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On-line ISBN 978-85-60944-08-8

An 6 Col. LEPSI IP/FE-USP 2006

 

A ilusão de superação do mundo adulto: psicanálise, educação e contemporaneidade

 

 

Douglas Emiliano Batista

demilian@uol.com.br

 

 


RESUMO

Este artigo aborda o declínio da autoridade do passado que se consumou na aurora da Era Moderna, e suas conseqüências com respeito ao que, tempos depois, a psicanálise viria a conceitualizar como função paterna. Ao contrário de reconhecer o assim chamado declínio da função paterna, o presente estudo procura trazer a lume argumentos que apontam a reinscrição da metáfora paterna nos modos de subjetivação inaugurados pela modernidade, relacionando, dessa forma, a hegemônica psicologização dos discursos pedagógicos atuais (e a conseqüente ilusão de superação do mundo adulto no âmbito educacional) à emergência dos valores pós-modernos durante a primeira metade do século XX.

Palavras-chave: psicanálise e educação; modernidade e pós-modernidade; psicologização da educação


 

 

"Um menino nasceu: o mundo tornou a começar!".
Guimarães Rosa

""O Século da Criança", como podemos
lembrar, iria emancipar a criança e liberá-la
dos padrões originários de um mundo adulto"

Hannah Arendt

 

Introdução

Quando se reflete – a partir das relações entre psicanálise e educação – sobre os discursos educacionais que vingam em nossos dias, não é improvável que se perfile no horizonte a suspeita de que o nosso tempo tem produzido uma dissociação, sem precedentes na História, entre o nascimento das crianças e a reprodução simbólica do mundo.

Hoje, em particular no âmbito pedagógico, mas de modo algum restrito apenas a ele, tudo se passa como se não mais desejássemos transmitir algo àqueles que, por força tão-somente de uma contingência própria à vida, chegaram ao mundo algum tempo depois de nós. A transmissão, ao menos em nossos dias, é suspeita de ter se configurado no instrumento princeps da violência real com que os adultos acometeriam os mais novos, uma vez que a "atividade" dita imanente ou natural à criança – sua assim chamada "condição de sujeito" – não seria levada a sério na transmissão de conhecimentos e valores de uma geração à outra, e em especial na transmissão que se consuma na vida escolar.

E talvez seja mesmo, como diz Arendt, em virtude do profundo desgosto e pelo desmedido pesar em face do atual estado de coisas (isto é, em face do nosso mundo) que os adultos passaram a crer, de forma hegemônica, que a educação diz respeito a tão-somente fazer brotar as interioridades subjetivas dadas de antemão nos mais novos, isto é, a atualizar suas potencialidades chamadas "naturais", suas habilidades "inatas" e suas competências individuais, ao contrário de educá-los com vistas a introduzi-los ao mundo humano em comum, e a fim de que possam – à medida em que vão se apropriando desse legado publicamente compartilhado – eventualmente transformá-lo em algo novo.

O que, pois, se processou ao longo do tempo com a idéia de uma transmissão – e de tal modo que os adultos procuram hoje se eximir de suas responsabilidades quer seja com o mundo em comum, quer seja com os recém-chegados a esse mundo –, a ponto de já não podermos afirmar, com ao menos alguma segurança, que o nosso mundo torna a começar sempre que nasce uma criança?

 

Modernidade e autoridade do passado

Foram os renascentistas, e em particular os que se dedicaram às artes, que introduziram a experimentação racional enquanto princípio elementar da ciência empírica moderna. Ao menos é assim que Max Weber (2002: 33-4) compreende as experimentações efetuadas pelos músicos do século XVI com o cravo, e também as pesquisas experimentais levadas a cabo por Leonardo da Vinci e seus coetâneos com vistas a renovar a pintura, a arquitetura, a escultura e outras artes. Tomada como "meio seguro de controlar a experiência" e, portanto, de conduzir à verdadeira natureza (e por conseqüência à arte verdadeira), o conceito de experimentação racional viria posteriormente a migrar do domínio das artes para o das ciências naturais, sobretudo nas mãos de Galileu, e para o campo da teoria filosófica, nas mãos de Bacon.

