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On-line ISBN 978-85-60944-08-8

An 6 Col. LEPSI IP/FE-USP 2006

 

O estatuto de felicidade e de fracasso na constituição da relação de filiação do sujeito na contemporaneidade

 

 

João Luiz Leitão Paravidini

paravidini@ufu.br

 

 


RESUMO

Refletir sobre o sujeito contemporâneo faz necessário tomar em consideração a queda de referenciais modernos, tais como a família patriarcal, a falência do Estado e a superação da ciência como promessa de desenvolvimento humano. O sujeito contemporâneo está posicionado psíquica e emocionalmente de maneira distinta da modernidade em face destas condições sócio-históricas. Dentre às macro transformações, destacaremos aquelas que se referem às relações pais-filhos e, especificamente, aos impasses nos processos de transmissão da filiação, fazendo uso de recortes da clínica psicanalítica da relação conjunta pais-crianças pequenas e de uma ilustrativa propaganda televisiva. Diante de condições tão paradoxais, encontramos uma ‘frouxidão’ da referência histórica para todo um conjunto geracional no que diz respeito à posição paterna, assim como materna. Não podemos mais lançar mão tão somente de uma tradição. Estamos diante de uma perspectiva de destradicionalização das relações parentais. Percebemo-nos ante a falta do que chamamos de mediadores que possam nos auxiliar a sustentar quer sejam o sucesso ou o fracasso e, assim, relevarmos a importância do cuidado na mediação de si e do outro de si. Como conseqüência, o sujeito tende a fixar-se numa relação de objeto de gozo do outro, como garantia permanente frente à angústia originária do ser e cuja significância não se abre para outra coisa que não seja a repetição indefinida de si mesma. Nesta maquinação, tornar-se sujeito de desejos não só é não-garantido como também in-desejável, in-suportável. Deparamo-nos com uma lógica demonstrativa explícita de presentificação do gozo, tendo em vista o profundo achatamento peculiar entre campo das possibilidades simbólicas e imaginárias, ora como expressão inerte advinda do campo imaginário sem a articulação com o simbólico, ora o contrário, admitindo-se a competência autônoma e autômata à revelia de qualquer implicação com o outro.

Palavras-chave: Psicanálise, Subjetividade, Filiação.


 

 

Introdução

Para pensarmos as transformações das subjetividades contemporâneas, sempre haveremos de nos remeter às macro modificações sociais, históricas e econômicas que acompanharam a humanidade. De tal maneira que uma acurada reflexão sobre a composição tanto do social, quanto da subjetividade, devem fazer parte de toda tentativa de apreensão da multiplicidade constitutiva do sujeito humano.

Assim, refletir sobre o sujeito contemporâneo faz necessário tomar em consideração a queda de referenciais modernos, tais como a família patriarcal, a falência do Estado e a superação da ciência como promessa de desenvolvimento humano. Consideramos que o sujeito contemporâneo articula-se psiquicamente e emociona-se de maneira distinta daquela do século das luzes. Sendo assim, reações diversas processam-se na cotidianidade, inscrevendo o desejo num terreno que se revela de uma política de gozo inusitada (SAFATLE 2004).

Dentre estas macro transformações, destacaremos aqui aquelas que se referem às relações pais-filhos, aos impasses nos processos de transmissão da filiação, fazendo uso de recortes da clínica e de uma ilustrativa propaganda televisiva.

 

Imagens na clinica

Tomemos inicialmente o caso de uma situação do cotidiano da clínica. Esta situação é semelhante a tantas histórias comuns. A clínica é o que há de mais comum, portanto o mais curioso e instigante.

Um pai me diz estar preocupado com o futuro de seu filho, posto que o mesmo ainda não se definiu quanto a este, não demonstrou qualquer inclinação para fazer nada.

Até aí nada de muito complicado, coisas de adolescentes... Não fosse o filho não esboçar qualquer necessidade ou preocupação em ser alguém (no que tange à profissão, dinheiro, posição social), justificando-se que seu pai já havia alcançado todas as coisas que ele poderia um dia herdar sem ter que conquistá-las por si só. Não importava todos os discursos de exemplificação que seu pai ou mesmo sua mãe lhe faziam, nada demovia o adolescente de sua posição aparentemente inquietadora, já que, ao mesmo tempo, ele queria ser um deslumbrante profissional, qualquer que o fosse, desde que fosse de grande sucesso.

