6O que mantém educadores e alunos na escola? Contribuições da psicanálise para a educaçãoA ilusão de superação do mundo adulto: psicanálise, educação e contemporaneidade author indexsubject indexsearch form
Home Pagealphabetic event listing  




On-line ISBN 978-85-60944-08-8

An 6 Col. LEPSI IP/FE-USP 2006

 

O psicanalista na instituição de educação infantil: uma posição ética

 

 

Daniela Teperman

 

 


RESUMO

O psicanalista na instituição de educação infantil tem diante de si o desafio de transitar entre o singular e o coletivo, procurando garantir espaço para o sujeito inserido em um coletivo representado pela instituição e toda engrenagem que garante seu funcionamento. Este profissional atua introduzindo intervenções que contemplam a singularidade diante dos impasses produzidos pelo encontro do sujeito com a ordem institucional, ao mesmo tempo em que reafirma a lei necessária e fundamental representada por esta. Neste sentido, a tendência do psicanalista neste âmbito é pender para intervenções pensadas a partir daquilo que deve ser garantido para o sujeito em determinado momento de sua "vida institucional". Os bebês que ingressam na creche, as crianças que apresentam dificuldades em sua constituição psíquica e/ou desenvolvimento – os chamados casos de inclusão – são aqueles que requerem permanentemente intervenções específicas, respostas singulares às demandas que nos apresentam. No entanto, há intervenções que visam justamente "diluir" aquilo que passa a singularizar uma criança na instituição. Refiro-me aqui aos efeitos de prescrições médicas que muitas vezes são encaminhadas à escola, grande parte delas preconizando dietas alimentares a serem garantidas no espaço institucional. Este trabalho tem como objetivo discutir as intervenções possíveis diante destas prescrições, intervenções sustentadas no comprometimento radical com o sujeito, no reconhecimento da singularidade de cada situação, assim como as possibilidades de leitura do posicionamento e dos efeitos em cada instância envolvida: as famílias, as crianças e os educadores.


 

 

O psicanalista na instituição de educação infantil é o profissional que transita entre o singular e o coletivo; que, sem perder de vista a ordem institucional, volta o olhar para o sujeito, propondo ajustes que se tornam fundamentais para a permanência deste em determinado momento, na instituição. Mas não é uma tarefa simples definir o trânsito entre estes dois pólos – o sujeito e a instituição – uma vez que se atualiza nas diversas demandas cotidianas, muitas vezes surpreendentes, que são endereçadas à instituição. Demandas formuladas pela família, pelos educadores, pelos especialistas que acompanham a criança. É preciso indagar: de quem é a demanda? A serviço de que ela está? Quais as implicações ao atendê-la? E, por último, mas não menos importante: posicionar-se diante de cada uma destas demandas constitui-se em uma aposta, aposta fundamentada em uma leitura de cada criança e sua família e da relação que estabelecem com a instituição.

Apostar implica arriscar. Há sempre um risco uma vez que se trata de "emitir opinião convicta sobre (algo cujo resultado ainda não se conhece)"1. Nesse sentido, apenas no só-depois é possível verificar os efeitos e repensar as intervenções.

Assim como é necessário um movimento pendular entre os dois pólos citados, torna-se fundamental que os ajustes realizados tenham um caráter transitório, devendo ser reavaliados de forma pontual e constante. Caso contrário, podem permanecer para além do necessário, convertendo-se em regras aplicadas de forma automática e muitas vezes arbitrária, perdendo com isso seu caráter singular.

Ajustes, intervenções e apostas são formulados a partir de uma leitura do sujeito na instituição. A psicanálise é a disciplina responsável pelo resgate do sujeito. Há uma ética que sustenta a escuta do psicanalista, ética sustentada no sujeito do desejo. E o modo de posicionar-se diante das inúmeras demandas está orientado por esta ética, visa a contemplar o sujeito sem perder de vista os pilares que mantêm o funcionamento institucional.

Se o psicanalista insiste no olhar para o sujeito do desejo no âmbito coletivo, também vem reafirmar em cada uma das instâncias envolvidas no funcionamento institucional (equipe técnica, educadores, pais e crianças) a falta fundante do desejo humano. Sustenta no exercício diário da escuta a incompletude e as angústias daí decorrentes.

Ao marcar a passagem da pequena criança do universo familiar para o espaço público, a instituição educacional está sempre às voltas com o estabelecimento de fronteiras entre estes dois âmbitos. Se a instituição pretende garantir um espaço para a subjetividade, estas fronteiras não devem ser fixas ou rígidas, mas passíveis de serem revistas e reavaliadas cotidianamente.

Em uma instituição com um histórico como o da creche, a delimitação entre estes territórios é ainda mais conturbada, dado o contexto assistencialista em que tal instituição surgiu e se consolidou como equipamento de atendimento à criança.

