeto realizado no ano de 2005 em escolas da Rede Municipal da Cidade do Rio de Janeiro, que versa sobre a interseção entre Psicanálise e Educação.
3 Cabe lembrar que o projeto abrangia todos os segmentos da escola. No caso citado, a referência é aos professores.
4 p.129.
5 Lacan, J. O avesso da psicanálise. O seminário, livro 17. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 1992, p.28.
6 Lacan, J., op. Cit, p.46
7 Lacan, J. A ética da psicanálise. O seminário, livro 7. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 1992, p.43.
8 O referido Projeto tem como proposta intervir, a partir da interseção Psicanálise e Educação, na problemática do fracasso escolar que ocorre nas escolas do município do Rio de Janeiro. Tem como ponto de partida a necessidade de aprofundar discussões que vêem sendo propostas nas áreas da Educação, Psicologia e Psicanálise.