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On-line ISBN 978-85-60944-08-8

An 6 Col. LEPSI IP/FE-USP 2006

 

A escrita e a psicose da criança

 

 

Ana Beatriz Valério CoutinhoI; Evelyse Stefoni de FreitasII

Ianabcoutinho@yahoo.com.br
IIevelysefreitas@uol.com.br

 

 


RESUMO

Este trabalho tem como objetivo apresentar uma formulação teórica –baseada na psicanálise freudiana e lacaniana – do trabalho que sustenta a intervenção nos Grupos da Escrita da Pré-Escola Terapêutica Lugar de Vida. Essa teorização parte do princípio de que há um paralelismo entre escrita inconsciente e a aquisição da escrita alfabética em crianças psicóticas e autistas.

Palavras-chaves: escrita; psicose; psicanálise.


 

 

Entre o Saber e o Conhecimento

Ao atentar para a clínica com crianças com graves comprometimentos na constituição subjetiva1 é certo que nos deparamos com as questões próprias da aprendizagem. Embora a psicanálise não se constitua como uma teoria da aprendizagem, Freud não esteve ausente desse tema ao propor em Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade (1905) que a pulsão de saber é despertada na criança no mesmo momento em que se iniciam as investigações sexuais.

Diferentemente, porém, de apontar para a questão da diferença sexual2, que depois passa a ser o foco da investigação sexual infantil, Freud sugere que o primeiro enigma a ser desvendado pela criança seja: de onde vêm os bebês.

O desejo de saber da criança – despertado pelo enigma da origem e da diferença sexual – é a mola propulsora da construção das teorias sexuais infantis. Assim, a criança, no afã das investigações sexuais, passa também a exercer suas atividades intelectuais na tentativa de dar conta das questões em que se encontra envolta3. Neste sentido, se parte do caminho a ser trilhado pela criança consiste em lidar com as questões referentes à diferença sexual, cujo ponto de partida é a investigação acerca da origem dos bebês – e, portanto, da sua própria origem – ao final dessa tarefa a criança encontra-se em condições de construir um saber sobre a falta, sobre o que funda o desejo e, portanto, um saber sobre a castração.

Cabe pensar, desta maneira, que os processos intelectuais na criança são despertados pela sua posição na subjetivação e, portanto, que a atividade intelectual – entendida como uma função do ego – está calcada em aspectos próprios da constituição subjetiva, na medida em que o que a criança quer saber diz respeito, em última instância, ao desejo.

É preciso, no entanto, esclarecer que para a psicanálise as noções de saber e conhecimento não são equivalentes. O conhecimento diz respeito a uma função do ego – EU – referido, portanto, a um objeto externo e, sendo assim, conhecer é, em última instância, investigar a realidade. Em contrapartida, o saber está remetido ao saber inconsciente, e, portanto, saber é saber sobre o desejo.

Na tentativa de distinguir entre o "desejo de saber" e o "saber do desejo", Piera Aulagnier (1990) postula que a primeira forma de conhecimento está a serviço do princípio do prazer e, neste sentido, afirma que para que haja um "desejo de saber" é preciso que esse "conhecido" tenha se revelado inapto para responder à questão com a qual o sujeito encontra-se defrontado4. Neste sentido, a autora afirma que a questão com a qual o sujeito se afronta é aquela proposta pelo desejo do Outro – a mãe, ou aquela que na cena real vem encarnar o discurso inconsciente. Assim, afirma: "Eis porque todo desejo de saber se revela ser, desde a origem, busca de saber sobre o desejo e, mais precisamente, sobre o desejo do Outro" (p. 178).

Embora saber e conhecimento não coincidam em termos metapsicológicos, estão inteiramente relacionados em sua funcionalidade, na medida em que tanto um quanto outro, constituem bases para que a criança lide com a castração.

"Desejo de um saber sobre o desejo, assim nos parece (...) aquilo que está no próprio coração da relação do sujeito com o conhecimento. Mas, esse desejo nos indica também o que está no alicerce de sua meta: opor à dura realidade de castração, a esse luto do desejo infantil, um campo de ação onde o desejo passa a ser levado ao infinito, onde jamais corra o risco de deparar-se com a finitude de seu objeto" (Aulagnier, 1990, p. 188).

A clínica com crianças que passam por dificuldades na constituição subjetiva põe à prova que a posição da criança frente à castração – e, conseqüentemente frente à linguagem – não é indiferente ao modo como a criança se relaciona com o conhecimento. Assim, na medida em que o conhecimento está remetido ao saber inconsciente, na sua função de estruturação do sujeito, investigar esta relação se faz necessário quando tratamos de crianças cujo processo de constituição psíquica encontra-se obstaculizado.