Na modernidade vemos esse contexto tumultuado pelo enfraquecimento do saber dos pais sobre como educar seus filhos, paralelamente ao crescente fortalecimento do discurso unívoco do especialista detentor das certezas sobre como proceder com a criança2.

Neste sentido, as idéias de Hanna Arendt, mais do que pertinentes, são elucidadoras sobre o lugar do adulto em relação à criança (aquele que apresenta um mundo antigo e se responsabiliza por este) e em relação à função da escola como um espaço inaugural das primeiras vivências para além do âmbito privado.

 

Um olhar para o singular

"Normalmente a criança é introduzida ao mundo pela primeira vez através da escola. No entanto, a escola não é de modo algum o mundo e não deve fingir sê-lo; ela é, em vez disso, a instituição que interpomos entre o domínio privado do lar e o mundo com o fito de fazer com que seja possível a transição, de alguma forma, da família para o mundo" (Arendt, 2003, p. 238).

A entrada de um bebê ou criança pequena na creche, berçário ou pré-escola representa uma transição do familiar para o público. A creche atua como um terceiro para a criança e sua família, e como um primeiro contato com o espaço coletivo. O processo de adaptação, visto como importante e fundamental – como um elemento distintivo no marketing das escolas particulares: "nós cuidamos da adaptação das crianças" – é muito mais complexo do que pode parecer à primeira vista. Trata-se de fazer ajustes na engrenagem institucional – ajustes momentâneos, transitórios – que permitam ao sujeito encontrar seu lugar sem se perder no coletivo e não apenas de "abrir as portas da escola aos pais" e adaptar a criança e sua família às regras da instituição.

É importante ressaltar que, sobretudo para bebês e crianças com riscos em sua constituição subjetiva, esse lugar de terceiro, essa outra cena que se oferece a partir de outros Outros que se apresentam ao bebê, pode ter importância crucial e definitiva na construção da subjetividade3.

A escola oferece para a criança a possibilidade de instituir novos modos de se relacionar, de ser diferente do que é em casa. Oferece uma outra cena à qual pode responder de maneiras muito interessantes. Recentemente uma mãe pediu para filmar seu bebê tomando leite no berçário, "em casa ele não aceita a mamadeira de jeito nenhum". Diante da mãe, filmadora em punho, o que responder? Foi importante investigar as fantasias que o pedido suscitou nas educadoras: a mãe não confia? Por que precisa filmar? Acredita que tenhamos uma técnica de que em casa não dispõe?

Tentador deixar essa mãe "invadir" o espaço da criança na escola num certo gozo de "aqui nós sabemos", remetendo a mãe à sua impotência, mas mantendo a fantasia, encoberta, sobre a "desconfiança" por parte da família. Em uma demanda simples como esta, as fronteiras entre o que é privado e o que é público podem ser colocadas em risco. Em nome de atender sempre ao "cliente", ou, ainda, com o lema "este é um espaço aberto para os pais", muitas escolas cometem atrocidades expondo o que é privado no âmbito institucional, tornando a criança e sua família transparentes no espaço coletivo.

Diante desta demanda, abre-se a possibilidade de circular o imaginário que se atualiza na creche sobre esta mãe, sobre as mães, e de discutir esta demanda específica, situando-a em relação a tantas outras que nos são encaminhadas, pois não há um saber prévio que determine uma ação a ser efetivada. A resposta decorre de uma leitura da relação desta mãe com seu bebê e com a instituição, e do momento específico que a família está vivenciando.

"Aqui, o psicanalista não interfere como explicador, mas como perguntador, expondo a fragilidade que existe sob a aparência das certezas estabelecidas e convidando os agentes sociais a suportar a angústia de se indagar, mais e mais uma vez, sobre os fundamentos de seu saber e sua prática" (Kehl, 2002, p. 28).

Nesta perspectiva, a escola não assume o lugar de toda, dominante da técnica e do saber sobre os bebês, mas se oferece em um outro lugar, no qual o bebê pode fazer outras coisas, diferentes do que faz em casa. Nem melhores, nem piores; apenas diferentes. A diferença não só é aceitável, mas bem-vinda, e devemos instrumentar os pais a vê-la deste ponto de vista, a suportar. Afinal, de que serviria a comprovação, esgotamento pela imagem escópica, de que realmente o bebê é diferente na escola? Esta demanda, formulada pela mãe e endereçada à escola, é uma excelente oportunidade para investigar as fantasias desta assim como seus efeitos no discurso institucional.

 

Quando singularizar significa diluir...

