6O que pode a psicanálise frente aos impasses escolares?Clínica de linguagem, psicanálise e transmissão author indexsubject indexsearch form
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On-line ISBN 978-85-60944-08-8

An 6 Col. LEPSI IP/FE-USP 2006

 

A utilização do Diário de Bordo na formação de professores

 

 

Francisco Moura

mourafrancisco@hotmail.com

 

 


RESUMO

Este trabalho descreve o Diário de Bordo (DB) sendo utilizado como ferramenta clínica indispensável na formação de professores. O DB é um conceito retirado da etnografia que utilizamos aqui no contexto da sala de aula. Esta perspectiva é muito antiga no que se refere à formação de professores. Atualmente ela ganha uma nova roupagem por causa da influência psicanalítica e sua incursão na educação. Engajado na perspectiva clínica de orientação psicanalítica pretende-se analisar as estratégias adotadas nas ciências da educação quando o sujeito assume seu próprio destino na sua formação através da produção de DB durante os seus estudos. Estamos conscientes das complexidades estruturais (Tardif e Lessar, 2005) e as subjetividades (Cifali & Giust-Desprairies, 2006) implícitas nesta profissão. Através da produção do DB redigido imediatamente após cada aula da disciplina de Psicologia da Educação constatamos que os elementos subjetivos – inconscientes – emergem e fazem o sujeito reagir e produzir sentido na sua formação ou na sua profissão. Os temas abordados foram: história da criança e da educação, psicanálise e seus conceitos aplicados no campo educativo, a afetividade e a aprendizagem etc. Partindo de uma perspectiva pesquisa-ação, solicitamos, durante um semestre escolar, que universitários redigissem um DB sobre os temas objetos das aulas, buscando associá-los com outras experiências da vida. Esses estudantes, jovens adultos, têm entre 18 e 30 anos e fizeram a escolha de se tornarem professores. A produção do DB não é obrigatória, então ele não recebe pontuação para o sucesso na disciplina de Psicologia. É uma atividade livre e espontânea em que os estudantes são convidados para produzirem livremente os impactos que os conteúdos do curso lhes causaram, as lembranças da infância ou outras experiências como estudantes do ensino médio ou de outras épocas de suas vidas. Foram produzidos 14 DBs por aluno durante o semestre e nenhum rigor metodológico foi solicitado para sua redação. Na medida em que os Diários de Bordo foram entregues , foram dados feedbacks na modalidade individual e/ou coletiva em função das necessidades e dependendo das temáticas. Finalmente, constatamos, de forma surpreendente, que esta ferramenta pedagógica tem utilidades múltiplas no campo educacional, principalmente porque ela possibilitou abordar os conteúdos propostos no curso de forma direta e a aprendizagem se tornou mais efetiva porque se vislumbra uma utilidade prática, visto que a história de cada um está diretamente implícita nos temas estudados.

Palavras-Chave: Diário de Bordo; Psicanálise; Clínica.


 

 

Introdução

O fato de introduzir o Diário de Bordo numa perspectiva clínica de orientação psicanalítica no campo educacional para a formação do futuro professor reforça a necessidade dos tempos atuais de alimentarmos a liberdade para conduzir os estudantes aos seus interesses próprios, uma vez que os "diários guardam uma memória para si próprio ou para os outros, de um pensamento que se forma no quotidiano na sucessão de observações e de reflexões", defende SOLDATI (2005). A autora afirma que o DB se apresenta como "uma ferramenta simples, ligeira e no campo da formação dos adultos ela é de fácil aplicação. Alguns afirmam que ele é adaptável em todos os espaços e a todas as observações" (p. 15) dos humanos, inclusive no contexto escolar. Seu registro escrito é a forma em que ganha forma através da palavra escrita que transforma o senso comum e ajuda a organizar as idéias, o pensamento. De fato, a escrita é uma diretriz do pensamento e serve para decriptar um real partindo de uma experiência pessoal, do vivido, é uma tomada de consciência. Para SOLDATI (2005) isto se resume a uma "ferramenta para se compreender uma realidade psicossocial e cultural de um grupo" e naquilo que nos interessa aqui, os dados psíquicos dos indivíduos. O Eu e o inconsciente assumem um lugar na escritura, escrevemos retornando às vezes sobre nosso passado e certamente interações se dão nesta escrita em que nós mesmos somos os atores.

