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On-line ISBN 978-85-60944-08-8

An 6 Col. LEPSI IP/FE-USP 2006

 

Psicanálise e instituição APAE: um encontro possível?

 

 

Julia Maciel Soares

juliamaciel@terra.com.br

 

 


RESUMO

Pretende-se problematizar os alcances e os limites do tratamento psicanalítico da psicose infantil dentro de uma instituição não atravessada pela psicanálise, particularmente, a APAE São Luís – Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais. Parte-se da produção dos quatro discursos estabelecida por Lacan com vistas a trilhar as idéias colocadas por alguns autores de referencial teórico psicanalítico (principalmente de orientação lacaniana), que se ocuparam do tratamento institucional da psicose. A partir de uma vinheta clínica de um caso de psicose atendido na APAE, discute-se o tipo de discurso agenciado pela instituição e a possibilidade de giros discursivos no atendimento, bem como um ponto de atravessamento do discurso institucional no tratamento. Conclui-se que algumas manobras podem ser operadas pelo terapeuta no sentido de barrar o Outro da psicose, provocando furos nesse Outro, ainda que não sejam engendrados giros no discurso institucional. No entanto, apontam-se limites do tratamento do Outro (tratamento da psicose) quando a montagem institucional não sustenta tal tipo de intervenção.

Palavras-chave: instituição, psicose, quatro discursos.


 

 

Este trabalho se propõe a problematizar o tratamento psicanalítico da psicose dentro de uma instituição, mais especificamente, dentro da instituição APAE, instituição que não se organiza em função do mesmo tipo de abordagem que se pretende o tratamento: a psicanálise.

A questão sobre a possibilidade de um tratamento psicanalítico dentro de uma instituição não psicanalítica reclama, antes de ser colocada, um esclarecimento.

Diversos autores psicanalíticos se debruçaram sobre a questão do tratamento psicanalítico da psicose em instituições, tomando como ponto de referência a maneira como a psicanálise entende a questão da psicose, a saber, que sua problemática está na relação com o Outro. A forma como a psicose se organiza está relacionada com esse Outro que lhe é ameaçador, um Outro não barrado, que pode tudo, invasivo, uma vez que a função paterna não operou a separação primordial.

Os autores do Courtil partem da formulação lacaniana dos quatro discursos para pensar quais as condições da cura no tratamento institucional. Esses autores afirmam que toda instituição está estruturada pelo discurso do mestre. Lacan, no seminário 17, começou a conceitualizar os quatro discursos. Os discursos são modalidades de laço social.

A teoria dos quatros discursos postula que todo laço social é permeado por um discurso, uma estrutura que é mediada pela linguagem, embora vá além dela. Marca, assim, a existência de um discurso sem palavras, discurso enquanto modalidade de relação social. O laço social é regido pelo discurso, o qual se situa entre a fala e a linguagem. Assim, pode-se afirmar que o discurso é a fala orientada pelas leis da linguagem que produz laço. O discurso "é a matriz de qualquer ato em que se tome a palavra" (ALÉMAN; LARRIERA. 1996)1, ou seja, uma estrutura vazia (lugares de fala) que permite ir além dos enunciados.

O lugar de onde se fala, Lacan o denomina de lugar do agente. Sempre que se fala, tem-se como destinatário um outro, ou melhor, como ensina Lacan, um Outro, ou seja, não um outro semelhante, mas o Outro enquanto linguagem, código, tesouro dos significantes2. A partir dessa fala, o outro fica posto em um determinado lugar. O lugar em que ele é colocado é chamado por Lacan de o lugar do outro. O efeito que se produzirá a partir do endereçamento da palavra ao outro é o produto do discurso, o qual é denominado de lugar da produção. Finalmente, tal produção tem a ver com uma determinada verdade, em nome da qual fala o agente e que lhe é anterior: o lugar da verdade. A verdade é o motor do discurso. Coutinho Jorge (2003) explica que "os lugares do discurso são fixos porque todo e qualquer discurso é sempre movido por uma verdade, sua mola propulsora, sobre a qual está assentado um agente, que se dirige a um outro a fim de obter deste uma produção3".

Estes quatro lugares, marcados por Lacan como estrutura de qualquer discurso, são ocupados por quatro termos que giram na estrutura, configurando assim os tipos discursivos. Os quatro termos são: S1, significante-mestre; S2, o saber; $, o sujeito dividido; e, finalmente, o resto, o mais de gozar, a.