Contudo, o ideal que permeava tanto as experimentações na música e as pesquisas racionais nas artes quanto as experiências de cunho propriamente empírico nas ciências naturais não era outro, nessa aurora dos tempos modernos, senão o de perscrutar os rastros deixados por Deus quando da criação do mundo. Naturalmente, isto colocava em jogo a tradição medieval e os comentadores de Aristóteles, uma vez que Deus – cujos "caminhos não são os nossos, nem seus pensamentos os nossos pensamentos" (WEBER, 2002: 35) –somente poderia ser apreendido pelas ciências naturais através do deciframento do mundo físico, posto que foi sobre esse mundo que, em um passado imemorial, se imprimiram como rastros na areia as pegadas divinas.

Também Freud concebe Leonardo da Vinci como o "primeiro cientista natural moderno" (1910: 128), ou seja, como o primeiro investigador, após os gregos, imbuído da coragem de perscrutar a natureza com base tão-somente na observação experimental e nos juízos daí decorrentes, e não mais com os olhos postos na autoridade da tradição. Uma declaração de Leonardo atestaria, em especial, o teor de independência e autonomia de suas pesquisas em face da autoridade do passado:

"Aquele que apela para a autoridade quando existe diferença de opinião, está fazendo mais uso da memória do que da razão" (cf. FREUD, id., ib.).

Eis que a autoridade da Igreja e não menos a autoridade assentada na imitação aos antigos foram de um só golpe acometidas por Leonardo que, ao empenhar seu esforço investigativo em sacar da natureza os mais recônditos segredos desta última, prenunciou "uma concepção do mundo que de muito ultrapassou sua época" (FREUD, 1910: 138). Talvez tenha sido mesmo em vista de uma tal relação com a autoridade que resultaram alguns dos mais fascinantes aspectos da vida e do gênio de Leonardo, além de seu pioneirismo em quase todos os ramos das ciências naturais.

Entretanto, o homem que pela primeira vez sacudira a autoridade da tradição – tal como se tratasse de um jugo – era, por outro lado, o filho ilegítimo de um tabelião com uma camponesa e, provavelmente, ficara privado durante a primeira infância da companhia de seu pai, como sugerem alguns parcos registros históricos além da consabida recordação infantil de Leonardo da Vinci. Reza esta última que uma ave de rapina, o milhafre, teria pousado no berço do pequeno Leonardo e introduzido a cauda em sua boca, fustigando-a com ela. Em que pese que um erro de tradução tenha levado Freud a supor que um abutre, e não um milhafre, seria o protagonista dessa recordação encobridora, o núcleo da interpretação freudiana – tanto no tocante à fantasia referente ao berço com respeito à amamentação (tornada passiva) quanto no que concerne à elaboração da premissa universal fálica pelo pequeno Leonardo – ficou intocado1.

Não se sabe exatamente quando Leonardo foi recebido na casa de sua família paterna e tampouco se esse fato guardou alguma relação com a esterilidade de sua madrasta, embora se saiba que ocorrera antes que Leonardo inteirasse os cinco anos de idade. Para Freud, entretanto, é admissível, ainda que não seja conclusivo, supor que a inscrição inconsciente de Leonardo com respeito ao pai não se consumou a tempo de estender uma influência considerável sobre sua identidade sexual. A essa altura, a identificação do pequeno Leonardo à mãe já se cristalizara, a exemplo do que a recordação infantil acerca do milhafre parece também aludir2. Entretanto, a influência paterna se faria perceber em outros âmbitos da vida do renascentista, e sobretudo talvez quanto ao seu desejo de copiar e superar o "nobre cavalheiro" que seu pai fora aos olhos de sua mãe, uma humilde camponesa pela qual este último por fim se desinteressara assim como pelo próprio Leonardo em seus primeiros dias.

A evidente relação transferencial do renascentista, tempos mais tarde, em face de seu patrono Ludovico Sforza – o duque de Milão –, parece também ratificar a hipótese de que, afinal, era a representação inconsciente de Leonardo com respeito ao pai o que levava o artista a reiteradamente se desinteressar, após certo tempo, pelas suas próprias obras de arte (afinal, o artista é o "pai" de suas criações). É que Leonardo registrou em seu diário uma reflexão acerca de seu patrono (após o ocaso da corte de Ludovico em Milão) e na qual declarou que este último nunca terminou as obras que principiara. Eis que a representação fantasmática de Leonardo acerca de seu pai (manifestada na transferência ao duque) viria a refrear, em dado momento, seus impulsos artísticos a favor dos impulsos de pesquisador, de modo que Leonardo – repetindo nisso o pai fantasmático – acabou cumprindo, ele próprio, o destino de deixar inacabada grande parte de suas obras.

