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On-line ISBN 978-85-60944-08-8

An 6 Col. LEPSI IP/FE-USP 2006

 

O sujeito e o copista: uma discussão sobre o impedimento na escrita

 

 

Rejane B. RubinoI; Ilana Katz Zagury FragelliII

IFonoaudióloga do Serviço de Patologia da Linguagem da Derdic, professora da Faculdade de Fonoaudiologia da PUC-SP, Mestre em Lingüística pelo LAEL/PUC-SP. rrubino@pucsp.br
IIPsicanalista, membro do Setor de Psicologia da Derdic, Mestre em Psicologia Escolar pelo IP-USP, Doutoranda na FE-USP

 

 


RESUMO

A criança copista, ao reproduzir a escrita do outro sem poder lê-la, manifesta um sintoma que tem ao mesmo tempo uma vertente social e uma vertente singular. De um lado, uma escola que solidifica a exclusão em relação ao conhecimento e, de outro, um sujeito que se apresenta em uma posição particular que produz impedimentos no acesso à escrita, uma vez que a produção da escrita alfabética exige atravessamentos lógicos de âmbito subjetivo. Como abordar esse sintoma a partir do entendimento de que ele diz da posição do sujeito e, ao mesmo tempo, responder à urgência de que essas crianças leiam e escrevam antes de serem decretadas analfabetos funcionais? O presente trabalho tem como objetivo discutir esta articulação.

Palavras-chave: sintoma; escrita; crianças copistas.


 

 

Neste trabalho, tomaremos como ponto de partida uma experiência clínica desenvolvida na DERDIC1: o atendimento, conduzido em conjunto por uma fonoaudióloga e uma psicanalista, de um grupo de crianças com dificuldades na escrita.

Parte significativa da população que procura atendimento na DERDIC faz, em sua queixa, referência ao fracasso escolar. No que diz respeito à escrita, são crianças que não lêem, crianças que só copiam, que não estruturam um texto, que fazem substituições e omissões de letras, etc. Estas são manifestações que tocam nas vertentes social e singular de um mesmo sintoma.

No que diz respeito à sua vertente social, é importante lembrar que a Lei 9394, em seu texto, propõe uma "avaliação contínua e cumulativa do desempenho do aluno, com prevalência dos aspectos qualitativos sobre os quantitativos e dos resultados ao longo do período sobre os resultados de eventuais provas finais" (www.cee.sc.gov.br/lei9394). O que a lei determina é uma outra modalidade de avaliação, em que o valor do processo de aprendizagem se sobrepõe aos resultados das avaliações formais. Trata-se de uma proposta que decorre do esforço de conter a evasão escolar, fenômeno instituído na escola pública.

No entanto, como observa Sartori (2005) ao analisar o fenômeno da violência na escola, a lei acaba por vigorar de forma caricata: "Na lei não está dito que um aluno está automaticamente aprovado, mas é esse caráter de "automático" que parece atrair as possibilidades de equívoco. (...) a proposta (...) de "progressão continuada", (...) é significada no discurso corrente como uma proibição: é proibido reprovar." (op. cit.: 14). Trata-se de uma leitura degradada da lei, que termina por degradar o professor. A esse respeito, Sartori comenta: "A certeza antecipada da aprovação (...) promove efeitos desagregadores no interior da relação professor e aluno, aluno e escola, escola e professores. O aluno é capaz de se negar a fazer uma prova, pois sabe que não depende dela para passar, ele faz ‘aquela prova’ de recuperação à qual tem direito e passa. Assim, a falta cometida é subsumida a um ‘direito conquistado’ pelo estudante e que ele deve fazer valer... A referência a ‘ter o direito de’ é curiosa e intrigante, pois há uma verdadeira inversão da noção de direito. Trata-se de uma postura reivindicadora, partidária de um discurso em prol da cidadania, mas há algo de cínico nessa montagem, e é nela que podemos situar a violência como um sintoma, tal como a psicanálise o trata, ou seja, trazendo uma verdade que precisa ser nomeada." (idem ibidem).