Os quatro modos de laço social foram formulados a partir do agente do discurso. Assim, tem-se: o discurso do Mestre (em posição de agente, S1), o discurso do Universitário (S2), o discurso da Histérica ($) e o discurso Analítico (a). Se fossem formulados a partir de seu propósito (discurso médico, religioso, familiar), sua classificação seria infinita4.

Isso posto, é possível partir para a compreensão da afirmação de que toda instituição se estrutura a partir do discurso do mestre. O discurso do mestre é o discurso fundador. É através dessa modalidade discursiva que a mãe vai oferecer significantes com os quais o sujeito vai poder montar sua história. Além de ser o discurso do inconsciente materno, ou seja, o discurso que institui, onde ali nada havia, impondo um significante alienante e, portanto, arbitrário, é o discurso por excelência e denominação da instituição. Seynhaeve (1994) afirma que "logo que há instituição, há discurso do mestre"5.

O mestre dá as coordenadas e quer apenas que as coisas funcionem. O discurso do mestre, ao lado do discurso do universitário, são os dois discursos que tem o sujeito barrado ($) sob a barra do recalque. Isso remete a uma tentativa de que essa divisão subjetiva, essa castração, não apareça. Uma tentativa de ocultar a falha, embora a castração do mestre exista, como bem sublinha Lacan (1992): "o que constitui a essência da posição do mestre é o fato de ser castrado" (LACAN, 1992, p.114)6.

O discurso do mestre repousa sobre uma ilusão de ter respostas para tudo, de tudo poder explicar. "O mestre acredita em um grande Outro pleno, não castrado" (VANDERVEKEN, 1994, p.153)7. Trata-se de uma ilusão uma vez que há algo que sempre escapa, sempre falta. O próprio matema do discurso do mestre formaliza isso, pois um dos termos é o objeto a, ou seja, um resto que escapa à significação. Na conceitualização lacaniana dos matemas há uma castração fundamental em qualquer das posições discursivas.

No entanto, o mestre desconhece sua própria castração. Vive na ilusão de encontrar um significante último que irá tudo explicar. O discurso do mestre ignora o impossível a partir do qual ele se constrói – a saber, o impossível de governar – e desconhece a existência do inconsciente.

A característica de plenitude do discurso do mestre se apresenta para a psicose como "a encarnação de uma vontade profundamente perigosa e malevolente concernente ao capricho do Outro"8 (VANDERVEKEN, 1994, p.155). A partir do referencial teórico psicanalítico, a psicose é entendida como um modo de estruturação do sujeito na relação com o Outro, uma relação na qual a função paterna, cuja função é introduzir a lei da interdição (do gozo do Outro), não operou. Assim, o Outro, para a psicose, é não-castrado.

Assim, por encarnar o discurso do mestre (LACADÉE, 1994)9, a instituição estaria justamente reproduzindo o Outro não barrado da psicose.

Stevens, analista do Courtil, partindo dessa concepção de psicose e de instituições, defende que o tratamento da psicose em uma instituição só é possível se a instituição se reconhecer como faltosa. Nas palavras do autor: "as condições da cura passam por uma necessária castração: dizendo simplesmente, seu reconhecimento como 'não-toda'"10. Reconhecer-se como castrada indica uma posição de reconhecimento dos limites, da falha, da impossibilidade do mestre. Reconhecimento de uma falha discursiva, como se disse, presente em qualquer uma das modalidades propostas por Lacan.

Vanderveken (1994) acrescenta que, embora os profissionais sejam convocados no lugar da mestria pela própria estrutura da instituição, no Courtil os profissionais se apresentam como mestres faltantes, como um "mestre descompleto, castrado do saber, um mestre não-todo" (VANDERVEKEN, 1994, p.156). O autor afirma que operar a partir de uma posição "não-toda" da mestria, de um mestre que não sabe principalmente a respeito da verdade subjetiva do outro, tem o efeito de pacificação no caso do tratamento da psicose, pois domestica uma parte do gozo ao traçar uma separação entre o sujeito e o saber absoluto do Outro.

A posição de um "mestre-não-todo" é parte de uma proposta de tratamento da psicose que passa pelo tratamento do Outro. Uma das formas de se tratar o Outro da psicose é a castração da própria instituição, ou seja, é a instituição se perceber como castrada, como faltosa, que não vai dar conta de tudo. Daí o conceito de Mannoni de instituição estourada, que quebra algumas certezas cristalizadas. É a presença do discurso do analista que pode provocar essa posição de lembrete ao mestre de sua impossibilidade (constitutiva) de saber tudo, oferecendo a ele uma presença menos totalitária, um modo de estar de forma menos rígida, e que suas "certezas" e ideais possam retomar suas condições de construção. Uma instituição que se deixa ser atravessada pela psicanálise não visa excluir o discurso do mestre, mas o remete a uma posição menos ingênua em relação à sua própria impossibilidade.

