6Psicologia e educação: o que se transmite ao educador?A utilização do Diário de Bordo na formação de professores author indexsubject indexsearch form
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On-line ISBN 978-85-60944-08-8

An 6 Col. LEPSI IP/FE-USP 2006

 

O que pode a psicanálise frente aos impasses escolares?

 

 

Flavia Maria de Vasconcellos

flavia@trapezio.org.br

 

 


RESUMO

Este trabalho pretende refletir, à luz da psicanálise, sobre questões relativas aos impasses escolares, para em seguida apresentar uma proposta de intervenção clínica para crianças e adolescentes que apresentam dificuldades escolares. Inicialmente, apresentaremos uma abordagem do fracasso escolar como um sintoma social, como uma resposta do sujeito ao discurso pedagógico hegemônico, que busca um saber positivante sobre a criança e sobre os métodos capazes de conduzir o aluno ao pleno desenvolvimento de suas capacidades cognitivas e a sua justa adequação às exigências sociais. Este discurso rechaça as idiossincrasias e vicissitudes próprias a qualquer sujeito e a qualquer processo de aprendizagem e persegue um ideal de ensino que deve ocorrer sem conflitos e contradições. Ocorre uma objetalização da criança e o assolamento do desejo. O que pode a psicanálise, então, frente a esta situação? A segunda etapa do trabalho pretende apresentar uma proposta de intervenção que, partindo de uma concepção psicanalítica da educação (que implica entender a educação na sua relação com a subjetividade e com o estabelecimento dos laços sociais), propõe um atendimento aos impasses escolares, visando contemplar a necessidade de se apoiar a escolarização, na medida em que se entende que a educação ainda ocupa na vida subjetiva deste sujeito um lugar de protagonista nos processos envolvidos na constituição do sujeito do desejo.

Palavras-chave: impasses escolares; sintoma social; psicanálise.


 

 

O presente trabalho pretende refletir sobre os impasses escolares à luz da psicanálise e apresentar uma proposta de intervenção dirigida a crianças e adolescentes que apresentam dificuldades em sua escolarização.

As perguntas que irão nortear a discussão são as seguintes:

1. Por que encontramos um número tão grande de alunos com dificuldades na escolarização hoje?
2. O que são as dificuldades escolares?
3. O que pode a psicanálise frente a essa questão?

 

1. Sobre a alta incidência de alunos com dificuldades nas escolas hoje.

Fracasso escolar em nosso tempo parece ser uma epidemia. Alunos que não aprendem, alunos indisciplinados, alunos que nada querem saber representam um enorme desafio para a escola contemporânea. Há poucos anos atrás, sabemos, alunos que não se adequassem às exigências escolares simplesmente eram convidados a se retirar. A escola se caracterizava, portanto, por uma certa hegemonia entre seus alunos, que reproduzia uma função de estratificação social própria à sociedade capitalista.

Este quadro se transformou radicalmente após a implementação de uma série de medidas tais como reformulações do modelo de ensino (ex: progressão continuada) e a sanção de leis que regulam a obrigatoriedade do ensino para crianças de 6 a 14 anos.

Dados do IBGE do ano de 2000 informam que 96,4% das crianças brasileiras entre 7 e 14 anos estão freqüentando a escola.

Ainda assim, longe de se apresentar como um espaço público que possa ser identificado como democrático, a escola, apesar de receber quase a totalidade das crianças que estão em idade escolar, ainda não é capaz de oferecer um ensino de qualidade que possa fazer um contraponto à dinâmica social de exclusão.

Observamos facilmente o despreparo de nossas escolas para atender adequadamente a todos os seus alunos. E esta condição não se deve tão somente ao fato de nossas instituições escolares estarem de fato em crise. Deve-se, também, ao fato de que as políticas públicas que orientam e determinam os rumos da educação são implementadas de um modo pouco cuidado, não dando tempo para que as escolas e os educadores se adequem às transformações exigidas.

Sendo assim, uma proposta que pode ter sido toda embasada nos melhores princípios educativos visando uma transformação efetiva no quadro educacional é recebida pela escola como uma determinação autoritária e burocrática, perdendo-se no meio do caminho todo o sentido da idéia inicial.