A diferença entre o que está escrito na lei e o modo como ela foi estabelecida discursivamente faz com que repetidamente ouçamos pais e professores se referirem ao fracasso escolar como fracasso da escola. O professor, como representante da escola, goza de sua destituição: "Não posso fazer nada". Algo se institui para o professor nos moldes de "Se não posso avaliar, como posso ensinar?". Também os pais se queixam da inoperância da escola. A "aprovação automática" assume o contorno de uma ausência de investimento no aluno, de uma "desistência", como se ela decretasse que se trata de uma criança que não pode mesmo aprender. A mãe de Roberto, um de nossos pacientes, diz "A professora deste ano tem bronca do menino, fala que ele é ruim em tudo. A do ano passado era tão legal... ela até ofereceu a repetência".

A nosso ver, a escola participa da construção sintomática do assim chamado fracasso escolar. Queremos dizer com isso que o discurso social tem efeitos sobre a montagem do sintoma pelo sujeito. No entanto, muitas articulações singulares são possíveis em resposta a isso que vem do Outro. No nosso entender, o sintoma só se articula a partir da posição do sujeito. Em termos lógicos isso equivaleria a dizer que nem todas as crianças expostas a essa produção discursiva apresentam essa construção sintomática. É nesse sentido que sustentamos a hipótese de que, na clínica, a leitura da posição do sujeito será indispensável no estabelecimento de uma direção de tratamento.

Esse entendimento está alicerçado na idéia de que para escrever de acordo com a norma culta, ou, dito de outro modo, para escrever de modo a permitir que ao menos um (que não aquele que escreveu) possa ler o que está grafado, é preciso que alguns atravessamentos lógicos tenham sido feitos no âmbito subjetivo. Desse modo, diante de uma criança que não consegue ler ou escrever, não basta que o clínico leve em consideração aquilo que é relativo à funcionalidade da língua; é preciso ainda considerar as condições necessárias que sustentam a escolha – relativa ao sujeito do inconsciente – de uma articulação sintomática neste e não em outro ponto.

Neste trabalho, discutiremos uma articulação sintomática particular que temos observado na clínica com uma freqüência bastante significativa: os copistas. São crianças que se encontram na 4ª ou na 5ª série do Ensino Fundamental, ou mesmo em séries mais adiantadas, e que, excluindo-se o fato de copiarem muito bem aquilo que o professor lhes pede, algumas vezes com caligrafia impecável, não podem propriamente ler e escrever. A referência ao "copismo" muitas vezes se faz presente na queixa dos pais: "Ele não sabe ler nem escrever. Só copia."

Inicialmente, descreveremos alguns episódios do atendimento em grupo dessas crianças.

Jogamos "Pingo no I", um baralho de cartas que, no lugar dos números tradicionais, apresenta as letras do alfabeto. O objetivo do jogo é, a partir das cartas que vão sendo gradativamente abertas sobre a mesa, formar palavras de no mínimo quatro letras. Uma das terapeutas começa a escrever FELIPE. Roberto, um dos pacientes, comenta: "O que você está fazendo é o que eu ia escrever". Em outro momento, a mesma terapeuta escreve NAVIO e Roberto diz: "Eu também estava pensando nesta!"

Nessa sessão, Roberto oscila entre dois movimentos. Um é este, em que parece sempre apoiar sua produção na da terapeuta, o que, nesse caso, seria dizer que ele apóia sua não-produção no produto apresentado pela terapeuta. A palavra do outro interrompe o pensamento de Roberto. O outro movimento desse paciente é, diante das letras disponíveis na mesa, articular mentalmente uma palavra e fixar-se nela, aguardando a letra faltante. Ele diz: "Eu tô com uma [na cabeça], mas tá faltando". Por exemplo, se há sobre a mesa as letras B, O e A, Roberto se prende à letra L como a única alternativa de ligação dessas letras, permanecendo à espera de uma carta com esta letra. Se um jogador vira uma carta com a letra T ou a letra C, por exemplo, ele não consegue rearticular os termos para formar uma palavra diferente daquela que pensou originalmente. Um elemento novo não pode reordenar seu pensamento.