A psicanálise incide nas certezas imaginárias institucionais cristalizadas. Kupfer (1997)11 escreve: "os discursos institucionais tendem a produzir repetições, mesmice, na tentativa de preservar o igual e garantir sua permanência. Contra isso, emergem vez por outra falas de sujeitos, que buscam operar rachaduras no que está cristalizado". A psicanálise tem um lugar no afrouxamento daquilo que se encontra cristalizado nas instituições, através da introdução de um enigma onde antes havia certeza. A introdução do enigma pode vir de qualquer lugar, da fala de qualquer sujeito de dentro da instituição. Um espaço criado para a fala, com vistas à circulação do discurso, tem como efeito promover a emergência de falas que podem estilhaçar as certezas cristalizadas na instituição.

Na opinião de Mannoni, uma instituição que oferece tudo, que tudo controla, acaba funcionando como uma mãe de psicótico, reproduzindo uma dependência extrema da qual a criança dificilmente conseguirá sair. Mannoni oferece o conceito de instituição "estourada", que, ao contrário, propõe-se a ser não-toda, um lugar que não é total, que não pode e tampouco deve oferecer tudo. É possível fazer uma aproximação entre o conceito de instituição estourada de Mannoni e o de mestre não-todo proposto pelos autores do Courtil.

A hipótese desses teóricos é a de que o mestre não-todo, quer dizer, uma posição de mestria que reconhece sua castração, sua impossibilidade, coloca ortopedicamente uma barra sobre o Outro da psicose, evitando reproduzir assim a relação invasiva da psicose com o Outro. Apresentar-se como não-todo significa permitir que o sujeito psicótico venha elaborar uma outra hipótese sobre seu Outro. É isso que o discurso do analista pode promover no discurso do mestre, nas instituições.

Isso posto, cabe questionar como fica, então, o tratamento da psicose em instituições que não tem a presença da psicanálise, ou seja, instituições cuja modalidade discursiva quase que homogênea é a da mestria, um discurso do mestre pouco permeável ao discurso do analista.

Tomaremos como parâmetro para pensar sobre a questão um atendimento realizado no interior da instituição APAE de São Luís-MA. A Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais é uma entidade sem fins lucrativos (mantida pelo SUS Sistema Único de Saúde) que tem por finalidade atender pessoas com deficiência, visando sua reabilitação e inclusão na sociedade. Foi inicialmente concebida para atender e reabilitar crianças com problemas de desenvolvimento com causa orgânica. No entanto, acabou recebendo para tratamento crianças com distúrbios de outra ordem, como os distúrbios psíquicos (psicoses e autismos, entre outros).

A APAE São Luís oferece serviços nas áreas de educação e saúde. Para a educação de crianças especiais foi fundada, no interior da instituição, a Escola Especial Eney Santana, encarregada de proporcionar aos alunos portadores de deficiência mental condições de ingresso em classes especiais. A área de saúde conta com uma equipe multidisciplinar composta por profissionais das áreas de psiquiatria, terapia ocupacional, fonoaudiologia, fisioterapia, psicologia, além de inúmeras especialidades médicas (neurologia, ortopedia, otorrinolaringologia, clínica geral, pediatria, cardiologia, entre outras). Os serviços da área de saúde da instituição são oferecidos não só às crianças em tratamento sistemático, mas também ao público em geral sob forma de consultas pontuais.

Naquela instituição, os atendimentos técnicos são realizados de maneira isolada, pontual, cada profissional atuando dentro de sua especificidade e de sua abordagem teórica. Não há um espaço institucionalizado para reuniões clínicas, supervisões ou estudos teóricos, como também não há um referencial teórico único que permeie toda a instituição.

O modelo da instituição APAE São Luís, que oferece toda sorte de serviços, de educacionais a clínicos, parece transparecer o desejo de se querer completa. Seus pacientes não precisam recorrer a outro lugar, uma vez que, com a gama de serviços oferecidos, a APAE pretende dispor de tudo o que se possa precisar.