A combinação efervescente entre o histórico assistencialista da creche, as fronteiras pouco claras entre público e privado, as inseguranças parentais e as certezas do especialista parece efetivar-se na introdução de dietas alimentares para algumas crianças na instituição a partir de prescrições médicas e nos efeitos que são produzidos nas crianças e suas famílias.

Nas creches da Universidade de São Paulo, a maior parte das crianças está matriculada em período integral. Com isso, as questões relativas à alimentação aparecem com muita freqüência, seja na fala das educadoras, seja nas demandas dos pais àquelas endereçadas ("meu filho almoçou bem?" "tomou o leite?").

Estas questões muitas vezes angustiam as educadoras e remetem à discussão sobre a responsabilidade da instituição de educação infantil na promoção de hábitos saudáveis e na prevenção de transtornos do desenvolvimento, e sobre os limites que encontramos em nossa intervenção. Limites que têm a ver com os hábitos familiares e com o entendimento de quão precocemente se estabelece a relação da criança com os alimentos / com o Outro.

Ainda que a instituição desenvolva diversos projetos na área de saúde e nutrição, convênios e discussões permanentes com as áreas de Fonoaudiologia, Nutrição e Enfermagem, de tempos em tempos especialistas endereçam à instituição prescrições médicas sobre procedimentos a serem realizados na creche: "A criança D., com crises repetidas de obstipação intestinal, deve receber alimentação rica em frutas e fibras na creche4" ,"A criança C., com sobrepeso, deve receber dieta hipocalórica na creche, evitando frituras, doces, etc".

A implementação de prescrições como estas, relativamente simples do ponto de vista organizacional, tem nos levado a questionar sua adequação a partir de diversos pontos de vista. Observamos que as crianças que passaram a receber um alimento diferente – dieta mais rica em fibras ou menos calórica – ou recusavam terminantemente seu alimento ou passavam a ingerir o seu alimento e também a preparação oferecida às outras crianças; o primeiro exemplo mais freqüente nos casos de dieta rica em fibras e o segundo para as dietas hipocalóricas. Com isso, verificamos que essas dietas eram ineficazes do ponto de vista do objetivo para o qual tinham sido estabelecidas. As dietas criavam ainda um clima de vigilância entre educadoras e crianças e um questionamento freqüente das outras crianças sobre os motivos que levavam ao estabelecimento desta diferença.

Observamos como decorrência destas prescrições que os pais se viam desimplicados das dificuldades apresentadas pelos seus filhos. Resguardados pela frase "meu filho passa o maior tempo do dia na creche", entendiam que sua tarefa diante do problema se encerrava com o encaminhamento da prescrição à creche. Do lado da instituição, avaliamos que a introdução destas dietas impossibilitava que este espaço pudesse se estabelecer como uma outra cena para a criança, criando condições para que esta pudesse experimentar ser diferente do que é em casa.

Estas prescrições que a ordem médica dirige à instituição são passíveis de serem efetivadas do ponto de vista objetivo, mas são ineficazes no âmbito coletivo justamente porque remetem à questões da família, ao âmbito privado. As famílias, sustentadas em seu não-saber, deslizam de sua responsabilidade, omitindo-se, o que fazem ao enunciar uma simples frase: "meu filho passa a maior parte do tempo na escola". Esta é a "deixa" para que se atribua o que diz respeito à família à instituição.

A escola, por sua vez, dispõe de especialistas – neste caso um nutricionista – que detêm o saber sobre como implementar as ações solicitadas com competência e sem criar grandes dificuldades do ponto de vista do funcionamento institucional. Então, por que não fazê-lo?

"A psicanálise faz falta aos outros discursos como o artifício que vem ‘lembrar’ ao homem que ele repete o que não sabe porque disso ele nada quer saber" (Nazar, 1999, p. 222).

Não fazê-lo porque não é esta a solução. Porque ao referir-se ao tempo que a criança passa na creche, os pais se desimplicam e, mais que isso, transferem ao espaço público questões que dizem respeito ao âmbito privado, lançando a criança numa repetição no espaço público daquilo que é verdade no espaço familiar, perdendo a oportunidade de produzir uma diferença a partir do contexto que inaugura ao ingressar na escola.

Lacan, nos alerta sobre a tentativa de fazer o bem e os riscos em que esta implica:

"Poder-se-ia de maneira paradoxal, ou até mesmo decisiva, designar nosso desejo como um não-desejo de curar. Essa expressão tem o sentido de alertar aos psicanalistas contra as vias vulgares do bem, tal como elas se oferecem a nós, contra a falcatrua de querer o bem-do-sujeito" (Lacan. O seminário – livro 7 – A ética da psicanálise)

Olhar para o sujeito na instituição é justamente oferecer-lhe a possibilidade de não ter sua vida privada exposta no espaço público. Este é um assunto para ser tratado em casa. Mais que isso, não tratar dele no âmbito coletivo é favorecer outras formas de encaminhamento e elaboração da questão. É também não assumir, não porque isso seria trabalhoso, mas por convicção, aquilo que é da responsabilidade dos pais.