O pai é detentor de uma história traçada por uma ascensão econômica e social cujos valores morais e éticos corroboram os seus feitos. Ele é o exemplo vivo de tais valores. O filho, porém, é aquele que já tem "tudo". Tudo já está pronto. Aparentemente, não lhe falta nada. Não há objetivo a ser conquistado. O filho viverá do que foi produzido pelo pai, apenas numa relação de consumo. Não se trata de uma mesma lógica do trabalho, na qual se faz necessário construir, operar para se produzir. Os pais garantem-no como tal.

Como nos lembra Costa (2004), o trabalho na pós-modernidade não diz mais respeito a tal possibilidade de trajetória (subir na vida). Essa não é mais a expectativa, a da ascendência na vida, mas nela "explodir", "acontecer". Para tanto, o que se requer é um profissional que seja flexível, assertivo e, se possível, polido. Este profissional requerido pelo "mercado" atual é desenraizado, diferente do trabalhador moderno que estava sempre remetido às suas raízes. A nova economia impôs um outro ideal de identidade profissional, o do "turista" (BAUMAN, 1998). Turista é aquele que renuncia a se fixar em identidades passadas, que vê o mundo como um espaço sem fronteiras e, sobretudo, jamais desenha o futuro em função do presente. Esta é uma das grandes mudanças operadas nas relações de objeto da lógica contemporânea.

Uma segunda mudança no papel dos objetos deriva da revolução do aparecer corporal. Sinteticamente, é nessa revolução que vamos encontrar uma alteração que se dirige à busca do que se chama felicidade sensorial em detrimento do que anteriormente se chamava de felicidade sentimental (COSTA, 2004).

A terceira mudança diz respeito às transformações da autoridade, ao aparecer moral, sendo que todas as instâncias de representação da mesma sofreram abalos inquestionáveis. Não é casual que a condição de celebridade, instância máxima da moral do entretenimento esteja aí em voga. Estes três grandes demarcadores acabam por articularem-se entre si: o aparecer social, o aparecer corporal e o aparecer moral. (COSTA, 2004).

Através da lógica temporal da instantaneidade vislumbra-se a articulação entre estes modos de aparecer, mas isto já me conduziria para outro caminho, que não é o motivo principal deste trabalho.

No entremeio da conversa com este pai, me ocorre uma pergunta, que faço de imediato: se o mesmo se sentia pronto para perder seu filho. Ele decerto ficou assustado, pois é impensável tal absurdo, mas, certamente, empreender uma trajetória analítica é significar por princípio esta perda simbólica. Depois de muito hesitar e, sem qualquer confiança no que dizia, ele respondeu que sim, que estaria disposto a trazer seu filho para que fizéssemos um trabalho clínico. Certamente não voltaram.

As mudanças na lógica das relações adultos-crianças, em que existia uma verticalidade, e que hoje encontramos uma maior uma horizontalidade, é propiciadora de um estado de bem estar, ali aonde havia uma tamanha rigidez hierárquica.

Porém, as questões entre o antes e o depois, questões estas básicas do ser e dos seus limites extremos como o nascimento e a morte, continuam cobrando seus tributos, continuam presentes. É impossível se desfazer desse mal-estar.

Um lembrete: o pai que veio me procurar sentia-se envelhecendo e estava sequioso por alguém que pudesse vir a substituí-lo, ao mesmo tempo que parecia querer deixar vago este lugar.

Diante de condições tão paradoxais, encontramos uma ausência de referência histórica para todo um conjunto geracional no que diz respeito à posição paterna, assim como materna. Não podemos mais lançar mão tão somente de uma tradição. Estamos diante de uma perspectiva de destradicionalização das relações parentais.