É possível localizar a modalidade discursiva predominante da referida instituição no discurso do mestre. Sabe-se que este discurso encontra-se permeando a estrutura de qualquer instituição. No entanto, na APAE, parece haver pouca flexibilidade para que se operem giros discursivos. Em outras palavras, a instituição fica aprisionada ao discurso do mestre, assentada na ilusão de completude, de que tudo poder oferecer e explicar, a quem nada falta.

Será possível realizar um tratamento psicanalítico da psicose dentro de uma instituição que não se percebe como castrada? Que efeitos isso pode ter no tratamento psicanalítico da psicose?

A instituição não é montada para a escuta dos pais. Isso revela uma posição de que quem detém o saber sobre as crianças é a instituição, e não os pais.

O atendimento realizado com uma criança, que chamaremos de Brena, passou por uma escuta da mãe de Brena, com a aposta de não apenas localizar o saber do lado do paciente (descentrando-o da instituição), mas, ao mesmo tempo, de introduzir enigmas como uma tentativa de instaurar uma separação na díade, uma barra no Outro. Nem a instituição poderia saber tudo sobre Brena, nem sua mãe poderia. A terapeuta também se colocava em uma posição de não-saber.

Para ilustrar, uma vinheta clínica: nas sessões, Rita (a mãe) questiona o diagnóstico da filha com freqüência. No início, conta que Brena não tem frase própria por causa do retardo, as frases proferidas por Brena são copiadas dos outros. Aos poucos, vai podendo falar que Brena já está criando algo. Passa a oscilar bastante entre o diagnóstico de Retardo Mental dado pela psiquiatra da instituição e a inteligência de Brena. Relata que, "apesar do retardo mental, Brena é inteligente", gosta de dançar e de fazer paródias, tem boa memória e lembra inclusive de quando mamava (mamou até os 3 ou 4 anos). Afirma que muitas vezes a filha é bastante lúcida e que "pega as coisas no ar", referindo-se a conversas com a filha mais velha na presença de Brena, quando palavras e assuntos são propositalmente omitidos para que esta não compreenda o diálogo. No penúltimo mês de atendimento, consegue questionar a afirmação de um neurologista de que sua filha age apenas por impulso, que nada do que ela faz é por querer. Rita discorda do médico, acha que muito do que Brena faz parece ser para chamar a atenção. E arrisca algumas apostas no sujeito: Rita se preocupa se Brena vai poder namorar e conta que a filha quer ser médica. Logo em seguida, parece recuar diante de tamanha aposta: "Muitas coisas já venho tentando tirar dela", fazendo referência à profissão escolhida pela filha. Eu questiono: por que não médica?

A questão do diagnóstico ilustra um ponto onde o discurso institucional toca o atendimento clínico. O diagnóstico, baseado nos manuais de psiquiatria CID-10 e DSM-IV, escrito no prontuário de atendimento é uma exigência da instituição imposta ao trabalho de seus profissionais da área de saúde mental. Brena vem para atendimento no setor de psicologia com o diagnóstico de Retardo Mental Grave (F.72.1) e de Transtorno Invasivo do Desenvolvimento Sem Outra Especificação (F.84.9).

O diagnóstico registrado no prontuário é sabido pela mãe sem que haja um espaço de questionamento no âmbito institucional. O saber do psiquiatra parece ser incontestável. E, talvez, não só o do psiquiatra, mas de todo profissional cujo discurso é sustentado pelo saber (ou S1) da instituição. A escuta psicanalítica, no início, encontrava-se igualmente enrijecida, uma vez atravessada pelo saber institucional. No entanto, no decorrer das sessões, um giro parece ter sido provocado, possibilitado pela escuta analítica. É possível à mãe uma descolagem do saber outrora incontestável do discurso médico, que por sua vez fala em nome de um saber que lhe é anterior. Ela pode, então, questionar o saber médico. É neste giro discursivo que se aponta a presença do discurso do analista, evanescente enquanto tal, mas que produz efeitos de questionamento das certezas imaginárias, das verdades tomadas enquanto tais. A posição do analista, cujo agente do discurso é ocupado pelo objeto a, que se cala para que o outro produza seus próprios saberes, possibilita que haja um giro discursivo para que o sujeito ($) apareça. Em outras palavras, a escuta analítica, ao se calar frente à questão do saber, opera um giro discursivo no sentido de histerizar a fala da mãe, propiciando a emergência, na produção discursiva, do sujeito dividido ($), fazendo com que ela própria conseguisse dizer algo a respeito de sua filha que diferisse de uma repetição do discurso institucional. Um giro em sua produção discursiva provocou o agenciamento de um novo discurso (discurso da histérica), possibilitando o surgimento de uma produção própria, diferente do que já estava dado. Uma produção onde o sujeito ($) comparece, fala em nome próprio.

