6A ilusão de superação do mundo adulto: psicanálise, educação e contemporaneidadeA escrita e a psicose da criança author indexsubject indexsearch form
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On-line ISBN 978-85-60944-08-8

An 6 Col. LEPSI IP/FE-USP 2006

 

Estilo: a psicanálise na formação de educadores1

 

 

Elisabete Aparecida Monteiro

elisabetemonteiro@terra.com.br

 

 


RESUMO

O texto ora apresentado estabelece uma análise crítica do discurso pedagógico como aquele que mantém a instituição educativa suspensa na ilusão, a qual se manifesta na certeza da existência de um domínio que garanta o "bem fazer". A pedagogia atual demanda por teorias psicológicas, produz modelos e confere grande importância aos recursos tecnológicos. Perseguindo uma relação de causalidade entre os meios pedagógicos e a previsão dos resultados, a pedagogia mantém-se resistente à noção de que o inconsciente impõe-se às intenções conscientes do educador. Considerando o discurso pedagógico como a instância que tem arbitrado sobre os vários rumos da educação atual e, conseqüentemente, contribuído para a sua crise, o presente texto enfatiza a especificidade e a fertilidade da transmissão da psicanálise na formação de educadores. Uma vez atravessados pelo saber psicanalítico, os educadores podem conceber a noção de estilo, de singularidade, na relação com o conhecimento. Condição para o resgate do sentido, atualmente perdido, da educação.

Palavras-chave: ensino de psicanálise; educação; estilo.


 

 

Uma rápida passagem pelos debates atuais no campo da educação é suficiente para se perceber um conjunto de novas proposições em torno das práticas educativas. Estas, supostamente, mais controláveis, mais microestruturadas, mais capazes de autocorreção, estão cada vez mais semelhantes ou próximas do "brilho e da glória" das experiências científicas, permitindo, desta forma, a crença numa pretensa programação didática mais eficaz e compreensiva.

Tomando-se como objetivo final da educação a humanização plena dos sujeitos, é atribuída à pedagogia a responsabilidade de formular a teoria e a prática que conduzirão a educação ao alcance de seu objetivo, no entanto, observando o seguinte imperativo: "o fazer educacional há que ser científico" (Franco in Pimenta, 2002a, p. 124, grifo nosso).

António Nóvoa (in Cambi, 1999) afirma que a História da Educação, como disciplina amplamente teórica, perdeu grande parte de seu sentido a partir do momento em que a pedagogia passou a se definir numa perspectiva "aplicada", com base nos critérios "científicos" da psicologia experimental e da sociologia positivista.

A pedagogia, tomada como ciência da Educação, observa, analisa, avalia, valida e "autoriza" para a Educação (ou não) os diversos saberes, com vistas a garantir a cientificidade das pretensas contribuições à prática educativa, em boa parte das sociedades ocidentais: "através do filtro científico-técnico [a pedagogia] vive agora a sua estreita relação com a prática. E é com esse modelo de pedagogia que a pesquisa científica atual deve trabalhar, assumindo-o como guia" (Cambi, 1999, p. 599).

Na perspectiva de Cambi, o pedagogo é quem melhor pode "colher e julgar o background de teorias, práxis, posições da educação, sua espessura temporal (social, teórica, científica e prática) e operar assim um controle mais autêntico e mais capilar do próprio saber e agir" (1999, p. 19). Sendo assim, para o autor, os problemas educativos devem ser pensados a partir dos saberes empíricos que compõem as ciências da educação.

Guiada pelo imperativo científico, a pedagogia atual demanda por teorias psicológicas, produz modelos e confere grande importância aos recursos tecnológicos. Dentre outros, no conjunto de tais saberes, encontram-se:

. as ciências cognitivas, que alimentam uma concepção pedagógica dedicada a uma visão científica dos problemas da aprendizagem e da instrução, procurando estabelecer, em última instância, uma instrução científica;

. as inovações tecnológicas e comunicacionais, a partir das quais decorre uma transformação na concepção de conhecimento (muitas vezes confundido com o conceito de informação, o conhecimento é considerado a característica da sociedade atual, a chamada "Sociedade do Conhecimento");

. a globalização da economia, que dita modelos ao mercado de trabalho e a conseqüente necessidade de se desenvolver, nos alunos, a capacidade de pensar (aprender a aprender, ou seja, desenvolver as capacidades de aprendizagem, a agilidade mental e a credibilidade na própria capacidade);

. a qualidade do educador, para que se possa fazer frente à prática educativa idealizada, o professor reflexivo.