A inscrição inconsciente com respeito ao pai provavelmente constrangeu Leonardo em sua vida como artista, e isso não menos do que repercutiu decisivamente no âmbito de suas pesquisas e experimentações científicas. Segundo Freud, a renúncia à autoridade da tradição da igreja e da antiguidade – em face da pretensão de Leonardo em apreender a verdade tão-somente de suas pesquisas sobre a natureza – não deixou de estar pautada pela "constelação parental" que se desenhou na infância do renascentista. Em uma palavra: em seu imaginário, a tradição remontava à autoridade do pai, enquanto a verdade da natureza remontava a sua mãe que o embalou e amamentou durante a primeira infância3.

Paradoxalmente, o empreendimento científico e experimental a que Leonardo dera início estaria destinado, como diz Weber, a "extirpar até as raízes" (2002: 35) não apenas a crença na existência de Deus, mas também todo e qualquer vestígio de sentido ou de significação no mundo humano. Por sinal, Leonardo esteve mesmo, consoante Freud, a um passo de superar o "ponto de vista religioso sobre o Universo" (1910: 141) quando afirmou que o sol não se move, o que poderia ter-lhe ensejado reconhecer que é sobretudo o "acaso que determina nosso destino" (FREUD, id., ib).

É, pois, tendo como pano de fundo esse processo de secularização que foi deflagrado na aurora mesma da modernidade que Joel Birman abordou o tema do contemporâneo mal-estar na civilização ou, em outras palavras, o tema de nossa moderna condição de desamparo: uma vez que "Deus está morto" e que o seu "passamento" arrastou consigo a pedra angular da função do pater, os nossos sintomas psíquicos não expressam outra coisa senão a nostalgia do pai. O embotamento da função paterna seria, portanto, decorrência direta da falência desse "grande Outro divino" (BIRMAN, 2000: 39) posto como fundamento da interpretação do mundo pré-moderno, e sobre o qual se estribava o ordenamento sócio-jurídico da família patriarcal.

Para J. J. Rassial (2000), o que cedeu foi a unidade da função paterna, posta a perder juntamente com a unificação monoteísta que a religião promovia muito bem no mundo pré-moderno. A função paterna outrora "intacta" consistia na produção – amparada nesse grande Outro divino – do pai enquanto "arqué" (princípio), isto é, enquanto causa primeira e ao mesmo tempo lei, ou, em outras palavras, enquanto genitor e mestre. O pleno ocaso da função do pater não poderia nos conduzir senão à mais escura das noites em face do registro simbólico, com a conseqüente substituição dos imperativos edípicos pelos imperativos fraternos, os quais obliterariam todas e quaisquer diferenças estruturais no laço social. A decadência irremediável do pai simbólico – o qual "hierarquiza o conjunto dos significantes" (2000: 10) ao mesmo tempo em que domestica a insanidade infrene do pai imaginário – teria posto então em risco o acesso parcial do sujeito ao saber. Não por outra razão, a escola moderna e republicana esteve desde sempre ameaçada, e prenunciando um fracasso inelutável já que o professor leigo – e não mais o "mestre" que institui – se encontraria de antemão impedido de interditar "o gozo do Outro, o gozo mãe-filho" (id., ib.), e assim encetar um investimento no saber por conta de seu aluno.

Em resumo: organizada em torno do discurso religioso, a autoridade do passado própria ao mundo pré-moderno sustentava-se na enunciação de um mestre. Entretanto, a laicização promovida pelo moderno discurso científico deslocou tal autoridade para o saber anônimo de um conjunto de enunciados, produzindo com isso uma nova forma de laço social (cf. KOLTAI, 2000). Em face desse novo laço secularizado, o sujeito moderno encontra-se então sob o imperativo de abandonar a tradição mesma que o funda (cf. FLEIG, 2000), à maneira emblemática de um self made man do mercado capitalista. E mais: na modernidade tardia (a dita pós-modernidade), cada sujeito age finalmente tal como se fosse "o último dos homens", isto é, como se nada mais tivesse a transmitir à geração futura: depois de mim, o dilúvio.