Outrossim, encontramos a necessidade de modulações criativas, inventivas, mesmo que com o risco das mesmas caírem num esvaziamento simbólico, na medida em que elas se sustentam num "toma lá, dá cá", – eu – tu eximiamente narcísicos. Sentimos a falta do que chamamos de mediadores que possam nos auxiliar a sustentar quer sejam o sucesso ou o fracasso e, assim, relevarmos a importância do cuidado na mediação de si e do outro de si.

Ademais, vemo-nos diante da falência dos componentes simbólicos fundamentais à constituição do sujeito humano, tão observados no momento contemporâneo. Tal falência se dá por insuflação dos objetos de gozo que se tornam portadores de condições de suplência de um ideal através de uma busca por um mais gozar em estado de vigência real e pelo decreto da morte (factível) do sujeito de desejo através da manutenção do sujeito de direito (herança jurídica). Neste ensejo, decreta-se a falência de possibilidade de se introjetar componentes simbólicos de um outro distinto, como, por exemplo, valores e o desejo (herança simbólica).

 

Imagens na mídia

No intuito de pararmos para refletir sobre esta transmutação paradigmática da política do gozo, tomamos como ilustração uma propaganda de um modelo de veículo que tem como principal referencial o desenvolvimento cronológico de um jovem1. Ela inicia-se da seguinte maneira: Uma mãe oferece a seu bebê duas mamadeiras de conteúdos diferentes; ele, então, pega as duas; na adolescência, observa dois pares de tênis de cores distintas. Na dúvida sobre qual par escolher, ele calça cada pé com um tênis de cor distinta do outro; na praia, entre uma água de coco e um refrigerante, ele pega os dois; quando jovem, vê duas moças, uma morena e uma loira, ele, então, fica com as duas ao mesmo tempo; ao final, ele aparece em um carro que pode usar os dois tipos de combustível, álcool e gasolina e em seguida a propaganda termina quando o jovem se vê obrigado a decidir entre dois caminhos, porém não escolhe nenhum dos dois e adentra por uma terceira via – um matagal à sua frente. A propaganda finaliza com o seguinte slogan: Liberdade para escolher o que quiser!

É inegável que estamos vivendo em um tempo de grande oferta de consumo onde a mensagem veiculada é "Pode-se tudo". Saímos de um campo de escassez e entramos no campo do excesso. Pode-se comprar tudo em longas parcelas escritas em letras grandes e chamativas, pode-se ter tudo, pode-se estar em qualquer lugar através da internet, pode-se ter notícias globais a qualquer instante. A sensação provocada é de absoluta potência. Todavia percebemos que pela fragmentação (em muitas parcelas para um produto de preço geralmente elevado), tenta-se anular a totalização. Há um mínimo de esforço e um máximo de prazer com a promessa de continuidade de gozo permanente.

Estas condições são reafirmadas por Lipovetsky (2004) quando, ao descrever o momento contemporâneo chamado por ele de hipermodernidade, caracteriza-o fundamentalmente por:

(...) um presente que substituiu a ação coletiva pelas felicidades privadas, a tradição pelo movimento, as esperanças do futuro pelo êxtase do presente sempre novo. Nasce toda uma cultura hedonista e psicologista que incita à satisfação imediata das necessidades, estimula a urgência dos prazeres, enaltece o florescimento pessoal, coloca no pedestal o paraíso do bem-estar, do conforto e do lazer. Consumir sem esperar; viajar; divertir-se; não renunciar a nada: as políticas do futuro radiante foram sucedidas pelo consumo como promessa de um futuro eufórico. (LIPOVETSKY, 2004, p.60-1).

Assim como nos anúncios promocionais, o "pode-se tudo" aparece em primeiro plano, mas o "desde que" pequenininho. Este, "desde que", o qual diz respeito à implicação do sujeito à escolha que terá que fazer, ou ao que terá que perder, quase não aparece. Na ética edipiana há uma implicação em perder algo e não sendo tudo o que o bebê imagina ser ou querer, ele assim poderá vir a ser (sujeito). Na ética atual parece não haver a implicação da perda, ou seja, pode-se ser qualquer coisa, pode-se ser qualquer pessoa nos bate-papos da internet, há um excesso de tudo, um gozo, uma promessa de paraíso diante de um imediatismo exagerado. Enfim, o "pode-se tudo", escrito em letras garrafais, é o agora, o imediato e o "desde que" escrito em letras pequeninas, o qual implica em perdas e nas implicações de cada um, fica em posição obliterada.