Na mesma sessão observamos a seguinte situação: Há sobre a mesa algumas palavras já formadas, entre elas URSO (escrita por uma das terapeutas), e algumas letras soltas disponíveis para a organização de novas palavras. Diante disso, Roberto lança mão de um recurso que parece sofisticado em relação às suas possibilidades: ele utiliza uma carta disponível na mesa (um F) para liberar um coringa – que fazia o papel de F numa palavra já formada, e o utiliza para copiar a palavra URSO. O movimento de Roberto, seguindo letra a letra a confecção da sua palavra em relação ao "modelo" não deixa dúvidas de que está copiando. Copiando aquilo que já escrevera mentalmente. Por quê? Qual valor a imagem assume nessa situação?

Roberto tem 12 anos e está na quinta série. À diferença de outras crianças copistas, ele consegue compor palavras atribuindo valor sonoro às letras nas situações em que retiramos o que poderia funcionar como modelo. No entanto, diante de qualquer vestígio do que poderia servir como modelo, Roberto recorre de modo insistente à cópia.

Em outro jogo (Imagem e Ação), Roberto lança mão da cópia para escrever na lousa as palavras já adivinhadas no jogo. Vai à lousa com as cartelas do jogo na mão, recorrendo ao modelo para escrever, por exemplo, a palavra TELEFONE. Pouco depois, a terapeuta passa a recolher as cartelas do jogo, logo que estas tenham sido utilizadas. Roberto vai à lousa sem o apoio do modelo e escreve QUEBRA-CABEÇA, sem mostrar dificuldades.

Nosso entendimento dos episódios ilustrados acima é que, no caso de Roberto, a produção da escrita é constrangida pela oferta de uma imagem. Esse dado observável, por si só, permite formular uma pergunta em relação à escola, que com tanta freqüência produz alunos copistas: qual o lugar que se reserva para a criança diante da oferta freqüente de modelos produzidos na lousa pelo professor?

O que nos levou a tomar Roberto em atendimento foi menos a sua condição como escritor do que a sua condição como leitor. Na situação de ditado, Roberto comete erros, mas é capaz de reproduzir o texto solicitado. Porém, diante do texto produzido pelo Outro, apesar de encarar relativamente bem a tarefa de decifração, fracassa na articulação de sentido. Mesmo quando se trata de ler aquilo que ele próprio escreveu, Roberto escapa da tarefa. Na situação em que lhe é solicitado que escreva sobre a diferença entre figuras, fica claro que, para ele, a imagem se sobrepõe à escrita: embora tenha escrito algumas frases, Roberto não as lê; ao invés disso, descreve oralmente a diferença entre as figuras, sem fazer uso do que escreveu. Ele explica: "tem umas que eu fiz no pensamento".

Por que Roberto pode escrever e não pode ler? O que tornaria possível para um sujeito copiar uma escrita sem poder ler? Por que esse sujeito opera de modo a mimetizar a escrita de um outro qualquer e não se ocupa em denunciar sua incompetência? Para o que apontam a inoperância da escrita de próprio punho ou o fracasso da leitura?

Na história da escrita, os desenhos assumiram o valor de letras. Produziu-se o apagamento de algo da imagem para que houvesse escrita: a letra alfabética se funda no apagamento de sua origem pictórica.

No sistema alfabético, isso se mantém, pois, para ler, é preciso negligenciar o valor pictórico das representações (sejam gráficas ou imagéticas). Na escrita hieróglifa, por exemplo, o desenho de um gato não representa mais esse animal. "Gato" entra na composição de uma palavra mais complexa a partir do seu valor sonoro. Na escrita alfabética esse princípio também deve ser seguido, pois, caso estejamos presos ao desenho de cada letra, não poderemos ler ali nada além de formas; ao invés da letra S, veríamos, no máximo, o desenho de uma minhoquinha. A operação que torna isso possível ao sujeito é o recalque da imagem.