 

O declínio do ideal moderno de educação

A reflexão acerca do desgaste da metáfora paterna na modernidade ou o dito ocaso de sua função simbólica acaba por equipará-la, sem mais, ao declínio da imago social do pai. Deduz-se daí, contudo inadvertidamente, que é à modernidade que se deveria então responsabilizar pelo dito embotamento da função paterna – tal como se esta última fosse uma lâmina cujo gume ficou cego pelo uso –, e conseqüentemente pelo curto-circuito simbólico a que teria ficado exposto o complexo de édipo nos tempos modernos (cf. LAJONQUIÈRE, 2000). Em outras palavras, seria como dizer que o declínio sócio-jurídico do patriarcado – que a modernidade veio a consagrar – teria irremediavelmente arrastado consigo a função paterna e, por conseqüência, inviabilizado os modos de subjetivação inaugurados pela modernidade.

Se é importante não se desconsiderar, por um lado, que a prestância social da imago do pai não deixa de fazer ressonância sobre o complexo de castração (por mais que este último se configure enquanto fantasia originária), por outro lado a função paterna não se esgota na atribuição fálica por parte da criança ao pai (atribuição essa responsável por barrar o vínculo incestuoso entre mãe e filho). É que, como explica Lajonquière (2000), ao pai cumpre também deslindar sua própria castração simbólica aos olhos do filho, de modo que a onipotência do pai imaginário possa ceder em face da hierarquização simbólica do conjunto dos significantes. O declínio sócio-jurídico da família patriarcal, pode-se então dizer, pôs à luz do dia a castração imaginária paterna, antes "blindada" pela onipotência do patriarca. Talvez não seja para menos, em vista disso, que as crianças de hoje tenham de investir, a exemplo do que se passou com o pequeno Hans, em formações psíquicas mais dispendiosas com respeito ao pai imaginário.

O declínio do patriarcado, com efeito, acabou por resguardar a filiação simbólica ante os caprichos patriarcais, e isso sobretudo pela via da obrigatoriedade da instrução pública e escolar das crianças. É que a escola republicana educa em nome do soberano, entendido modernamente como o povo (sendo essa, por sinal, a essência mesma do moderno espírito das leis). Desse modo, as crianças são educadas no sistema escolar em nome dos pais, que por sua vez as entregam aos cuidados da escola em nome de uma instância que os excede, o que por fim acaba demarcando o assujeitamento parental à Lei simbólica. Claro que nenhum código jurídico positivo chega a ser a Lei. Entretanto, se o espírito das leis for admitido como a moderna modalização sócio-histórica da Lei (LAJONQUIÈRE, 2000: 59), então os impasses contemporâneos com respeito à transmissão simbólica aparecerão como o efeito da obliteração do "projeto moderno de vida na polis", mais do que como o declínio da imago social do pai ou mesmo de uma inelutável decadência simbólica do grande Outro, supostamente encetada pelos valores arvorados desde a modernidade.

Admitindo-se então que a função paterna – uma vez reinventada – continua a operar em nossos dias, já não se faz necessário – mesmo em vista da "morte de Deus" e da nostalgia do pai – pensar na horizontalização fraternal do laço social moderno como signo da decadência do laço social tradicional, pré-moderno, marcado pela verticalização patriarcal (BIRMAM, 2000). No mais, isso também nos dispensa de ventilar a idéia da substituição da função paterna por uma espécie de função fraterna, além de nos eximir de por em dúvida a fraternidade secularizada dos tempos modernos e sua capacidade de fazer girar a roda de moinho do mal-estar na cultura (LAJONQUIÈRE, 2000).

É que não foi senão na polis moderna que a iniciação à vida pública dos pequenos passou a transcorrer na instituição escolar. A escola republicana, para além de catalisar a dissolução do complexo de édipo da criança, expandia seu horizonte privado e familiar submetendo-a ao espírito das leis, na medida em que veiculava o ideal simbólico de não se gozar do Outro. Entretanto, a ilusão pós-moderna da superação dos ideais humanistas de educação – correlata no âmbito político ao desinvestimento da esfera pública – deu início a uma corrosão crescente desse dispositivo simbólico próprio à vida escolar. Os ideais coletivos de bem comum e os valores laicos de convivência na nova polis passaram, desde então, a ser compreendidos no âmbito pedagógico como mera retórica moralista, ou como uma sobrecarga inútil em vista do desenvolvimento de habilidades e competências do alunado. Em uma palavra, o ideal de "formação das almas" foi substituído por finalidades mais "pragmáticas", supostamente estribadas na autoridade científica. Em particular, as reformas psi empreendidas no campo pedagógico nas primeiras décadas do século XX promoveram uma "privatização" ou uma familiarização da cena escolar, em detrimento do público e moderno espírito das leis. Eis que a escola então voltou-se para a criança, adaptou-se a sua clientela (sic), sob o argumento de livrar esta última da chamada arbitrariedade do mundo adulto.