Quando, por exemplo, por indicação médica, a criança passa a receber uma dieta hipocalórica na instituição, o fator obesidade passa a diferenciá-la das outras crianças. A obesidade passa a representá-la no espaço público que perde a possibilidade de constituir-se como uma outra cena para a criança, convertendo-se em extensão do familiar, o espaço público contaminado por aquilo que deveria permanecer no âmbito privado, a criança e sua família tornam-se transparentes,e a possibilidade de mudança é substituída pela repetição.

"Quanto mais completamente a sociedade moderna rejeita a distinção entre aquilo que é particular e aquilo que é público, entre o que somente pode vicejar encobertamente e aquilo que precisa ser exibido a todos à plena luz do mundo público, ou seja, quanto mais ela introduz entre o privado e o público uma esfera social na qual o privado é transformado em público e vive-versa, mais difíceis torna as coisas para suas crianças, que pedem, por natureza, a segurança do ocultamento para que não haja distúrbios em seu amadurecimento" (Arendt, p. 238)

A família é desresponsabilizada, perde-se a ocasião de implicá-la no sintoma da criança. Do ponto de vista institucional, há uma sobreposição do discurso do especialista ao do sujeito, o discurso médico-higienista passa a operar e a instituição assume a posição de toda. A fantasia de que o tempo de permanência na instituição poderia apagar as marcas parentais é reforçada, quando, na verdade, ao tornar público o que seria do âmbito privado, é oferecida unicamente à criança a condição de repetir, e não de produzir respostas singulares às marcas parentais, operantes, apesar das horas passadas na instituição.

Agora, trata-se de uma prescrição, e, como tal, deve ser executada. Mas a partir dessa leitura abre-se a possibilidade de introduzir um manejo que, numa mesma tacada, esvazia a demanda por este tipo de prescrição e implica os pais. Manejo que passa por escutá-los no que têm a dizer sobre o sintoma da criança, sobre o tempo que passa na instituição e informá-los sobre os efeitos nefastos destas condutas no âmbito coletivo. A família volta ao especialista de posse destas informações, reposicionada diante do sintoma da criança e com a possibilidade de rediscutir as medidas a serem implementadas. Esta conduta tem se mostrado eficiente, esvaziando a demanda por este tipo de prescrição, situando para a criança e seus pais o que é do âmbito privado e o que pode ser tratado no coletivo.

O psicanalista, ao se deparar com os efeitos das referidas prescrições no cotidiano institucional e no quadro apresentado pela criança, vê-se apostando em intervenções que aparentemente representam uma inversão em seu ato. Inversão porque as intervenções do psicanalista costumam culminar na introdução de uma diferença, associando diferença à singularidade. No entanto, no entrecruzamento entre a ordem institucional, o sujeito e o discurso do especialista, o posicionamento pelo sujeito implica em diluir aquilo que pode singularizar de forma indesejável uma criança na instituição. A inversão é aparente, pois, novamente, é ao sujeito que se visa. Um sujeito que não se veja transparente no espaço público e que encontre neste último uma outra cena, na qual possa desdobrar e experimentar modos de ser para além do familiar.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

ARENDT, H. (2003). A crise na educação. In: Entre o passado e o futuro. Editora Perspectiva.São Paulo, S.P.

KEHL, M.R. (2002) Sobre ética e psicanálise. Editora Companhia das Letras. São Paulo, S.P.

NAZAR, M.T.P. (1999). Infância e modernidade. In: Trata-se uma criança. Congresso Internacional de psicanálise e suas conexões. Escola lacaniana de psicanálise. Editora Companhia de Freud. Rio de Janeiro, R.J.

 

 

1 Definição extraída do Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa. Editora Objetiva. Rio de Janeiro. 2001.
2 Ver a esse respeito o excelente artigo da psicanalista Ana Elizabeth Cavalcanti intitulado A sabedoria perdida dos pais e as certezas do especialista, apresentado nos Estados Gerais da Psicanálise em 2005.
3 Teperman, D.W. (2006). Creche, psicanálise e prevenção. In: A ética na atenção ao bebê – psicanálise, saúde e educação. Melgaço, R. G. (org.) Casa do Psicólogo. São Paulo. S.P.
4 É importante esclarecer que nos referimos a dietas do tipo "comportamental" dado que as "dietas clínicas" (como alergia ou intolerância a algum alimento) devem ser rigorosamente seguidas dentro da instituição, mesmo que se atente para os determinantes psíquicos aí implicados.