Sobre esse último, diz-se que a imagem do saber pedagógico mudou, configurando-se como saber hipercomplexo: "a ser submetido a uma coordenação reflexiva e capaz de desenvolver também uma radical auto-reflexão" (Libânio, in Pimenta, 2002b, p. 598). A potencialidade reflexiva do professor define-se pela capacidade deste de pensar sobre os próprios pensamentos e atos, sobre o contexto social, sobre as formas de intervenção (estratégias, intenções e representações).

Diante do exposto até aqui, uma síntese do propósito da educação, compreendido a partir do discurso pedagógico atual, pode ser configurada em duas idéias principais: os alunos precisam aprender a aprender e os professores precisam aprender a refletir.

Apesar da atualidade dos modelos pedagógicos, cada proposta de mudança no campo da educação traz, quase sempre, uma raiz comum: o combate ao modelo dito tradicional de educação, identificado como o exercício do autoritarismo do professor sobre o aluno: "o princípio de que o professor tudo sabia e o aluno nada sabia"; "o aluno passivo"; "o desinteresse e desvalorização dos conhecimentos trazidos pelo aluno" etc. Hoje, para que o autoritarismo seja evitado na educação de crianças e jovens, pensa-se ser imperioso apresentar razões e submetê-las a um juízo crítico baseado, num conhecimento científico, fundamentalmente "construtivista". Nesse ínterim, percebe-se, claramente, que o novo papel atribuído ao professor tem provocado prejuízos à sua legítima autoridade.

No lugar da rechaçada educação tradicional, vê-se um discurso pedagógico que, apoiando-se na lógica do discurso universitário, pretende-se original, racional e científico, no entanto, notoriamente hesitante e incerto.

Deduz-se que no dito ensino tradicional havia uma precariedade de conhecimentos científicos aplicados à prática educativa, causando prejuízos à aprendizagem. Hoje, com as mudanças que culminaram na pedagogia científica, a prática educativa se pretende mais eficaz. Por outro lado, parece que a educação nunca esteve tão longe do alcance de seu objetivo:

Trata-se de um paradoxo chocante: nunca, sem dúvida, se inventaram tantos métodos, mas nunca se constatou tanto a dificuldade de conseguir a instrução dos alunos. A riqueza da investigação parece proporcional à precariedade dos resultados. (Mougniotte in Avanzini, 1999, p. 123)

Tem-se a ilusão de que, amparados pelas ciências, os procedimentos didático-pedagógicos tragam garantias dos "efeitos" que se busca no aluno. A "pedagogia científica" mostra-se contrária à idéia de que o ensino possa ser uma invenção contínua, aleatória e arriscada, e que, por isso, como descreve Mougniotte (in Avanzini, 1999), só é possível tatear, tentar dispositivos desigualmente pertinentes e, ao final, avaliá-los de forma mais ou menos rigorosa. E, como invenção constante, a educação sempre será "problemática" (ou impossível, como na concepção psicanalítica) e a eficácia de um método nunca será garantida, tampouco universalmente bem-sucedido.

O que Bacha (2002) coloca sob a forma de questionamento, talvez, aqui, se possa exprimir como constatação: ao tornar-se técnica de adaptar com pretensões à ciência, tendo o mercado como única ambição, a concepção de homem como obra a ser criada foi soterrada e a educação perdeu-se como arte de formar.

A maneira de a pedagogia compreender a educação, como aplicação dos princípios científicos para a garantia da aprendizagem, é compreendida neste trabalho como um racionalismo-cientificista, resistente à idéia de não-saber inerente à relação do sujeito com o desejo.

Nesse contexto, a psicanálise constitui-se num corpo teórico que possibilita à educação uma "outra forma de pensar", desaprisionando-a da busca infrutífera pelo conhecimento absoluto e pelo controle da ação educativa. Portanto, para além da divergência entre os discursos, o ensino da psicanálise aos educadores não se limita a uma contribuição, mas apresenta-se como uma possibilidade de que a educação seja resgatada de um imobilismo ou de "malabarismos" estéreis.