Esta mudança paradigmática torna-se ainda mais evidenciável ao acompanharmos Marisa Maia (2004) quando nos diz que:

(...) o homem moderno, interiorizado e angustiado diante dos enigmas da vida, cedeu lugar a um homem exteriorizado, pragmático, preocupado com a sustentação de uma imagem pública moldada por ideários difundidos pelos avanços tecnológicos atualmente em jogo. A possibilidade de consumo desses bens e artifícios tecnológicos que modelam, além do corpo também a alma, assegura a inclusão do sujeito na cultura. (MAIA, 2004, p. 117).

A referida propaganda automobilística mostra-nos isto muito bem. No momento em que o sujeito é convocado a fazer uma escolha, ele se envereda por um terceiro caminho, visto que o momento fundamental da decisão subjetiva remete-o a uma articulação possível que é anterior ao conflito. Eis a dimensão do "posso tudo – desde que": Posso tudo, escolho tudo, não abro mão de nada, desde que não seja evocado a fazer nenhuma decisão. É a própria busca de um ego ideal e do esgotamento dos ideais de ego, diante da falência dos componentes simbólicos fundamentais, tão observados no momento contemporâneo.

Estando entre dois caminhos, o real se coloca e a vida se faz presente, pois na recusa da escolha, o jovem se remete a um matagal, a um não caminho. Neste instante, ao recusar a escolha, o indivíduo se remete a Nada. Este parece ser algo característico do sujeito da pós-modernidade, recusando a escolha, nega-se à perda. Para que haja escolha tem que haver uma perda. A ordem é de subversão, como se fosse possível percorrer todos os caminhos. É como se ao final deste novo caminho, pudesse se reencontrar, num mesmo sentido, as duas vias às quais ele obrigatoriamente teve de abandonar. A nova construção nada mais é que a tentativa de reparação de um estado de gozo, onde ilusoriamente ao final poderia ser restabelecida, reparada, a condição resultante da perda do gozo ininterrupto até então.

Certamente, há um grande engodo aí, pois percorrer todos os caminhos – a exemplo da propaganda - parece ser uma ilusão, digamos necessária, um anteparo, visto que a angústia do real está sempre presente, como uma espécie de sombra.

 

Para além das imagens, a transmissão

Desde os primórdios originários do psiquismo, o sujeito sempre haverá de fazer espécie de escolha em relação a um Outro. Basta-nos lembrar da metáfora de Lacan (1994) quanto a esta entrada dramática na vida: a bolsa ou a vida. Se ele escolhe a vida, perde a bolsa, mas se ele escolhe a bolsa, perde a vida. (Ah! Aquele pai e seu filho tão agarrados à bolsa! )Ainda assim vale ressaltar que, quando a criança abre mão de seu advento como sujeito dividido para não se sujeitar ao Outro como linguagem (FINK, 2002, p.72), ela está escolhendo um caminho de vitória de si não se alienando ao Outro, mas adoecendo em si na forma subjetiva de uma psicose ou um autismo. Escolhas implicativas cruciais que tendem simplesmente a conformar modos de subjetivação obliteradores radicais da fenda, também radical, posto que iniludível, que é o desamparo originário.

Se o indivíduo pós-moderno considera que a tudo pode escolher, isto se constitui em um campo de elisão, pois haverá um instante em que este campo demonstra sua fragilidade, evidenciado na angústia do real que se destampona de alguma forma, ainda que sejam caracterizadas pelas condições evacuatórias em ato (a pulsão sem mediação). Evidencia-se também na ordem do gozo, das patologias do vazio (desinvestimento característico da pulsão de morte), nas condições psicossomáticas onde há falta de representação (campo simbólico), nas depressões, nas apatias, na desafetação em grande manifestação contemporânea do esvaziamento e precariedade da construção do espaço psíquico (onde idéias e afetos se fazem representar), com sérias dificuldades de significar a dor e expressá-la em toda a sua extensão.

