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On-line ISBN 978-85-60944-08-8

An 6 Col. LEPSI IP/FE-USP 2006

 

Psicologia e educação: o que se transmite ao educador?

 

 

Flávia Ranoya Seixas Lins

flaranoya@gmail.com

 

 


RESUMO

Este artigo refere-se ao projeto de mestrado que está sendo desenvolvido no departamento de Psicologia e Educação da FEUSP, cujo tema central é a análise sobre o mal-estar na educação e a sua relação com a psicologia. Sabemos que as teorias e práticas psicológicas tem sido cada vez mais chamadas a ocupar o campo educacional. Podemos dizer, junto com alguns pesquisadores da área da psicologia e educação, que isto tem ocorrido devido ao mal-estar na educação, ou seja, aos impasses que a educação tem enfrentado na atualidade e as respostas que são efetuadas por uma certa concepção de psicologia. Nesta perspectiva, apresentamos um estudo inicial sobre as diferentes concepções que se estabelecem sobre as relações entre psicologia e educação no contexto contemporâneo, procurando questionar como a psicologia tem participado da formação e transmissão de saberes ao educador. Dentro do campo psicológico destacamos duas linhas de pesquisa que analisam e propõe práticas distintas para o enfrentamento do mal-estar na educação, a saber, a psicologia escolar que problematiza o conceito de fracasso escolar e a vertente que articula psicanálise e educação.

Palavras-chaves: educação; psicologização; psicanálise.


 

 

Este artigo foi apresentado em Comunicação Livre no VI Colóquio do LEPSI, FEUSP, em 2006, onde abordamos os eixos principais da pesquisa de mestrado que está sendo realizada na FEUSP. O projeto desta pesquisa foi suscitado pelos mal-estares que o exercício profissional do psicólogo escolar enfrenta quando ingressa no campo educacional e dizem respeito principalmente:

1º) ao lugar ocupado historicamente pelo psicólogo na rede de ensino, onde este profissional é chamado pelo campo pedagógico como especialista e técnico, supostamente capaz de responder a todo e qualquer impasse que a instituição escolar enfrenta, ou seja, fato que diz respeito ao processo de psicologização da educação;

2º) à constatação cotidiana da profunda crise em que o sistema educacional esta imerso, crise entendida em amplo sentido, pois abrange tanto os aspectos estruturais e políticos quanto teóricos e práticos.

É desta forma que o objeto de estudo da pesquisa se estabelece na interface entre psicologia e educação, numa investigação sobre a apropriação do saber psicológico no campo educacional, em especial no que tange à formação e à prática do educador. Assim, procuraremos identificar quais os efeitos desta apropriação naquilo que se denominou de mal-estar na educação, conforme o referencial psicanalítico. Partimos da hipótese central de que a psicologização da educação está a serviço da hegemonia do discurso técnico e científico, discurso este que estaria na raiz da crise da educação na atualidade.

Para efeitos desta apresentação, dividimos o projeto da pesquisa em três eixos, que serão desenvolvidos a seguir:

1.Inicialmente, nossa pesquisa parte de uma análise que situa a crise na educação no interior de uma crise maior localizável na modernidade, crise esta marcada, segundo Hannah Arendt (1968), pela falência da política da autoridade e da tradição. Estes temas serão desenvolvidos na pesquisa por entendermos que são extremamente relevantes para avançarmos na compreensão e na discussão daquilo que se nomeou de psicologização da educação. Neste sentido, cabe ainda ressaltar que abordaremos esta questão através do estudo de caso a ser realizado em uma rede municipal de ensino, estudo que tem por objetivo ilustrar o lugar do discurso psicológico e psicanalítico nas práticas pedagógicas, bem como na formação do educador.

Vejamos inicialmente, alguns elementos do pensamento de Arendt que nos ajudam na reflexão sobre as raízes da psicologização do ensino e se articulam para a compreensão acerca da crise educacional acima apontada.

Segundo Arendt, devemos analisar a crise na educação a partir de uma contingência histórica e política na América, qual seja, a perspectiva da fundação de um "Novo Mundo" que estava se constituindo pela imigração do pós-guerra. Desta forma, o caso americano seria exemplar por estar instaurando uma ideologia que se disseminou para o restante do mundo. Segundo a autora, na criação do Novo Mundo a educação se daria pela eliminação da transmissão da tradição, ou seja, pelo apagamento do legado simbólico contido no ato educativo. Assim, a educação se revelaria imersa na dimensão política, ajustada pela ideologia de que para educar para o novo seria necessário não reproduzir os velhos e tradicionais modos de ensino. Este movimento de recusa dos velhos métodos, segundo a autora, traduziu-se num ideal de eliminação das desigualdades existentes entre o adulto e a criança, o que teria gerado uma anulação da dessimetria entre professor e aluno. Finalmente, teríamos o esvaziamento do lugar da autoridade nas relações educativas como tributário deste processo.