 

A Escrita e a Psicose

A construção do conceito de inconsciente esteve atrelada à noção de escritura desde os trabalhos inaugurais de Freud. Sua concepção apresentada na carta 52, escrita a Fliess, apresenta um modelo de psiquismo como um aparelho de memória constituído a partir da inscrição de um conjunto de traços mnêmicos, que são as marcas da relação do sujeito com a linguagem. Essas inscrições seriam as representações das experiências de prazer que se dariam em diferentes níveis do aparelho psíquico: consciente, pré-consciente e inconsciente.

O que, por ora, importa ressaltar dos textos freudianos é que as várias associações que têm origem nas inscrições dos traços mnêmicos não poderiam se organizar sem ter a linguagem como uma condição e que a inscrição desses traços apresenta uma organização contingencial que demarca a singularidade radical do sujeito. A partir dessa noção de inscrição, começa a se fundar no pensamento freudiano a idéia de que a soma das inscrições cifraria um texto, o que cria o campo para que a escrita possa ser tomada pela psicanálise como uma modalidade de linguagem.

Na carta 52 (1896), Freud trabalha com a hipótese de que a o processo de constituição do psiquismo dá-se por um processo de estratificação do material presente em forma de traços de memória. Após a sua inscrição, estes traços ou bem ficam disponíveis na memória consciente do sujeito ou sofrem uma espécie de "apagamento" pelo efeito da operação do recalque, ficando, assim, fora da cadeia associativa consciente. Numa estruturação que se dá pela via da neurose, o que Freud afirma é que ocorre uma falha na tradução de uma determinada parte do material psíquico inadmissível para consciência. Para ele, esta falha na tradução é o que se concebe clinicamente como recalque.

Dessa perspectiva, podemos dizer que, no caso de sujeitos neuróticos nos quais a constituição psíquica está orientada pela operação do recalque, alguns traços mnêmicos permanecem inconscientes, isto é, não traduzidos e, portanto, inacessíveis à consciência. Sua condição de inacessibilidade, porém, não minimiza sua presença no psiquismo, na medida em que o conteúdo recalcado subsiste sob a forma de traços mnêmicos e retorna por meio dos sintomas, lapsos, sonhos, podendo sofrer uma retranscrição, por exemplo, a partir da relação transferencial com o analista.

Aliás, a própria construção do conceito de transferência na psicanálise apóia-se na metáfora da escrita, na medida em que ela é entendida, em alguns momentos da obra freudiana, como a reedição de uma história pregressa do sujeito que se atualiza na relação com o analista. Tal como um livro reeditado, a transferência pede por uma re-leitura.

No caso da estruturação psicótica, porém, o estatuto das inscrições e do recalque e, por conseguinte, a função do analista, desdobram-se de uma outra maneira. Freud (1924) identifica na psicose um poderoso mecanismo de defesa que consiste na rejeição de uma representação incompatível para a consciência juntamente com seu afeto, como se a representação jamais tivesse ocorrido ao sujeito. Porém, ao romper com a representação incompatível, o eu inevitavelmente desliga-se total ou parcialmente da realidade, vivendo uma experiência de confusão alucinatória.

Em última instância, a recusa da realidade seria uma recusa da castração, já que essa está intimamente ligada a uma função interditória e normativa. A não operação do recalque originário não é sem efeitos para o sujeito, na medida em que delimita o campo da psicose como sendo um conflito entre o eu e o mundo exterior. A partir disso, os mecanismos identificados na psicose seriam: arrastar o ego para longe da realidade e tentar reparar o dano causado, restabelecendo uma nova realidade.

Sua teorização acerca das psicoses, porém, foi considerada insuficiente pelo próprio Freud. É Lacan quem avança nos estudos sobre a psicose, trazendo contribuições na medida em que, ao propor uma outra metapsicologia, insere as psicopatologias na trama da linguagem. Para ele, a própria maneira como se exprime a linguagem define por si só a subjetividade (Lacan, 1953).

Podemos dizer, em termos simples, que a psicose se apresenta na linguagem sem o ponto final que, na estrutura da língua, traz o sentido do texto. O sentido é produzido sempre a posteriori, pelas operações de pontuação ou escansão. Além disso, o discurso psicótico retira o que da linguagem há de metafórico/ambíguo, quando toma a palavra como coisa e a torna literal.