Por sua vez, a relação de alteridade (simbólico e material) ganha um contorno bastante singular. A atualidade revela um modo de relação masoquista intersubjetiva bastante proeminente. Frente à dor de viver o desamparo como algo encarnado, sentido de forma visceral pelo indivíduo, este realiza novos mecanismos de constituir-se psiquicamente. Nesta posição masoquista, há uma relação de subserviência a um outro, que está colocado em condição magistral para fazer frente ao desamparo. Nesta perspectiva, o sujeito entrega-se ao desejo do outro, servindo de objeto de expiação frente à carência erótica originada pelos tempos de hiperconsumo. As relações de alteridade servem, sob esta nova perspectiva, para relegar a dimensão da falta a um limbo qualquer, visto os estados fusionais e homogeneizantes (BIRMAN, 2003).

Peres (2001) também aponta para a fragilidade na relação com o outro e na fissura da própria identidade que se traduz na pergunta constante de quem sou, o que faço e o que desejo. Segundo ele, embora o indivíduo possa se dizer livre para escolher, ele fica aprisionado nessa pseudoliberdade, que nada mais é que a inexistência de laços que o conduzam pela vida. Assim, ele preconiza que a doença atual é uma doença de vínculos e há uma liberdade do vazio que não encontra outra resposta a não ser a angústia. O autor é categórico, quando considera que:

É possível que nosso maior mal-estar repouse exatamente nessa doença dos vínculos ou, se quisermos, do narcisismo. Já não cremos, não obedecemos, não nos orientamos, não admiramos. E esse abandono ao outro vai encouraçando nossos invólucros narcisistas. O descartável é o predominante em nossa época: valores, pessoas, relações, instituições, objetos, teorias. Assim sendo, necessariamente, para enfrentar o vazio da desesperança, o mundo necessita ser fetichizado – valores são incorporados ao sem valor. (PERES, 2001, p. 12).

Este modo de subjetivação atual traz em si estes ideais subjetivantes (narcísicos, hedonistas) que, numa perspectiva macro (histórico-social e cultural) em sua articulação dialética com o estado originário, nos faz pensar em uma frouxidão da relação simbólica originária que tem oscilado e vacilado quando abordamos a questão da filiação e transmissão de valores.

Tais condições paradoxais colocam-se numa espécie de afirmação de si, mas, que ao mesmo tempo faz imobilizar a dinâmica subjetivante/desejante. Isso é o que dissemos anteriormente quanto à mudança paradigmática impetrada pelo estatuto do gozo. Nela se evidencia esta espécie de onipotência e arrogância permanente, mas que tem como contraponto o próprio fracasso da constituição da relação simbólica: a impotência do contato, da vinculação e da formação dos laços afetivos. É aqui que faz fracassar a transmissão e com isto o difícil trabalho de filiação humana.

 

As palavras (finais) e o estatuto da filiação

O paradoxo da transmissão de valores éticos na contemporaneidade engendra a perspectiva suposta de englobar o direito e o avesso. Esta paradoxalidade e, decerto, a mudança paradigmática que nela vemos se instaurar, faz com que retornemos ao ponto de partida do meu trabalho clínico, cotejando-o com um outro olhar: o desenvolvimento emocional infantil precoce e as condições de risco de sofrimento psíquico grave.

Será possível "criar filhos" sem que se apresente a condição de perda, incerteza, risco e vacuidade trazidos pelo que ainda não pôde ou poderá ser preenchido, senão pelo que des-dobra-se de si mesmo para se fazer em devir? Será possível "criar filhos" sem se perder na nostalgia do tempo do houvera sido, mas que ainda assim valerá a pena se deixar viver nesta aposta presente, mesmo sendo o outro que poderá sair ganhando?

Ah!!! Tempos difíceis esses!!! Tempos em que as fragilidades narcísicas se encontram em cada gesto, em cada molécula de vivência de cotidiano, ou o reforço de si ou a ameaça ao existir. E nesse sentido, o Outro ameaçador ganha contornos violentos, estranhos e insuportáveis, haja vista que o mesmo está ali em posição de também ser o mais familiar possível: gente grande que fica pequena e gente pequena que fica monstruosamente grande.