 

A psicologização da educação contemporânea

Por certo, não é sem conseqüências para o laço social moderno que o discurso suposto ao mestre passe a ser o científico, e não religioso (RASSIAL, 2000: 9), embora isso não deva implicar que a contemporânea anomia simbólica derive necessariamente do ideário inspirado pela Revolução Francesa. Ao contrário, é na "modernidade tardia" que o tecnicismo grassa enquanto ideologia de desqualificação do debate político, e em nome de uma adesão irracional a um pretenso futuro antecipado tecnocraticamente. Ao oposto disso, para os Iluministas, o "tempo presente" era aquele no qual os homens deliberavam pela via política – e a partir do que o passado tinha preparado – possíveis rumos futuros para o seu mundo comum (cf. SILVA, 2001). Entretanto, foi no âmbito educacional – e, por desgraça, possivelmente mais do que em qualquer outro – que "a civilização moderna voltada para o futuro se deixou converter numa rede pós-moderna de organizações empenhadas na adaptação ao futuro"4. Não é para menos que o ideal educacional hegemônico em nosso tempo seja então o de preparar os mais novos para uma suposta existência em um mundo do amanhã. E uma tal colonização do âmbito educacional pela tecnocracia consumou-se paradigmaticamente na psicologização dos discursos escolares. Em particular, a psicologia do desenvolvimento continua inspirando a contemporânea crença pedagógica de que a educação consistiria no aperfeiçoamento das interioridades subjetivas infantis, e não na introdução paulatina dos "recém-chegados por nascimento" no mundo adulto. A dita cientificidade dos métodos pedagógicos ensejaria, assim, promover uma prática educacional de cunho psicoprofilático, isto é, propiciaria fazer "tábula rasa" na educação dos pequenos, livrando-os supostamente das neuroses parentais ou dos arcaísmos da História, o que asseguraria por fim a espontaneidade do desenvolvimento psicomaturacional das crianças rumo ao "Futuro".

E não resta dúvida de que o psicologismo pedagógico arvora-se, para a consumação desses fins, do chamado respeito à condição de sujeito da criança, isto é, de sua dita "atividade natural" ou "espontaneidade própria". O pressuposto aqui é de que o aprendizado só é ativo (e portanto legítimo) quando o aprendiz aprende fazendo, isto é, quando aprende algo fazendo-o por si mesmo. Obviamente, o que é posto em jogo com isso é a transmissão de um legado simbólico por parte dos adultos aos mais novos e a suposta passividade a que estes últimos estariam expostos no contexto da assim chamada escola tradicional. Na nova educação, ao contrário dos alunos se constituírem em depositários ou mesmo em féretros de conhecimentos prescritos, oriundos do passado, eles produziriam – agora com as próprias mãos – o seu conhecimento. Nesse sentido, a figura do professor não mais se confundiria com a de um "transmissor", na medida em que a ele se reservaria apenas demonstrar "constantemente como o saber é produzido" (ARENDT, 1972: 232). Trata-se, no limite, de substituir o aprendizado pelo fazer.

Sob esse prisma, o ideal humanista de formação de professores estaria então essencialmente implicado ao dito paradigma escolar tradicional de transmissão de conhecimentos "petrificados", enquanto que o domínio tanto mais light de técnicas gerais de ensino seria mais útil aos professores interessados em levar os alunos a aprender de modo supostamente livre e independente.

Entretanto, sob a capa do respeito à "naturalidade" e "autenticidade" das manifestações infantis, o que de fato se consuma é a exclusão das crianças em relação ao mundo adulto e a retenção das mesmas na suposta autonomia de um "mundo" infantil. O problema, porém, é que quando se admite a existência de um "mundo" da criança (no mesmo sentido de um mundo publicamente compartilhado pelo adulto) ou, em outras palavras, uma sociedade autônoma entre as crianças, é preciso então admitir que elas mesmas a governem, ou que, quando muito, o adulto apenas as auxilie a governá-la. Tal pressuposto exige que o mais velho renuncie a sua autoridade sobre as crianças para dividi-la com elas, tal como se as crianças já fossem responsáveis pelo mundo a que foram trazidas ou já fossem cidadãos da polis, ao contrário de estarem sendo educadas para tanto. O apelo é de que os recém-chegados por nascimento, na medida do possível, se emancipem o quanto antes da autoridade dos mais velhos bem como do mundo adulto.