Assim, apoiados em Lacan, podemos entender que o delírio psicótico, ao tentar recuperar a dimensão simbólica do discurso, recupera também essa dimensão da linguagem, ou seja, o delírio metaforiza a realidade ao tomar as coisas no campo da palavra. Freud (1924) já apontava para esse sentido do delírio, ao afirmar que o delírio psicótico é uma tentativa de recuperação, de restituir a castração de onde ela foi abolida.

É neste sentido que Lacan interroga sobre uma possível estabilização da psicose a partir do delírio ou, melhor dizendo, via construção de uma metáfora delirante: "Podemos falar de processo de compensação, e mesmo em processo de cura como alguns não hesitariam em fazê-lo, sob pretexto de que, no momento da estabilização de seu delírio, o sujeito apresenta um estado mais calmo que no momento da irrupção do delírio? Seria uma cura, ou não? É uma questão que vale a pena ser posta, mas creio que só em sentido abusivo se pode falar de cura." (Lacan, 1955-56, p.103).

Tendo como referência a noção estrutura proposta por Lacan, podemos entender que não se trata de propor a cura da psicose, senão de que esta possa adquirir uma condição de estabilização que conduziria o sujeito a uma condição outra de circulação pela linguagem. É assim que Lacan (1955-56), ao analisar os escritos de Schereber5, afirma que "o delírio de Schereber é à sua maneira um modo de relação do sujeito com o conjunto da linguagem" (p.145) .

Ao pensar na psicose da criança cabe-nos ainda interrogar por que via se daria essa estabilização, uma vez que na maioria dos casos a construção do delírio está inviabilizada pela própria condição de infans, ou seja, de não falante.

Na psicose infantil ocorre, em termos de estrutura, o mesmo que na psicose adulta, mas com uma diferença fundamental: com a eclosão da crise, o desenvolvimento da criança fica estagnado. Sendo assim, tratar uma criança psicótica implica criar vias de retomada da estruturação psíquica, fazendo surgir possibilidades de circulação social, uma vez que com a interrupção do desenvolvimento a criança fica aprisionada em um momento anterior a qualquer aprendizagem do universo social.

De acordo com Kupfer (2001), quando se trata da psicose infantil, o que está em jogo é uma palavra absoluta, uma palavra que oferece à criança um sentido único, que rouba da linguagem a sua flexibilidade, sua ambigüidade, suas múltiplas possibilidades. Os fenômenos elementares da psicose tais como alucinações auditivas ou visuais, as interpretações delirantes, o afrouxamento dos elos associativos e as alterações diversas da linguagem vão ganhar novos contornos na psicose infantil, apresentando-se intimamente articulados às estereotipias motoras, às falhas na construção da imagem corporal, e a comprometimentos no estabelecimento do laço social.

 

A escrita inconsciente e a escrita alfabética

A escrita alfabética não é simplesmente uma representação da fala. Para Kupfer (2006), a base da escrita alfabética está no escrito inconsciente, isto é, "no sistema de marcas inconscientes que rege o funcionamento do aparelho psíquico, inicial, fundamental. Esse escrito está na base das manifestações do sujeito do inconsciente; um sujeito pode surgir falando, desenhando, sonhando, fazendo lapsos e ... escrevendo".

Podemos dizer que a escrita, assim como as outras formações do inconsciente, têm uma origem comum que é a própria estrutura do inconsciente, pois é a partir do escrito inconsciente que se organizam as demais escritas: o sonho, o desenho e a escrita alfabética.

Para Berges (1988), a entrada da criança na escrita supõe uma nova orientação psíquica, uma nova ordem que exige levar em conta o princípio da realidade e a existência de um outro a quem o sujeito se dirige. Portanto, ela é a marca da emergência de algo novo no sujeito. A aprendizagem da escrita e da leitura nada tem a ver com o reconhecimento da imagem da letra, e só pode advir em decorrência da entrada da criança em um verdadeiro processo de simbolização que permite a utilização do código de uma língua.

Em função disso, a escrita é contemporânea à entrada no laço social e só pode se dar posteriormente ao tempo da constituição do campo do outro. Escrever seria uma manifestação da operação do recalque, na medida em que significa separar-se de uma língua original materna e inscrever-se numa língua compartilhada e organizada segundo as leis da cultura.

A língua materna original porta não apenas as palavras, mas a voz, o cheiro, o corpo da mãe; assim, escrever é, de alguma maneira, "perder" tudo isso. Dessa forma, escrever é perder uma certa relação com a presença materna e supõe que a criança não esteja mais presa ao corpo da mãe, numa relação especular e imaginária.

No processo de aquisição da escrita, trata-se, portanto, de alcançar uma operatividade simbólica tal que permita a retirada da letra de sua ancoragem imaginária. A imagem não desaparece com a escrita, mas passa a articular-se com o simbólico.