Como afirma Pommier (1993: 203), "A escrita e a leitura pedem uma colocação do recalque sem a qual aquele que vê os signos ficará preso à sua forma e conseqüentemente não chegará a extrair seu valor literal, que subsiste somente no apagamento da imagem." (tradução nossa)

Isso é de grande importância em relação ao fenômeno que abordamos aqui, uma vez que para copiar, não é preciso contar com o apagamento da imagem da letra e sua subseqüente articulação ao valor sonoro. O sujeito copia desenhos, e, no mesmo gesto que impede o sistema alfabético de funcionar, fica subordinado ao enunciado. Nessa medida, só pode fazer valer a vertente imaginária do significante e, por conseqüência, terá problemas em fazer operar a lei da linguagem (Santiago, 2005).

A figura 1 permite observar o modo como Ronaldo, um outro paciente, mantém o desenho da grafia de cada um dos tipos de letras empregadas na montagem de um texto, ao mesmo tempo em que não recorre ao sentido para organizar a sua cópia (como sugere o fato de que ele pula uma passagem do texto a ser copiado). À diferença de Roberto, Ronaldo se embaraça e não pode permitir o funcionamento do sistema alfabético. Na sexta série, ele é uma criança que não lê e que escreve apenas o próprio nome.

 

 

Nossa hipótese é a de que nesses sujeitos há um alargamento imaginário que tem como efeito uma compressão do registro simbólico. Vamos nos deter neste ponto.

A inibição se apresenta como um estancamento do pensar, e o pensamento, já em termos freudianos, está ligado ao sexual. A curiosidade é, em sua origem, curiosidade sexual. A pergunta que as crianças fazem é "De onde vem os bebês?". As derivações dessa pergunta são importantes para que entendamos como essas coisas se articulam: "Por que não é possível fazer bebês sozinha? Se é preciso mais de um, poderei eu ser esse outro para minha mãe?" A inflagem imaginária na base de uma inibição comparece então como resposta que o sujeito produz para dar conta do impasse relativo ao sexual, que se apresenta a partir do Real. O sujeito se perguntaria algo como: O Outro é completo? Eu tenho condição de completá-lo? De que modo vou dar conta do que falta no Outro e, portanto, em mim? E, na montagem de uma inibição, responderia ao inexorável dessa falta interrompendo toda e qualquer atividade pensante. O sujeito produz impedimentos, nos mais diversos graus, que suspendem qualquer movimentação que pudesse levá-lo ao encontro desse impasse. A escrita paga o preço de sua relação ao sexual.

Uma outra maneira como o sujeito pode tratar a incompletude do Outro, isto é, manejar a sua sobrevivência a partir do encontro com o Real, é responder com a atividade simbólica, na qual o pensar está incluído. É de novo Freud (1910) quem formula a idéia de que um pesquisador foi certamente uma criança que deu seguimento à curiosidade a respeito de sua origem.

Vamos, portanto, partir da idéia de que o texto é uma tentativa de resolver este impasse que tem sua origem no Real e que atravessa o sujeito.

O que constatamos na clínica é que, se o sujeito não puder dar prosseguimento à relação com a incompletude do Outro (se o sujeito não puder suportar que não terá fixidez eternizada na posição de objeto enganador do desejo da mãe), terá de pagar com o próprio corpo para se manter nesse lugar. Nosso paciente, copista, parece gozar disso: de se forçar a estar no lugar daquilo que ele sabe que falta, como medida necessária para garantir seu lugar no desejo do Outro (Fragelli, 2005). Trabalhamos com a hipótese de que ele põe o corpo no lugar do texto. O sujeito se oferece inteiro para resolver o impasse ao qual a falta no Outro o submete.