O DB pode ser, conforme escreve RÉMI HESS (HESS, 1989, apud Myriam, 2005, p. 15), "descritivo, reflexivo, anedótico, pessoal, hipercrítico. O seu autor dá características àquilo que ele observa, às informações que ele recolhe e que ele próprio elabora". O objetivo sempre é de ganhar em reflexibilidade e consequentemente em implicações pessoais. Isto se aproxima das palavras de FREUD (1936) quando aborda a entrada da sua teoria no campo da pedagogia.

Dentre os diversos artigos de Freud sobre este assunto, vejamos o que ele afirma no texto Éclaircissements, applications et orientations, na Sexta Conferência (FREUD, 1936). Para ele o melhor seria que "o educador tenha sido submetido ele próprio a uma análise, visto que, sem experiência pessoal, não é possível assimilar a análise. Mais que a análise de crianças, aquela dos mestres, dos educadores, parece ser uma medida profilática eficaz e a sua realização apresenta menos dificuldade" (p. 197), acentua. Não concordamos que seja menos difícil sua aplicação, apesar de estarmos em pleno acordo com seu caráter profilático.

Em seguida, em sintonia com seus propósitos, ele afirma que a psicanálise no seu início, era um método terapêutico e não gostaria que o interesse da sua ciência fosse canalizado exclusivamente nesta perspectiva (cf. FREUD, 1936, p. 206). Veja citação de parte do seu texto que traduzimos:

"mas de todos os sujeitos estudados pela psicanálise, este é o que nos parece ter a maior importância, visto as magníficas perspectivas que ele oferece para o futuro. Quero falar da aplicação da psicanálise à pedagogia, à educação da geração futura" (p. 193).

Mais a frente no seu texto ele afirma que "é fácil ver como podemos identificar e compreender a importância pedagógica da análise". Isto coincide com as trocas constantes de cartas realizadas entre Sigmund FREUD e Edouard CLAPAREDE do Instituto Jean Jacques Rousseau de Genebra (Veja cartas entre Freud e Edouard Claparede dos arquivos pessoais da Professora Mireille CIFALI, Quelques lettres inédites de Freud à Claparede – 18 de junho de 1920 à 30 de janeiro de 1923) que em nossa opinião contribuiu para o surgimento do movimento internacional denominada de Escola Nova - École nouvelle. FREUD continua afirmando que "é conveniente buscar o ‘optimun’ desta educação . Enfim, a psicanálise esteve por detrás desse movimento ou não? Uma postura clínica estaria presente nos propósito da Escola Nova? Em todo caso, nossa idéia central vai nesta perspectiva de aplicação da psicanálise e cremos estar no "bom caminho" quando introduzimos o DB como uma ferramenta para (conduzir a) fazer falar o interior dos estudantes futuros professores.

No que se refere a uma postura clínica no contexto educacional, retomamos a tese de Mireille CIFALI (2001) em que afirma ser o relato escrito um espaço teórico das práticas. Para a autora, "esta escrita próximo da literatura, que a história e a etnologia também conhecem, poderia ser vista como um dos modos da inteligibilidade das situações da criatura viva" (p. 131). Da mesma forma, Michel de CERTEAU (apud CIFALI, 2001) afirma que "uma teoria do relato escrito – da história de vida – é indissociável de uma teoria das práticas, como sua condição e ao mesmo tempo em que sua produção" (p. 131), retoma CIFALI.

O Diário de Bordo se aproxima da técnica do relato de história de vida, visto que nos dois é processo psíquico inconsciente que se opera, sendo que no primeiro trata-se de uma recordação que surge do efeito – après-coup – das informações técnicas estudadas e apresentadas durante as aulas. Para as histórias de vida, o autor tem um momento de construção interior que se constitui pouco a pouco, no tempo, sem uma temática à priori, ou seja: não há nenhum elemento novo para fazer o desencadeamento de sua construção textual.