Ao serem introduzidas questões, a mãe de Brena pôde se dar conta de sua própria castração e a separação entre ambas foi acontecendo. Trata-se de uma separação simbólica. A mãe da Brena passou a se perguntar se valia a pena ela estar vivendo sua vida em função de Brena. Será que ela não mais tinha tempo para si mesma? Ela começou então a vir de batom para as sessões, consertou a dentadura...

Vê-se então que é possível um tratamento psicanalítico dentro de uma instituição não atravessada pela psicanálise, ou seja, de uma instituição cuja modalidade discursiva é a de uma mestria pouco permeável ao discurso do analista, um discurso do mestre que podemos chamar aqui de "não-barrado" (ainda que, por sua própria estrutura, seja impossível sustentar sua posição não-castrada). Foi possível realizar o tratamento do Outro sem passar pela castração da instituição como um todo.

É importante ressaltar que Brena circulava por outros espaços que não a APAE. Sua escola era fora da instituição, representando, de certa forma, uma separação em relação à instituição APAE.

Nesse sentido, dois pontos importantes podem ser apontados como favorecedores da possibilidade de tratamento psicanalítico da psicose na APAE, no caso de Brena: o fato de Brena não estudar na APAE e dispor de outros espaços de inserção social, e a instalação de um dispositivo de escuta da mãe.

No entanto, é possível localizar efeitos do discurso institucional em Brena: ela desenvolveu com a APAE uma relação sem contornos, ambígua, de querer ir, ao mesmo tempo em que tentava se separar (semelhante à relação do sujeito psicótico com o Outro): perguntava constantemente se estava na hora de ir embora, que tinha medo de vir para a APAE, de ficar sozinha na APAE, que tinha medo da APAE. Enquanto que, por outro lado, em casa, perguntava para a mãe se "hoje era sexta", que dia iria para a APAE.

A relevância deste trabalho se dá pela existência de um amplo número de instituições de saúde mental que não estão montadas a partir do referencial teórico da psicanálise, e que são montadas a partir do discurso de uma mestria que se acredita detentora do saber total, último, sobre como as coisas devem funcionar para que o "projeto terapêutico" traçado seja alcançado. Antes, de uma posição de mestria que sabe até mesmo sobre a verdade subjetiva do outro.

Com algumas manobras, é possível provocar furos no Outro da psicose, ainda que não sejam engendrados giros discursivos no discurso institucional.

 

 

1 ALEMÁN, J. et LARRIERA, S. Lacan: Heidegger. Buenos Aires: ediciones del cifrado, 1996, p.156. "es la matriz de cualquier acto en que se tome la palabra".
2 BOURDARD, B. Os quatro discursos no trabalho com os pais. In: KUPFER, M. C. M. (org.) Tratamento e escolarização de crianças com distúrbios globais de desenvolvimento. São Paulo: Agalma, 2000.
3 COUTINHO JORGE, M. A. Discurso e liame social: apontamentos sobre a teoria lacaniana dos quatro discursos. In: Revista Humanidades No. 49, 2003. (p.46)
4 PETRI, R. Psicanálise e educação no tratamento da psicose infantil: quatro experiências institucionais. São Paulo: Annablume: Fapesp, 2003.
5 SEYNHAEVE, B. Le discours du maître, qu'en faire? 1994 (p.148) In : Les Feuillets du Courtil, 1994, nº 8/9. p.145-149. (tradução livre do autor).
6 LACAN, J. (1969 – 1970). O seminário, livro 17: O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992.
Seminário 17.
7 VANDERVEKEN, Y. Institution, Nom-du-Père et discours de l'analyste. In: Les Feuillets du Courtil, 1994, nº 8/9. p.151 a 158. (tradução livre do autor).
8 Ibid.
9 LACADÉE, P. La marque de la subversion freudienne. In: Les Feuillets du Courtil, 1994, nº 8/9. p.21-28. (tradução livre do autor).
10 STEVENS, A. La clinique psychanalytique dans une institution d'enfants. Les Feuillets du Courtil No.01, mai 1989. p.38[ STANDARDIZEDENDPARAG]
11 KUPFER, M. C. M. O que toca à/a Psicologia Escolar. In: SOUZA, M. P.; MACHADO, A. M.. (Orgs.). Psicologia Escolar: em busca de novos rumos. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1997, v., p. 51- 62. p.55.