O copismo aparece, portanto, como um fenômeno presente em configurações clínicas em que, a despeito de haver inscrição significante, a inflagem da vertente imaginária na organização subjetiva comprime o funcionamento do sujeito. Trata-se de uma inflagem que cumpre a função de não permitir ao sujeito a interpretação das marcas recebidas, e é assim que o sujeito não arma as condições necessárias para a escrita alfabética. A separação entre sujeito e Outro falha, e a inscrição significante se organiza de modo a não descontinuar o Outro materno: um Outro excessivamente preenchido, que articula o sujeito na garantia dessa sua condição.

A inflagem imaginária aparece como um recurso disponível, na medida exata em que cumpre a função de, do ponto de vista do sujeito, ocupar os espaços que, porventura vazios, fariam um chamado ao funcionamento simbólico. Queremos destacar o seguinte: as crianças que atendemos se esforçam para restituir o Outro da mesma falta que a movimentação da língua coloca em jogo. E isto não é pouco.

Isto introduz uma pergunta: por que a movimentação da língua (própria à neurose) impõe o encontro do sujeito com a falta?

Um modo de entendermos essa construção, no que diz respeito à escrita, é considerar a idéia de que a escrita alfabética, para fazer valer o seu funcionamento, requer o sentido. E, na formulação da psicanálise, esse sentido é fruto da operação fálica, conseqüente à instalação do recalque. É isso o que proporciona a instituição das diferenças no interior do sistema alfabético. Veja, o que define a letra A é a pura diferença que há entre A e as outras letras do alfabeto. A é não-B, não-C, etc. E é também a operação fálica que marca no registro Simbólico o funcionamento do sujeito como desejante, ou seja, como submetido à falta.

O impedimento sintomático na relação do sujeito com a escrita preserva um certo grau de submissão ao funcionamento lingüístico: são crianças que falam, conhecem as letras, são capazes de alguma decifração, etc. Porém, a curta extensão da produção escrita aponta para um certo acordo de cavalheiros entre sujeito e Outro. Ao copiar, o sujeito pode deixar o urso dormindo. Ele oferece, no eixo do impedimento que constitui, aquilo que imagina que é demandado pelo Outro, e salva a sua pele. O sintoma na escrita serve à condição do sujeito de submetimento ao gozo do Outro. É nesse sentido que sustentamos a idéia de que o impedimento relativo ao sistema de leitura e escrita é um sintoma do sujeito.

Como abordar um sintoma que oferece esse tipo de amarra ao sujeito? E ao mesmo tempo, como responder à urgência de que essas crianças leiam e escrevam antes que sejam definitivamente decretadas analfabetas funcionais? Este ponto de articulação é precioso para o nosso trabalho.

Partimos do entendimento de que a criança copista, que lê no Outro essa demanda de preenchimento, reedita essa interpretação diante de todo aquele que se encarrega de representá-lo. A criança, então, irá responder produzindo um recolhimento, uma interrupção da sua atividade desejante.

Nesse caso, como ofertar alguma mobilidade lingüístico-discursiva sem que o Outro assumisse o lugar de articulador de uma demanda paralisadora? Ainda que a psicanálise ofereça instrumentos adequados ao manejo da transferência no tratamento, o que ela propõe como abordagem do sintoma não responde à urgência de que essas crianças leiam e escrevam. A fonoaudiologia, por sua vez, conta com uma longa trajetória de trabalho com os chamados distúrbios de leitura e escrita, mas, usualmente, não opera a partir de hipóteses que articulem o impedimento no acesso à escrita e a posição subjetiva da criança. O que um trabalho construído entre esses dois campos poderia oferecer como resposta terapêutica ao sintoma específico das crianças copistas?