Contemporaneamente, uma das mais perniciosas repercussões da "aplicação" de teorias engendradas no campo da psicologia do desenvolvimento (onde, por sinal, elas originalmente gozam de um estatuto científico legítimo) sobre o campo pedagógico talvez seja o de induzir professores, profissionais de educação e as próprias escolas a conceber a instituição educacional tal como se ela fosse essencialmente, e acima de tudo, uma instituição de caráter vocacional. Se isso é especialmente verossímil no caso do sistema americano de ensino, não o é menos em nosso próprio sistema escolar, sobretudo ao se ter em conta a larga difusão em nosso tempo de teorias da competência ou de desenvolvimento de habilidades, e que tanto embaraçam a compreensão daquele elementar e moderno princípio público segundo o qual a escola deveria propiciar às crianças primordialmente a aquisição dos "pré-requisitos normais de um currículo padrão" (ARENDT, 1972: 230), ou seja, assegurar a "relativa equidade na distribuição dos bens culturais" (CARVALHO, 2004: 333 ), o que é condição sine qua non dos recém-chegados por nascimento virem a ser sujeitos do inestimável direito educacional de partilhar do patrimônio simbólico humano, e de tal modo que, ao nascer de uma criança, se possa ao mesmo tempo dizer que o mundo em comum torna a recomeçar.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

ARENDT, H. (1972). A crise na educação. In: Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, p. 221-247.

BIRMAN, J. (2000). A modernidade e a função paterna. In: Anais do II Colóquio do LEPSI: a psicanálise, a educação e os impasses da subjetivação no mundo moderno. São Paulo: LEPSI/IPUSP.

CARVALHO, J. S. F. (2004). "Democratização do ensino" e a polêmica conceitual. In: Revista Educação e pesquisa, v. 30, nr. 2, páginas 327 a 334.

FLEIG, M. (2000). A tese do declínio da imago social do pai e o deslocamento da autoridade. In: Anais do II Colóquio do LEPSI.

FREUD, S. (1910). Leonardo da Vinci e uma lembrança de sua infância. Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud – vol. XI. Rio de Janeiro: Imago Editora. 1996.

JERUSALINSKY, A. (2000). A função paterna e o mundo moderno. In: Anais do II Colóquio do LEPSI.

KOLTAI, C. (2000). Impasses subjetivos e contemporaneidade: primeiras reflexões. In: Anais do II Colóquio do LEPSI.

LAJONQUIÈRE, L. (2000). Psicanálise, modernidade e fraternidade. In: Kehl (orgª.). Função Fraterna. Rio de Janeiro: Relume Dumará.

RASSIAL, J. J. (2000). Declínio do pai ou falha do professor. In: Anais do II Colóquio Lepsi.

SILVA, F.L. (2001). O mundo vazio:sobre a ausência da política no contexto contemporâneo. In: Silva e Marrach (orgª.). Maurício Tragtenberg. Uma vida para as ciências humanas. São Paulo: Editora Unesp.

WEBER, M. (2002). Ciência e Política. Duas vocações. São Paulo: Cultrix.

 

 

1 É verdade que a ""visita"" do milhafre (tenha sido um sonho, fantasia, ou um acontecimento parcialmente verídico e posteriormente narrado pela mãe à criança) talvez não permita inferir – ao contrário da visita de um abutre – a ausência paterna na primeira infância de Leonardo. Porém, não deixa de aludir à magnitude da imagem da mãe nas formações fantasmáticas do artista florentino, além de ensejar, quiçá, a reflexão acerca da ambivalência expressa nessa recordação infantil, posto que o milhafre é uma ave conhecida também pelos eventuais maus tratos a que expõe os seus próprios filhotes no ninho.
2 Não se pode deixar de fazer menção também, quanto a esse tema, aos primeiros ensaios artísticos do jovem Leonardo: esculturas, primeiramente em barro e depois em gesso, de cabeças de mulheres sorridentes e também de cabeças de belas crianças. Eis aí os objetos ""sublimados"" de sua identificação sexual infantil.
3 Além de sua madrasta – consabidamente infértil –, e quiçá a sua avó Lúcia. O quadro "Sant" Ana com dois outros" de Leonardo poderia ser compreendido como referência inconsciente a essa "múltipla" maternidade.
4 FREITAG, M., apud Silva (2001: 246).