Um exemplo disso é a ampliação do ensino fundamental para 9 anos e a lei que sanciona a obrigatoriedade de entrada na escola a partir dos 6 anos de idade e não mais aos 7. Não vou me dedicar aqui a fazer a defesa desta proposta, mas partirei do princípio de que, em nosso mundo globalizado que demanda de todos nós condições para lidar com um mundo de relações extremamente complexas, quanto antes uma criança ingressar na escola, que, em tese, seria a instituição melhor posicionada para transmitir uma sistematização de conteúdos e valores acerca de nosso mundo, tanto melhor. No entanto, o que acontece na prática é um atropelamento dos princípios que embasaram as medidas tomadas: as escolas, sem tempo para se adequarem quanto ao espaço físico necessário para receber essas crianças, a elaboração de uma proposta pedagógica nova, e sem um corpo docente capacitado para trabalhar com essa faixa etária, vem recebendo essas crianças na mesma classe das crianças de 7 anos, empurrando o problema pra frente, quando, daqui há 8 anos, terão de oferecer um nono ano para esses alunos. Percebe-se a distorção que se cria: o ano a mais proposto com a lei está referido ao primeiro ano escolar e não ao último!

Enfim, vemos aqui um exemplo de como a instituição escolar está capturada por um discurso social e político e de como ela se torna responsável pela produção do fracasso escolar, como bem constatou Maria Helena Patto ao longo de toda a sua obra.

 

2. O que são as dificuldades escolares?

Ainda refletindo sobre a alta incidência de alunos com dificuldades na escolarização, e partindo de uma concepção psicanalítica da educação, que implica entendê-la na sua relação com a subjetividade e com o estabelecimento dos laços sociais, entendemos os impasses escolares como um sintoma social1, ou seja, como uma resposta àquilo que se apresenta no discurso social sobre educação.

Uma aproximação atenta às entrelinhas do discurso social sobre a educação hoje permite-nos observar a instituição escolar capturada por um discurso pedagógico que persegue um ideal de ensino que deve ocorrer sem conflitos e contradições. As incontáveis dificuldades que se apresentam no cotidiano escolar hoje, seja do ponto de vista do aluno ou do professor, seriam, portanto, efeito do encontro de um sujeito com este discurso totalizante, para o qual não cabe a singularidade, o estilo, e, por fim, o desejo. Ora, sabemos que as aprendizagens não acontecem linearmente e sem conflitos. Muito ao contrário, a aprendizagem exige do sujeito operações de idas e vindas, aproximações e distanciamentos, para que as relações e sentidos possam se dar. Mais que isso, sabemos que as aprendizagens dependem de um sujeito desejante, que se ligue libidinalmente ao objeto de conhecimento.

O fracasso escolar, portanto, seria uma resposta a essa busca impossível por um ideal totalizante e inquestionável, que produz uma prática (pedagógica) autoritária, arbitrária e violenta.

Vê-se, deste modo, como questões políticas, sociais e econômicas se entrelaçam à questão da escolarização criando um contexto muito desfavorável à valorização e à transmissão de nossa tradição e cultura.

Interessa-nos saber, particularmente, como se dá o encontro deste discurso com o sujeito do desejo e de refletir sobre como intervir neste quadro a partir do campo da psicanálise.

 

3. O que pode a psicanálise frente a essa questão?

A contribuição primordial da psicanálise na articulação com a educação se refere a uma questão de ordem ética: como resposta ao assolamento do sujeito e do desejo, provocado por nossa sociedade de controle, a psicanálise não só é o campo primordial do particular, como também se torna protagonista de uma militância pelo sujeito. E a abordagem dos impasses escolares como um sintoma social, ao contrário do que poderia parecer, longe de se situar no plano meramente da crítica social, confere uma consistência ainda maior à abordagem psicanalítica do sujeito.

O fracasso escolar é uma patologia recente, que responde, assim como outros sintomas sociais, a novas formas de laço social, que demandam dos homens o abrandamento de suas paixões, a homogeneização dos comportamentos e o silêncio de seu desejo.

A sociedade globalizada se caracteriza por um controle excessivo de tudo e de todos, e disso decorre a normatização humana: o homem não é cidadão, nem sujeito, é apenas um consumidor, um homem sem qualidades e sem particularidades.