Observamos que não há propriamente o que costumávamos chamar de conflito, mas apenas o estado de achatamento calcado na suficiência ou insuficiência (competência ou incompetência), posto que a norma social –, enquanto linguagem (EHRENBERG, 2004) ou as redes de conversação (MATURANA, 2004) – que regula esta condição é da autonomia. Ou se é capaz de decidir e agir por conta própria ou se fracassa.

No caso da propaganda, o poder escolher tudo se encontra com a própria imbecilidade de estar andando pelo caminho do matagal, uma espécie de não-escolha, nadificação de si. E no que tange ao pai (filho), mencionado no item "Imagens na clínica", poderíamos dizer que a urgência do tempo da morte ainda pode esperar.

Grosso modo, deparamo-nos com uma lógica demonstrativa explícita de presentificação do gozo, tendo em vista este profundo achatamento peculiar entre o campo das possibilidades simbólicas e imaginárias, ora como expressão inerte advinda do campo imaginário sem a articulação com o simbólico, ora o contrário, admitindo-se a competência autônoma e autômata à revelia de qualquer implicação com o outro.

O sofrimento do homem contemporâneo anda em descompasso com a dor. Esta, calcada no campo do indizível, só pode ser significada por meio do sofrimento, imanente ao campo das relações humanas, da existência, do si em meio aos outros. É o sofrimento quem dá o tom à dor do sujeito e a dor só com-passa com o sofrimento. E assim é a vida, como já nos ensinou Freud.

 

Bibliografia

BAUMAN, Z. O mal estar na pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.

BIRMAN, J. Mal-estar na atualidade: a psicanálise e as novas formas de subjetivação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

COSTA, J. F. O vestígio e a aura: corpo e consumismo na moral do espetáculo. Rio de Janeiro: Garamond, 2004.

EHRENBERG, A. Depressão, doença da autonomia? Entrevista de Alain Ehrenberg a Michel Botbol. Ágora (Rio J.). [online]. July/Jan. 2004, vol.7, no.1 [cited 30 July 2006], p.143-153. Available from World Wide Web: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516-14982004000100009&lng=en&nrm=iso>. ISSN 1516-1498

FINK,B. O sujeito lacaniano, entre a linguagem e o gozo. Trad. Maria de Lourdes Sette Câmara. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.

HERZOG, R. & SALZTRAGER, R. A formação da identidade na sociedade contemporânea. In: PINHEIRO, T (Org.) Psicanálise e as formas de subjetivação contemporâneas. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2003.

LACAN, J. O Seminário: Livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. 20 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994.

LIPOVETSKY, G. Tempo contra tempo, ou a sociedade hipermoderna. In: ______. Os tempos hipermodernos. São Paulo: Editora Barcarolla, 2004.

MAIA, S. M. A máquina de expressão: corpo, subjetivação e clínica psicanalítica. In: PEIXOTO JR., C. A. (Org) Formas de subjetivação. Rio de Janeiro: Contra-Capa, 2004.

MATURANA, H. Amar e brincar: fundamentos esquecidos do humano. Palas Athena: São Paulo, 2004.

PERES, T. V(org.) Culpa. São Paulo, Escuta, 2001.

SAFATLE, V. Pós-modernidade: utopia do capitalismo. Texto adaptado da palestra proferida pelo autor no encontro "Trópico na Pinacoteca" de 28 de agosto de 2004 sobre o tema "Pós-modernidade ou hipermodernidade?" "http://pphp.uol.com.br/tropico/html/textos/2446,1.shl

 

 

1 Tanto a propaganda quanto aspectos das discussões dela decorrentes foram objetos de investigação descritos em um artigo que está para ser publicado, intitulado “Nascimento psíquico e contemporaneidade: Implicações do tempo atual nos modos de estruturação subjetiva” de autoria de PARAVIDINI, J. L. L.; PERFEITO, H. C. C. S.; ROCHA, T. H. R.; DIAS, A. G.; CAMPOS, A. F.