Através do Diário de Bordo é possível levar em consideração as particularidades dos sujeitos jovens estudantes em formação. O conteúdo que o professor apresenta é o mesmo para todos os estudantes, respeitando-se a grade curricular da disciplina. Entretanto o impacto deste sobre os alunos tem a ver com as suas diferenças constitucionais e seus conhecimentos prévios a respeito dos temas. Visto que nas profissões de interações humanas nada deve ser dispensado. Retomando o posicionamento de FREUD (1936), ele afirma que "entre outras coisas, não esqueçamos, os diferentes sujeito aos quais nos agimos têm predisposições constitucionais diferentes e o comportamento do educador não deve ser o mesmo para todas as crianças estudantes" (p. 196). Em seu tempo, ele já defendia "a idéia do papel nefasto da educação e que ela (a educação) preencheu sua missão de uma maneira muito defeituosa, que ela prejudicou fortemente as crianças". Isto nos conduz a interrogações sobre a influência efetiva que a psicanálise teve sobre os movimentos pedagógicos existentes da sociedade de sua época. Por exemplo, na Suíça, Edouard CLAPAREDE traduziu as Cinco Lições de Psicanálise em língua francesa (Ver correspondências entre Freud e Claparede nos arquivos pessoais de Mireille CIFALI). Para nós isto pode ter sido "uma semente" semeada que produziu mudanças posteriores nas idéias sócio-educativas no ocidente, principalmente devido ao aparecimento na Europa disto que conhecemos sob o nome de Escola Nova. De fato, existiram eminentes psicanalistas no Instituto Jean Jacques Rousseau, afirma FREUD em uma carta destinada à Claparede datada de 30 de janeiro de 1923 (Arquivos pessoais de Mireille CIFALI). É remarcável o fato que a tomada de posição de Freud vai de encontro às necessidades de mudanças no sistema de ensino e, consequentemente, nas posturas pedagógicas.

A idéia de introduzir o Diário de Bordo para a formação de futuro professor se enquadra nesta perspectiva de Escola Nova, já que para FREUD (1936, p. 197) o melhor seria que o educador se submetesse a um trabalho pessoal de análise. Pelo menos assim ele (o professor) iriaá renunciar aos efeitos de seu poder sobre os alunos, tratando-os como seres pensantes, afirma Kupfer (cf. 1996, p. 98.) e dar-lhes-ia a oportunidade de caminhar e encontrar seus próprios destinos.

Veja que o posicionamento freudiano se abre ao anunciar que no início da sua psicanálise ela era apenas um método terapêutico e FREUD pronuncia explicitamente que seu interesse não se limitasse exclusivamente nesta utilização (cf. 1936, p. 206). Nesta perspectiva, e fiel ao mestre, cremos estar no bom caminho introduzindo o Diário de Bordo como uma ferramenta útil para o campo educacional que retome a perspectiva clínica de orientação psicanalítica e possibilite também aplicação da psicanálise no campo educacional.

Para CIFALI (2001) "uma formação para a conduta clínica é pesada psiquicamente, ela não tem de ser constante", pois para a autora "todo sujeito se constrói através dos fragmentos de sua história pessoal" (p. 130) essa que o Diário de Bordo vem revelar enquanto uma metodologia indispensável em qualquer profissão de humanos.

A formação nesta perspectiva busca mais o movimento psíquico no interior do sujeito aprendiz do que uma posição estática e estável pautada na aquisição de um conhecimento e no decorar de uma teoria. Durante o momento de realização do Diário de Bordo espera-se que ao produzi-lo cause movimento interno: para compreender, para se distanciar, para discernir o problema, para se reconhecer no processo e também para adquirir uma identidade. Espera-se que se re-elabore a teoria, que isto possa gerar conflitos, que produza inquietação, descontentamento; isto é o movimento implícito esperado durante a produção dos Diários.