As crianças que fracassam em suas aprendizagens chegam aos consultórios e instituições do campo psi geralmente encaminhadas por sua escola, que, por sua vez, espera que o atendimento em questão recoloque o aluno na normalidade, nos trilhos esperados das aprendizagens.

Ora, intervir no campo das dificuldades na aprendizagem à luz da ética psicanalítica requer justamente uma subversão dessa demanda, que pode ser resumida assim: "o aluno que não aprende é um desviante da norma e deve se enquadrar nos trilhos das expectativas sociais". A pronta resposta a esta demanda estaria mais a serviço de uma ideologia, como bem nos lembra Cristina Kupfer, do que a serviço de interesses propriamente educativos. Não se trata, portanto, de adaptar a criança às expectativas sociais, mas de oferecer condições para que ela melhor se situe em relação ao conhecimento, às suas aprendizagens e, por fim, em relação a sua constituição subjetiva.

Isto posto, temos o terreno preparado para apresentarmos a intervenção proposta pelo Trapézio, instituição que tem a finalidade de apoiar a escolarização de crianças e adolescentes que apresentam impasses em suas aprendizagens e no estabelecimento dos laços sociais.

 

Sobre o Grupo de Apoio à Escolarização Trapézio

Partindo de uma compreensão dos impasses escolares como um sintoma social, entendemos que todos os personagens que integram o cenário escolar estão enlaçados por uma mesma trama discursiva. O nosso trabalho visa intervir sobre este discurso.

Para isso, o dispositivo clínico compreende intervenções dirigidas às crianças, a suas famílias e a seus educadores.

A montagem está estruturada de acordo com a lógica das entrevistas preliminares2, ou seja: nossas intervenções estão a serviço do questionamento das certezas, da transformação da queixa em enigma e da implicação do sujeito com sua questão. No nosso caso, no entanto, ao final do atendimento não necessariamente chegaremos à formulação de uma demanda de análise, mas esperamos que o sujeito possa chegar a formular um projeto para si, que contribua para que ele se situe em relação ao que fazer e como fazer.

Para atingir esses objetivos, a escuta psicanalítica está presente em todas as instâncias da instituição, o que nos leva a uma concepção ampliada do espaço clínico: não há espaço neutro, nem a sala de espera, nem os corredores.

Para as crianças e adolescentes, são oferecidas oficinas que, por vezes, podem ser conciliadas a atendimentos individuais (fonoaudiológico ou psicanalítico). As oficinas são realizadas em grupos de até 6 crianças e são conduzidas por uma dupla de coordenadores. Temos hoje a oficina de linguagem, o grupo de projetos, o ateliê de artes, a roda de leitura e a culinária. Todas as atividades estão organizadas em torno da realização de uma produção e, geralmente, usamos o recurso da elaboração de projetos como estratégia de trabalho.

O projeto se caracteriza por uma progressão de acontecimentos que devem acontecer para que um objetivo seja alcançado, e ele requer inicialmente uma escolha, um posicionamento sobre o que se deseja realizar. Essa estratégia visa contribuir para que as crianças possam compartilhar idéias e experiências.

Encontramos, com freqüência, uma carência de palavra e implicação, associada às dificuldades escolares. Isto impõe uma distância entre o sujeito e o conhecimento. A idéia de se trabalhar com o projeto na clínica teria, então, o objetivo de promover o encontro do sujeito desiderativo com o objeto de conhecimento, no laço social (2002).

O trabalho com os pais visa ampliar as significações dadas ao sintoma do filho e implicá-los com essa questão, já que muitas vezes, chegam à instituição por conta de um encaminhamento da escola, sem estarem apropriados ou de acordo com os motivos que levaram a essa decisão.

A interlocução com a escola também visa o questionamento e a ampliação das significações conferidas ao aluno, bem como a implicação e ocupação do professor no processo de reflexão e elaboração de propostas que possam favorecer o aluno na sua relação com o aprender.