Identificamos neste quadro os fundamentos da problemática denominada de psicologização do universo pedagógico, uma vez que o campo da psicologia e suas teorias foram chamados para contribuir na construção deste Novo Mundo. Isto se deu a partir da produção de conhecimentos a cerca da criança, do desenvolvimento infantil e, portanto, com novas propostas sobre como ensinar. Em suma, a "crise na educação" se expressaria através da falência do ato educativo, num contexto de falência do lugar da autoridade. Trata-se do esvaziamento do lugar simbólico a partir do qual a educação se sustentava, um vazio que se tornou solo fértil para a entrada do discurso psicológico e suas técnicas no campo da educação.

Vejamos agora o segundo eixo de nosso trabalho:

2. Analisaremos como duas correntes atuais dentro da psicologia, que se colocam contrárias a psicologização do ensino, tem tratado desta problemática no campo educacional. Estamos nos referindo, de um lado, à psicologia escolar, que problematiza o conceito de fracasso escolar e, de outro, a uma vertente que articula psicanálise e educação. Estariam estes saberes efetivamente contrários à psicologização do ensino? Estariam propondo um novo modo de articulação entre psicologia e educação?

A primeira vertente problematiza o conceito de "fracasso escolar", entendendo o mal-estar na educação como efeito de um modo de produção capitalista que promoveria a técnica em detrimento da ética, que reificaria as relações sociais e que teria como resultado a produção de práticas de exclusão social. Nesta concepção, o psicólogo escolar deveria, através da criação de práticas de combate ao discurso hegemônico, assumir uma posição política que defendesse a tarefa de combater a alienação dos sujeitos envolvidos neste contexto. Esta psicologia enfatiza a dimensão política do fracasso escolar, no sentido de denunciar a ausência de políticas públicas que visem à melhoria do ensino e à formação de cidadãos. Critica ferozmente o uso de técnicas psicológicas, como os testes de QI, entendidos como instrumentos para a manutenção do discurso técnico hegemônico (Patto).

A segunda vertente refere-se aos debates acerca da articulação entre psicanálise e educação, na linha proposta pelas discussões de Millot, em Freud Antipedagogo. Esta autora propõe uma leitura da obra freudiana que desautoriza qualquer tentativa de aplicação da psicanálise a teorias e práticas pedagógicas. Contrariamente aos desejos de Anna Freud, Millot nega a possibilidade da formulação de uma pedagogia psicanalítica. Seguindo Freud, em seu texto "Mal-Estar na Civilização" (1929), Millot explicita que Freud teve que abandonar qualquer crença de que o conhecimento psicanalítico poderia ter um caráter profilático das neuroses quando aplicado à educação, pois nesta obra configura-se a idéia de que, "O mal-estar funda a civilização, as idéias de progresso e avanço civilizatórios são incompatíveis com uma condição cuja base são as ‘nossas piores disposições’, cujo objeto de desejo está para sempre perdido e cujo fim é a morte" (Kupfer, pg 24). Neste sentido, a psicanálise freudiana não teria como horizonte imediato o progresso da humanidade, ou a produção de um bem estar social, uma vez que opera segundo uma ética formulada a partir das leis do inconsciente.

Para Millot, "A descoberta do Inconsciente tem o corolário de invalidar qualquer tentativa de construir uma ciência pedagógica que permitia determinar os meios a empregar para atingir determinado objetivo. O essencial do desenvolvimento psíquico do indivíduo escapa, por existir o Inconsciente, a qualquer tentativa de domínio. O saber sobre o Inconsciente adquirido pela experiência psicanalítica não pode ser aplicado pela pedagogia porque, embora a psicanálise esclareça os mecanismos psíquicos em que se funda o processo educacional, tal esclarecimento não aumenta o domínio sobre este processo" (pg. 156).

Vemos como esta posição é contrária a qualquer aplicação da psicanálise ao campo educacional. Entretanto, não deixa de afirmar que haja contribuições da psicanálise à educação, na medida em que defende que os educadores devam conhecer a teoria psicanalítica ou mesmo que devam ser analisados para tornarem-se "melhores educadores": "a psicanálise não pode interessar à educação salvo no próprio campo da psicanálise, isto é, pela psicanálise do educador e a da criança. Na criança, para suspender os recalques; no educador a fim de que saiba não abusar de seu papel e desprender-se do narcisismo, para que evite o empecilho que consistiria em situar a criança como seu eu-ideal" (pg 157).

Apesar da posição de Millot, nossa experiência dentro do campo educacional, mostra que a psicanálise tem se tornado, cada vez mais, uma teoria a serviço da psicologização da educação. Constatamos a forte penetração do discurso psicanalítico na educação e a crescente oferta de cursos sobre psicanálise para educadores. Sabemos que existem diferentes abordagens sobre a conexão da psicanálise com a educação, mas nos parece que esta penetração tão incisiva da teoria psicanalítica na educação se deva ao fato da psicanálise estar sendo tomada como mais uma técnica a ser utilizada pelo campo pedagógico.