Apesar de KUPFER (1996) afirmar que "não há método de controle do inconsciente" (p. 75), constatamos que através dos DBs seja possível fazê-lo manifestar de forma analógica àquela prevista na clínica tradicional e seu efeito na formação de futuros professores é positivo por vários aspectos. Por exemplo, a força da palavra escrita tem impacto direto sobre aquele que a produz ou que a escreve.

Gilles HOULE (1993), na obra L'analyse clinique em sciences humaines: pour une epistemologie practique, afirma que "o jornal de bordo é inteiramente instrutivo a este respeito, pois que podemos observar nele in vivo para dizer a subjetividade em atividade, diferentemente da obra acabada que visa a objetividade" (p. 51). Para nós o Jornal de Bordo e o Diário de Bordo são sinônimos e o autor o compara a uma obra acabada. Ele continua dizendo:

"comparar o jornal à obra acabada permitiria descrever este movimento do conhecimento sobre o prisma de uma subjetividade que busca se disciplinar até a objetividade construída deste movimento que Bateson e Mead definiam como clínico até o espaço teórico construído" (p. 52).

Para Françoise WEBER (apud HOULE, 1993, p. 52) isto recobre na realidade um conjunto complexo de práticas de escritura, em que as funções e os estatutos são múltiplos, e folhetos escritos, que os destinos são diferentes.

De fato, "não basta que o aluno, futuro professor, fique apenas com o conteúdo ensinado", afirma MRECH (1999). É necessária uma implicação pessoal sobre o que está sendo apreendido. Isto é o que se espera num modelo de educação transformadora, ou seja, este conteúdo apreendido tem que se encontrar com a bagagem histórica do aprendiz. Já nas palavras de MRECH "é preciso que ele estabeleça um saber a respeito do que é ensinado" (p. 8). Ao introduzir o Diário de Bordo é este efeito que encontramos e que percebemos. O aluno que no início afirma um nada saber sobre o que o professor tem a dizer se materializa nos Diários de Bordo num material de riqueza incalculável fruto de uma transformação. Em hipótese, dá-se um engajamento no seu destino de futuro professor transformador de outros estudantes, e de outras pessoas.

Assim como nos trabalhos de grupo de educadores de GIUST-DESPRAIRIE (2000) o Diário de Bordo nos convida a uma abordagem que privilegia o interior dos "processos de subjetivação" (p. 45). Isto nos remete às perspectivas da Escola Nova descritas pelo Boletim do Centro de Documentação e Pesquisa Helena Antipoff – CDPHA (ler principalmente artigo de Martine RUCHAT, 2004, pp. 8-16), em que Edouard Clapared et Helena Antipoff nos relatam com clareza a necessidade da existência de uma escola diferenciada, ou seja, a mesma posição descrita em MRECH (1999), uma escola "direcionada à singularidade de cada um e de cada sociedade" (p. 35). Ora, nada mais pertinente que uma "história de vida" ou um jornal íntimo para remeter às singularidades dos indivíduos. Quando nos referimos à formação de adultos, isto se torna mais emergente, pois, por um lado eles serão futuros transformadores de jovens escolares pensadores.

Aquele modelo denominado Escola Nova já previa isto, entretanto, como nos anunciou com bastante perspicácia OHAYON, OTTAVI, & SAVOYE (2004) na introdução do livro intitulado L'Éducation nouvelle, histoire, présence et devenir, não se sabe, portanto, porque nem a psicanálise e nem os seus conceitos não foram explicitamente citados juntamente com essa perspectiva desde os finais do século XIX. Apesar de a sede deste movimento se encontrar em Genebra-Suíça, o Instituto Jean Jacques Rousseau não foi o único a propor mudanças nos paradigmas educacionais. De fato, o próprio FREUD sentia isto, pois se posicionou como um profeta, ao escrever que diferentes técnicas de intervenção sobre o humano "ignoram voluntariamente, às vezes, a psicanálise", por exemplo. (FREUD, 1936, p. 191.).