Portador de um saber coerente e estável, no discurso pedagógico atual, o professor sabe o que diz. Portanto, o domínio da transmissão supõe que os sujeitos que participam do ato da transmissão estão em estado de controle (não divididos), que o saber transmitido guarda sua identidade com a verdade (da ciência) e, finalmente, que aquilo que se pronuncia atinge igualmente cada um do público, sem produzir dúvidas, furos, apenas certezas e garantias. Em oposição, a psicanálise compreende a transmissão como mais próxima de um mal-entendido do que do bem-entendido que o discurso atual aspira.

Assim sendo, talvez se possa dizer que a psicanálise é o terceiro entre a educação e os ideais "fundamentalistas" ou "totalitários", fazendo emergir indagações e, a partir daí, promovendo uma visão mais nítida sobre o objeto da educação.

Este texto tenciona afirmar que a especificidade e a legitimidade do ensino da psicanálise a educadores repousam nas condições que esta vem oferecer para o resgate do sentido atualmente perdido da educação.

O ensino da psicanálise na universidade (e sua legitimidade) remete, com certa freqüência, à polêmica em torno de seu estatuto epistemológico. Dessa polêmica, diversas leituras são extraídas: desde opiniões que afastam a psicanálise das discussões acerca dos critérios científicos; passando por esforços em buscar novos critérios que a incluam no campo da ciência; até, produções que colocam a psicanálise na ante-sala da ciência, tendo o cientista como sujeito.

Portanto, a psicanálise não poderia servir ao propósito de, unindo-se a um conjunto de supostas ciências (como a psicologia experimental e a sociologia positivista), contribuir para a perspectiva "aplicada" da pedagogia atual, baseada em critérios "científicos".

A reflexão proposta pela psicanálise supõe que o professor faça uma resignificação de sua atuação junto aos alunos. Isto significa redimensionar as metas idealizadas que tentam inspirar o ato educativo na atualidade e que visam uma adequação científica animada por teorias psicológicas e aportes tecnológicos.

Assim, ao invés de buscar fundamentação ou autorização num discurso que lhe é externo, meramente auxiliar e que, em última instância, impede-lhe a visão de si, o professor pode aproximar-se dos fundamentos e disposições que caracterizam a sua singularidade como educador, seu estilo.

Da história da psicanálise, é possível extrair um panorama plural de estilos de mestria, partindo da delimitação do estilo de Freud. Seu estilo traz marcas do encontro com a mestria de Charcot e que, em geral, possui uma característica designada pelo próprio Freud por método genético.

Para não surpreender o público, causar resistências e para envolvê-lo no desenvolvimento de uma idéia, Freud partia de um campo supostamente conhecido pelo público e trilhava o caminho percorrido em sua investigação. Diante da platéia, Freud se mantinha atento à irracionalidade e objeções à elaboração de sua comunicação. Portanto, tal procedimento consistia não somente numa reconstituição, junto ao público, de toda via de investigação percorrida, mas também num apelo para que o julgamento se mantivesse suspenso e, assim, "deixar que o assunto agisse sobre eles".

O estilo, como se pode ver em Freud, se estabelece a partir da relação estabelecida com o conhecimento a ser transmitido, assim, produzindo estilos particulares naqueles que se revestem de responsabilidade pela transmissão.

A idéia de um estilo contraria a ânsia de toda empresa pedagógica pelo modelo mais adequado de transmissão. O modelo, ou padrão, como se pode ver, é a própria rejeição do estilo.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

AVANZINI, Guy (org.). A Pedagogia atual: disciplinas e práticas. São Paulo: Edições Loyola, 1999.

BACHA, Márcia Neder. A arte de formar: o feminino, o infantil e o epistemológico. Petrópolis, R.J.: Vozes, 2002.

CAMBI, Franco. História da Pedagogia. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1999.

PIMENTA, Selma Garrido (org.). Pedagogia e pedagogos: caminhos e perspectivas. São Paulo: Cortez, 2002a.

PIMENTA, Selma Garrido; GHEDIN, Evandro (orgs.). Professor reflexivo no Brasil: gênese e crítica de um conceito. São Paulo: Cortez, 2002b.

 

 

1 Exposição resumida da tese de doutorado, intitulada: "Sobre uma especificidade do ensino da psicanálise na universidade: a formação de educadores", apresentada à Faculdade de Educação da USP (2005).