Lembro do caso de uma menina de 5 anos, que foi encaminhada para o Trapézio porque não falava dentro da escola. Da porta para fora, ela falava, mas, na escola, via-se tão impedida de pronunciar qualquer coisa que chegava a fazer xixi na calça porque não pedia para ir ao banheiro. Importante ressaltar que não só Maria não falava como também não se colocava de nenhum outro jeito. Seu sintoma reproduzia de um modo radical o ideal de uma criança-objeto, sem desejo, sem fala, sem criação, sem movimento. Seu atendimento, a escuta de seus pais e a interlocução com os professores revelou, aos poucos, o quanto a escola tinha, com relação a esta família, uma relação assistencialista, que gerava um sentimento de discriminação na mãe. Foi como efeito do atendimento que esta pôde vir a se pronunciar a respeito de seu incômodo quando a escola, por exemplo, mandava para sua casa uma cesta básica, um sabonete ou um xampu contra piolhos. (Note-se que este não era um procedimento adotado com todas as crianças).

Como efeito dos re-arranjos discursivos propiciados pelo atendimento, Maria começou a falar no tratamento. A menininha muda, apática e frágil do início do tratamento deu lugar a uma menina brava e autoritária. Ela colocava os meninos do grupo sentados na frente de uma lousa e brincava de ser a professora. Os meninos não podiam nem se mexer, Maria gritava e gesticulava e os fazia ficarem quietos e imóveis.

Retomando a questão do sintoma social, fica claro neste exemplo como os sujeitos envolvidos neste cenário escolar responderam cada um a seu modo ao discurso hegemônico da pedagogia3: a escola assumiu o lugar de quem tudo sabe sobre o outro, mandava sabonete para a casa de Maria sem ao menos perguntar se a família precisava ou se queria; a família respondeu ocupando uma posição resignada e passiva e Maria respondeu com seu sintoma.

Para concluir, empresto do grupo que compôs "A clínica do social", a bela metáfora do "Sexto Lobo": vocês sabem que "o homem dos Lobos" foi um paciente de Freud. Durante seu atendimento, menciona um sonho, no qual apareciam "seis ou sete lobos" em uma árvore. Em seu desenho, no entanto, apareciam apenas cinco. Contardo Calligaris sugere a interpretação de que o sexto e/ou sétimo lobos ausentes estariam referidos àquilo que excede o campo da família na árvore genealógica do sujeito. "O sintoma é sempre social", afirma, e continua, a singularidade "é sempre efeito de uma rede discursiva, que é a rede mesma do coletivo" (1991).

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

ARAGÃO, L. T. (e outros autores) Clínica do social: ensaios. São Paulo, Escuta, 1991.

LAJONQUIÈRE, L. A psicanálise, a educação e a escola de Bonneuil. Estilos da Clínica. Revista sobre a Infância com problemas. São Paulo, Pré-Escola Terapêutica Lugar de Vida, IPUSP. 3(4): 65-79, 1998.

INSTITUTO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS NACIONAIS. Geografia da Educação Brasileira, Brasília, 2002.

MARTINS DE OLIVEIRA, L. G. A escuta psicanalítica dos pais no tratamento institucional da criança psicótica. São Paulo, Instituto de Psicologia da USP, 1998. (dissertação de mestrado)

PETRI, R. Psicanálise e educação no tratamento da psicose infantil: quatro experiências institucionais. São Paulo: Annablume: FAPESP, 2003.

Seminário Psicanálise versus sociedade de controle, coordenado por Jorge Forbes, em 10/06/2006.

VASCONCELLOS, F. O projeto em sua vertente clínica (artigo veiculado no site www.trapezio.org.br), São Paulo, 2002.

 

 

1 Sintoma Social, na concepção sistematizada pelos integrantes do "Sexto Lobo – clínica do social" diz respeito a algo que se inscreve no discurso dominante de uma dada sociedade.
2 Esta idéia foi elaborada na tese de mestrado de Lina Galletti Martins de Oliveira, "A escuta psicanalítica dos pais no tratamento institucional da criança psicótica".
3 Este conceito elaborado por Leandro de Lajonquière (1998) sintetiza sua crítica à tese da adequação natural entre as capacidades cognitivas do aluno e as intervenções pedagógicas, que balizadas por teorias psicológicas acerca do desenvolvimento e maturação da criança, têm a ambição de ajustar os conteúdos às modalidades de ensino.