As terminologias "aprender a aprender" ou "construção e descontrução do saber" se encaixam perfeitamente no que propõe a psicanálise quando entra no campo educacional. Seja de origem paulofreiriana ou lacaniana, ou outra, o desejo em buscar o conhecimento é o que a psicanálise propõe na gênese de qualquer construção intelectual. Por isto, para a fórmula aprender a aprender afirmamos que aprender vai muito além do que pretendem os construtivistas, os interacionistas – e até mesmo as diretrizes da ONU sobre os pilares da educação – pois que desejar a aprender sustenta o que se transformará no aprendiz em uma aprendizagem efetiva.

Como já se pode constatar o interesse deste ensaio é demonstrar que o DB pode ser utilizado como uma ferramenta pedagógica na formação de professores. Muitos trabalhos e reflexões têm sido desenvolvidos atualmente confirmando que a partir da psicanálise opera-se uma leitura das realidades do contexto educacional e sua aplicação é possível, certamente com um pouco de reservas.

Justamente no momento em que as crises dos paradigmas atingem seu ápice, descortinando-se o véu que encobriu o legado das estruturas psíquicas descritas por FREUD no tempo em que as estruturas familiares se organizavam de certa forma. E hoje, como retratam Joel BIRMAN (2000) e JERUSALINSKY (2000), a função paterna recebe um "golpe baixo" e se organiza sobre uma nova forma de subjetivação. KUPFER (2001) trata sobre esta questão com propriedade quando discute sobre uma Educação para o Futuro, ela afirma que "o enfraquecimento do pai no mundo moderno já fora antecipado por Freud. Disso decorre uma enorme carência de eixos, de balizas para a ação de qualquer educador, que perdeu sua posição e sua autoridade" (p. 120 e seq.). Consequentemente as estruturas sociais se desorganizam no plano global: o papel simbólico da lei, a da função do pai, desaparece, os valores se reorganizam frente à pós-modernidade e a era digital. Enfim, e o sujeito? O sujeito não morre, ele persiste, não se acomoda e não se aliena apesar de o social persistir na sua organização: enfim quais destinos dar às pulsões insatisfeitas, o que fazer com isto? Talvez o propósito freudiano sobre as formações substitutas possa lançar luzes nesta perspectiva.

Ao introduzir o Diário de Bordo, não se pretende entrar nas "profundezas psíquicas" de nossos alunos. Não é este nosso intuito. Eles não estão ali para falar e debaterem sobre suas histórias. Entretanto, nessas profissões de relação de humanos, nada nosso escapa. Estamos implicados e implicamos o outro constantemente, isto é impossível de evitar. A ética no trato deste material merece nossa atenção, pois que se trata de uma relação a dois que se configura na construção conjunta de um saber a respeito da transformação de pessoas. O filme Sociedade dos poetas mortos retrata esta idéia: educar para que o outro encontre o seu caminho, à sua maneira, para obter os seus prazeres.

O trablho de GIUST-DESPRAIRIES (2000) citado acima, sobre a formação de professores, vai de encontro à nossa perspectiva, pois a autora retrata de forma magistral os impasses de uma proposta pedagógica com profissionais em exercício. Sua abordagem visa "revelar comportamentos, funcionamentos e discursos e de colocar um conjunto de significações no nível de legibilidade das problemáticas inconsciente, das construções imaginárias" (p. 16).

Na nossa experiência, constatamos que ao ingressarem na universidade observamos que um número muito pequeno de estudantes está consciente do verdadeiro papel social em se tornar um educador. Visamos fazê-los questionar sobre sua participação neste espaço chamado educação, pelo fato de terem apagado nas profundezas inconscientes as crianças que foram e não terem vivenciado uma situação de sala de aula.

De fato este é um impasse freqüente na formação de professores porque, devido a suas faixas etárias, suas dificuldades em assumirem a profissão de "ser professor" aliado ao descrédito e enfraquecimento coletivo, social e econômico dado à profissão professor, nossa missão em atuar nas constituições imaginárias ficam aquém disto.