Na clínica da psicose, a relação do sujeito psicótico com a escrita é sempre marcada pela sua dificuldade de separar-se do corpo e da língua materna. Nesses casos, o sujeito ou bem faz uma colagem à língua materna, que se evidencia nas falas estereotipadas e repetitivas, ou procura salvar-se dela criando uma linguagem própria ininteligível porque desarticulada de qualquer código compartilhado.

Afirmou-se até aqui que é necessária uma operação de recalque para que se dê o surgimento da escrita. Para que esta última apresente-se enlaçada ao social faz-se necessário que o sujeito passe pela castração, pela separação do corpo materno e abandone uma vivência de pura satisfação para render-se à lei humana e, portanto, à lei da linguagem.

Entretanto, como podemos pensar a escrita no tratamento de crianças psicóticas se o que lhes falta é exatamente a operação do recalque?

Apoiamo-nos na hipótese de que na psicose a relação do sujeito com a linguagem pode ser trabalhada pela via da escrita uma vez que a escrita inconsciente é o suporte para a escrita alfabética. Se há um paralelismo entre essas duas escritas, a escrita alfabética poderia servir ao psicótico como uma via de suplência, como uma nova possibilidade de estruturação psíquica produzida a partir de traços que podem ser lidos, inscritos e que, portanto, teriam o caráter subjetivante.

Nesse sentido, a escrita pode constituir-se como um instrumento de tratamento na tentativa de promover, ainda que ortopedicamente, alguma entrada da criança na linguagem. Assim, é possível pensar que o aprendizado da escrita, ao solicitar que o sujeito dobre-se às leis próprias da língua, possibilite a entrada desse sujeito em alguma lei simbólica.

É preciso deixar claro aqui que não se trata de tentar transpor a estrutura psicótica "neurotizando" o sujeito, mas sim de promover algum deslocamento de uma posição toda, absoluta e desorganizadora do sujeito, dentro de própria psicose, permitindo novos usos da linguagem e novas possibilidades de circulação social.

Essas são as apostas do Grupo da Escrita, um grupo terapêutico realizado na Pré-Escola Terapêutica Lugar de Vida com crianças psicóticas e autistas que apresentam uma tendência desejante pela escrita, o que pode ser lido como uma direção de tratamento institucional.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

AULAGNIER, Piera. Um intérprete em busca de sentido. São Paulo: Escuta, 1990.

BERGES, J. Leitura e escrita literais. Doze escritos de Jean Berges. Escritos da criança, 2, 1997.

FREUD, Sigmund. Carta de 6/12/1896 a Fliess. In: Publicações pré-psicanalíticas e esboços inéditos. Edição Standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Editora Imago, 1996.

_________. A Interpretação dos Sonhos (1900). Edição Standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Editora Imago, 1996.

__________. O inconsciente (1915). Edição Standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Editora Imago, 1996.

_________. A perda da realidade na neurose e na psicose (1924). Edição Standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Editora Imago, 1996.

_________. Sobre a introdução do narcisismo (1924b). Edição Standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Editora Imago, 1996.

_________. Algumas conseqüências psíquicas sobre a diferença sexual anatômica. (1925). Edição Standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Editora Imago, 1996.

KUPFER, M. C. M. Educação para o futuro. São Paulo: Escuta, 2001.

__________. Inconsciente e escrita, 2006. (no prelo).

LACAN, J. J. (1955-56) O seminário. Livro III, As psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988.

 

 

1 Em linhas gerais: autistas e psicóticos.
2 Nesse texto, Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade, de 1905, Freud afirma que num primeiro momento a criança – no caso o menino – aceita a existência de dois sexos. Já em 1925, em Algumas Conseqüências Psíquicas sobre a Diferença Sexual Anatômica, Freud reformula essa afirmação apontando para a noção da primazia do falo como uma das primeiras teorias sexuais infantis.
3 Segundo Freud – Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade, 1905 – seriam elas: a chegada de um novo bebê e a revelação da ausência do pênis na menina.
4 Piera Aulagner retoma a premissa freudiana na qual a criança, ameaçada com a chegada de um rival – um irmão – teria que lidar com as questões da origem dos bebês e a diferença sexual. Assim, retoma também a posição de Freud: que a criança, não contente com as explicações provenientes dos adultos – a fábula da cegonha –, retoma sozinha suas investigações. É neste sentido que a autora afirma que algo dessa resposta deveria falhar, para que a criança possa voltar a sua posição de investigador, mudando, contudo, o objeto de sua pesquisa.
5 Memórias de um doente dos nervos.