E por fim, nosso terceiro eixo de análise:

3. Realizaremos algumas considerações sobre a inserção dos temas tratados com o campo da Política. Sabemos que Arendt localiza no desinteresse da sociedade moderna pelo campo da Política, o sintoma maior da crise da modernidade. Neste sentido, parece-nos relevante examinarmos como os dois referenciais tratados acima se posicionam diante da Política.

No que tange à psicologia escolar aqui considerada, vemos como esta vertente configura seu objeto, propõe reflexões e práticas, que só podem ser entendidas no interior do campo social e político. A crítica ao "fracasso escolar" só ganha sentido na interface da educação e da política, e seu enfrentamento é também uma ação situada neste dois campos.

Já segunda vertente, trata da relação entre psicanálise e educação de modo a situar sua contribuição aparentemente fora do campo da política. Ao afirmar a impossibilidade de uma pedagogia psicanalítica, parece se distanciar do debate freudiano acerca das relações entre psicanálise e cultura.

Por outro lado, é no âmbito desta relação entre psicanálise e cultura que alguns autores tem contribuído para o debate das relações entre psicanálise e educação, de modo a situá-las no campo político.

Nesta terceira vertente, o lugar de falência e descrédito social em que se encontra o sistema de ensino na atualidade, é tomado como sintoma social, que faz parte do debate inaugurado por Freud sobre o Mal-Estar na Civilização (1929). O sintoma, ou o mal-estar a que Freud se refere é estrutural na civilização e interroga a humanidade na medida em que revela o paradoxo em que estamos inseridos, a saber, a necessidade do homem civilizado em destruir aquilo que ele mesmo produz.

Portanto, Freud, nesta obra, questiona a restrição da psicanálise à sua prática clínica, na medida em que nos oferece uma outra interpretação sobre as relações entre o indivíduo e as produções coletivas, situando a psicanálise no mundo, no contexto cultural e social.

Sendo assim, o nosso campo de pesquisa segue o referencial psicanalítico e se insere neste debate sobre o mal-estar na educação, bem como nas discussões sobre a psicanálise em sua relação com o campo social e político. Na Proposição de 9 de outubro de 1967, Lacan propõe uma articulação da problemática interna da psicanálise, identificada de psicanálise em intensão, com sua relação aos outros campos da cultura, que é chamada de psicanálise em extensão.

Ou seja, há uma imbricação entre a psicanálise, o campo social e político que nos interroga quando a psicanálise, através de sua ética e prática, ingressa em outros campos do conhecimento. Pretendemos com o decorrer da pesquisa responder às perguntas: podemos entender a psicanálise como uma política (Cifali)? Qual seria o estatuto da política na prática psicanalítica?

Assim, no que tange à educação, questionamos se a psicanálise poderia ser uma forma de combate ou resistência à hegemonia do discurso psicológico no campo pedagógico. Ao propor uma ética que privilegia a categoria do sujeito, subvertendo a lógica implicada no como fazer, por aquela relativa à pergunta para que fazer (Voltolini)1, o referencial freudo-lacaniano entende o lugar da psicanálise como um dispositivo que produz mudança na posição discursiva ao incluir o sujeito como constituído pela lógica do desejo.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

ARENDT, Hannah. Entre o Passado e o Futuro. São Paulo: Perspectiva, 1968.

CIFALI, M. Freud Pedagogue?Paris: InterEditions, 1982.

FREUD, S. (1929). Mal-estar na Civilização. "Obras Completas".Rio de Janeiro: Imago,1996

KUPFER, Maria Cristina.Educação para o Futuro: psicanálise e educação. São Paulo: Escuta, 2000.

LAJONQUIÈRE, Leandro. Infância e Ilusão (Psico) Pedagógica: escritos de psicanálise e educação. Petrópolis: Ed. Vozes, 1999.

PATTO, Maria Helena S. A Produção do Fracasso Escolar. São Paulo: T. A. Queiroz, 3ª. edição,1993.

VOLTOLINI, Rinaldo. Do contrato pedagógico ao ato analítico: contribuições à discussão da questão do mal-estar na educação. Estilos da Clínica: Revista sobre a Infância com Problemas. São Paulo, Pré-Escola Terapêutica Lugar de Vida, IPUSP, 6(100), 2001.

_________ . (2002). As Vicissitudes da Transmissão da Psicanálise a Educadores. Anais do III Colóquio do LEPSI, Psicanálise, Infância, educação.São Paulo, Universidade de São Paulo, Lugar de Vida.

 

 

1 Anotação de aula realizada pelo professor Rinaldo Voltolini, no curso de pós-graduação da FEUSP, no dia 19/09/2005.