Esta estratégia do DB vai além de uma simples transmissão de conceitos e teorias psicanalíticos, pois que o aluno, futuro educador, é constantemente convidado a se implicar com os seus resíduos para se compreender os conceitos estudados na sala de aula, sem dúvida que os efeitos desses procedimentos se aproximam do que KUPFER (2001, p. 119) identificou e os denominou "de efeitos que podem ser de angústia, de atuação, defensivos". Sem, contudo, transformar professores em terapeutas:

"não se trata, portanto, de criar uma nova disciplina, a pedagogia psicanalista. Não se trata também de transformar professores em analistas. Professores e analistas, aliás, ocupam posições bastante antagônicas entre si [...]. Resta, assim, transmitir a psicanálise ao educador, como parecem entender os que, nos dias de hoje, estudam o tema. Mas, o objetivo dessa transmissão não é, como no tempo de Anna Freud, aplicar esse conhecimento diretamente no trato com os alunos. A transmissão da Psicanálise ao educador poderá, então, produzir efeitos de natureza diversa na postura do professor" (KUPFER, 1996, p. 76).

O que podemos constatar na literatura sobre esta temática é que poucas estratégias têm sido propostas na formação de educadores: fala-se sobre o impacto do psiquismo no campo educacional, mas muito pouco tem sido proposto enquanto métodos ou metodologias para formar profissionais nesta diretriz. Grupos operativos (Balint) são opções interessantes, que se caracterizam como um método possível de atingir os mesmos propósitos que apresentamos.

Além do impacto positivo do DB para a compreensão dos fenômenos que se operam no campo educacional, esses DBs induzem os participantes a fazerem interpretações de outras experiências vividas em outros campos das relações humanas, fazendo desaparecerem sintomas. A intenção das aulas é de se tornar uma ferramenta útil para as relações humanas em geral e favorecer uma boa relação entre o professor e o aluno mediado pela manutenção da distância ideal para facilitar tanto o processo de ensino como o de aprendizagem.

Parafraseando KUPFER (2001, p. 120) a ação de uma aula tem que ser útil e organizadora. A verdade, de fato, deve ser sentida interiormente, vir de dentro. Na realidade, FREUD (1927a) propõe no seu texto O futuro de uma ilusão que "a psicanálise constitui um método de pesquisa, um instrumento imparcial" (p. 50). Ele reforça a importância do trabalho de forma geral na economia da libido e afirma que "nenhuma outra técnica para a conduta da vida prende o indivíduo tão firmemente à realidade quanto a ênfase concedida ao trabalho, pois este, pelo menos, fornece-lhes um lugar seguro numa parte da realidade, na comunidade humana" (FREUD, 1927b, O mal estar na civilização, Nota de página, p. 99). E porque não, na educação?

Pensando na profissão de educador, que é o caso deste público em questão, o investimento realizado se sustenta por dois elementos. Por um lado, o desenvolvimento dos indivíduos baseado em princípios eleitos pela sociedade que são nobres, a Educação Escolar; e por outro, favorecer a preservação e fortalecimento da sociedade. Para FREUD, por exemplo, esta técnica possibilita "deslocar uma grande quantidade de componentes libidinais, sejam eles narcísicos, agressivos ou mesmo eróticos, para o trabalho profissional, [principalmente] e para os relacionamentos a ele vinculados, empresta-lhe um valor que de maneira alguma está em segundo plano ao de que goza como algo indispensável à preservação e justificação da existência em sociedade" (1927b, p. 99).

Acreditando-se que a escolha em se tornar professor seja uma opção pessoal no caso de alunos inscritos em cursos de licenciatura, concordamos com FREUD que "a atividade profissional constitui fonte de satisfação especial, se for livremente escolhida, isto é, se por meio de sublimação tornar possível o uso de inclinações existentes, de impulsos instintivos persistentes ou constitucionais reforçados" (1927b, p. 99). Finalmente, e um grande número de profissionais da educação não está engajado no processo educacional de transformação dos indivíduos com o interesse em ver no futuro uma sociedade mais justa. De fato, "a grande maioria das pessoas só trabalha sob a pressão da necessidade, e essa natural aversão humana ao trabalho suscita problemas sociais extremamente difíceis" (FREUD, 1927b, p. 99).