Fizemos a hipótese de que um trabalho em grupo permitiria diluir a presença maciça e demandante do Outro para o sujeito e que isso poderia produzir maior mobilidade em relação à sintomatologia: um Outro representado como menos exigente ofereceria mais espaço ao sujeito. Consideramos também a perspectiva de que o grupo se oferecesse como anteparo à demanda que vem do Outro: ali, a formulação de pedidos seria direcionada ao grupo, e não a cada uma das crianças. Tal procedimento ofereceria a garantia de que a tarefa fosse realizada a partir da negociação daquilo que de cada um iria entrar no jogo, e quando. Esse dispositivo é animado por uma convocação por parte dos terapeutas para que alguma atividade se realize, mas, para isso acontecer, não é preciso que todos façam a mesma coisa, arrisquem o mesmo tanto, ou dêem algo de si para produzir uma resposta à demanda.

Na mesma direção, a presença constante de dois terapeutas no grupo foi formulada a partir da idéia de que cada um deles tivesse a função de fazer limite ao acesso do outro adulto a cada uma das crianças. Há o direcionamento, por exemplo, de que os terapeutas falem entre si ou se interroguem diante das crianças, ao invés de fazer demandas diretas.

A hipótese que conservamos aqui é a de que a experiência na transferência do recolhimento do Outro, e sua conseqüente apresentação em posição diferente daquela em que o sujeito está acostumado a esperá-lo, possa dar espaço para o sujeito reinstalar-se em sua atividade desejante e, ao depositar seus significantes, como efeito de tal atividade, possa ler e escrever.

Esse trabalho não se propõe como tratamento analítico, mas a psicanálise aqui oferece instrumentos de leitura da posição do sujeito e da sua relação com a escrita para que a transferência seja manejada favoravelmente na abordagem da língua.

Trata-se de um trabalho recente. A clínica com os pacientes copistas ainda não nos ofereceu condições de produzir respostas, mas, ao contrário, tem orientado a construção de uma série de perguntas a partir do encontro com o grupo e com cada um de seus integrantes.

O tratamento que propomos no eixo lingüístico-discursivo tem uma ação, já constatada, no funcionamento simbólico. As crianças, pouco a pouco, estendem as suas cadeias discursivas e encontram lugares para o texto escrito. É possível depreender que algum efeito sobre o sistema de leitura e escrita é alcançado na realização desse dispositivo. Ainda temos pela frente um percurso significativo de formalização desses resultados no que diz respeito à relação de nossos pacientes com a língua. Além disso, temos uma questão teórico-clínica acerca do alcance desses efeitos que, hoje, podemos formular nos seguintes termos: Será possível ao sujeito encontrar lugar, nisso que o trabalho abre como possibilidade no funcionamento simbólico, para responder ao impasse que o Real lhe apresenta? Será que nosso trabalho poderá oferecer condições de possibilidade para o sujeito tratar a intransponível falta no Outro através da escrita, fazendo texto? A resposta para essa questão – e provavelmente outras perguntas – virão do acontecimento da clínica.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

FRAGELLI, I.K.Z. (2005) A escrita na fobia e na debilidade. In: Associação Psicanalítica de Curitiba em Revista, v.1, n.11, p.21-32. Curitiba: APC.

FREUD, S. (1910). Leonardo da Vinci e uma lembrança da sua infância. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v.11, p.53-124. Rio de Janeiro: Imago, 1990.

POMMIER, G. (1993) Naissance et Renaissance de l'ecriture. Paris: Presses Universitaire de France.

SANTIAGO, A.L.B. (2005) A inibição intelectual na psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editores.

SARTORI, C. H. G. (2005) A escrita atualiza o impossível do educar. In: Associação Psicanalítica de Curitiba em Revista, v.1, n.11, p. 11-19. Curitiba: APC, 2005. www.cee.sc.gov.br/lei9394

 

 

1 A DERDIC (Divisão de Educação e Reabilitação dos Distúrbios da Comunicação), órgão pertencente à Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, oferece atendimento clínico a pacientes com problemas de audição, voz e linguagem.