Confirma-se pela psicanálise que "todo sujeito se constrói através dos fragmentos de sua história: o processo analítico parte de rudimentos, de acontecimentos descontínuos e sem ligação aparente, de lacunas, para construir uma continuidade, uma coerência e, finalmente, uma história de vida, na qual o sujeito se encontra sem, com isso, ser capaz de compreendê-la" (CIFALI, 2001, p. 131). E ao final CIFALI questiona por que o relato – que é condição da memória – e que contribui para a construção do sujeito é raramente evocado?" Questionamento que nos inquieta pois, constata-se a sua eficácia.

Podemos encontrar no Diário de Bordo a posição de CIFALI (2001, p. 132) quando afirma que "toda realidade é reconstrução, que há no relato não só compreensão, mas também explicação, e que a singularidade da situação narrada pode atingir o geral, onde muitos se reconhecem". A autenticidade é evidenciada nos Diários de Bordo.

É fato a influência de Mireille CIFALI sobre esta proposta. Por um lado [faz tempo que ela o utiliza] sistematicamente o relato em um curso ex-cátedra [em que avalia] seus efeitos e o modo como ele [o relato] se alia aos desenvolvimentos teóricos, apela a argumentação, à discussão e mesmo ao comentário [Cifali também se indaga, se questiona e] se este tipo de escrita já pode ser promovido na formação inicial e com que benefício.

CIFALI (2001) considera outras práticas de escrita, por exemplo, a do diário de campo que acompanha o confronto com o saber. Cinco anos depois ela explicita suas ambições com a prática do diário na formação de professores: "nele escreve-se o acessório necessário à construção de um saber em que o sujeito não é separado de seu objeto. Desejo com isto desenvolver tais práticas de escrita como modo de construção da experiência e, sobretudo, preservar em cada um o gosto pela escrita", afirma CIFALI (2001, pp. 134-135). E por que não considerar esta perspectiva enquanto uma ampliação e aplicação da psicanálise? Enfim, conclui CIFALI, (1996), "com o tempo tomei consciência da força desta escrita".

Em conclusão, a elaboração de um Diário de Bordo vai propiciar uma interação construtiva na relação com o professor por intermédio de dois elementos: por um lado, os conteúdos específicos da disciplina em questão, em jogo, que é o tema central que traz o aprendiz para o campo desta aprendizagem, desta nova aquisição. Por outro lado, o material psíquico, histórico, inconsciente que ganha forma através da palavra escrita, se atualiza e se materializa nesta textualidade. Escrever é um projetar-se para diante de si aquilo que adormecido jaz no interior de cada autor. É uma exposição interna de idéias e ideais que se inscrevem num espaço social presente resgatando e reconstruindo a história daquele que a escreve. Por isto, a liberdade necessária para a produção do Diário de Bordo se configura pelo quanto ele se distancia do rigor acadêmico e científico. O Diário envia o autor para um outro lugar. Sem dúvida que o interesse é de fazer o "escritor" manifestar sua angústia frente ao racional da inteligibilidade percebida no campo da aprendizagem. Outros pontos que sobressaem daí e que devemos considerar indispensáveis nas relações de humanos são: a presença e o contato entre os atores envolvidos, a autenticidade na relação recíproca entre professor e aprendiz, a fiabilidade na relação, a confiança e o respeito. Frente às dúvidas sobre os efeitos (reativos) sobre aquele que escreve e como se dá esta formação reativa, encerramos com esta citação de Mireille CIFALI (1996) dizendo que isto pode se configurar nos seguintes movimentos: "falar de formação pela passagem pela escrita, é concluir que os benefícios são tanto no plano do saber como no pessoal" (p. 10).

 

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