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ISBN 978-85-60944-08-8 versão on-line

An 6 Col. LEPSI IP/FE-USP 2006

 

Psicanálise em extensão: uma experiência com adolescentes autistas e psicóticos na comunidade

 

 

Ana Beatriz FreireI; Jeanne Marie Costa RibeiroII; Katia Alvares de Carvalho MonteiroIII

Ifreireanab@hotmail.com
IIjeannemarie@uol.com.br
IIIkafer@centroin.com.br

 

 


RESUMO

Este trabalho tem como objetivo apresentar e discutir os efeitos de uma experiência de tratamento na clínica psicanalítica em extensão com adolescentes autistas e psicóticos que visa, na singularidade de cada caso, uma saída subjetiva compatível com algum laço social. A partir do convênio estabelecido entre o Instituto Philippe Pinel e o Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica da UFRJ com o apoio do CNPq, esta experiência é conduzida por profissionais e estagiários de ambas as instituições. Constituiu-se um grupo de trabalho que implementou um novo dispositivo de tratamento para adolescentes atendidos no serviço infanto-juvenil do Instituto Philippe Pinel, através da utilização de recursos externos ao espaço institucional de tratamento no qual esses adolescentes, desde crianças, estão inseridos. Depois de alguns anos de trabalho, a equipe se deparou com impasses ligados à saída das crianças desse serviço, pois, quando adolescentes, resistiam às possíveis tentativas de encaminhamento para serviços de adultos, o que resultava freqüentemente em crises ou agravamento dos casos. Este dispositivo procura manter um lugar vazio de saber, uma vez que nenhuma das equipes das duas instituições se coloca como detentora de todo o saber sobre o adolescente, possibilitando assim o aparecimento da posição subjetiva e singular de cada um nos destinos e circuitos a serem traçados pela cidade. Os adolescentes realizaram atividades fora do ambiente hospitalar, incluindo visitas a museus, centros culturais, shoppings, lan houses, parques públicos, construindo novos percursos pela cidade, através de seus bairros e ruas. Constatamos nesses anos de experiência, que esse dispositivo se distingue do "acompanhamento terapêutico" standard uma vez que não pressupõe um social ou Outro prévio a quem o sujeito deve se adaptar. Nesse dispositivo, tentamos, no caso desses autistas, acompanhar o reviramento possível do Outro louco que faz devastação em direção ao sintoma e ao laço social. Esse dispositivo se diferencia também do standard institucional, pois está aberto às condições e atividades do quotidiano da comunidade e visa, dentro do possível, a construção de um laço social.

Palavras-chave: laço social; autismo; psicanálise.


 

 

INTRODUÇÃO

Este trabalho tem como objetivo apresentar e discutir os efeitos de uma experiência de tratamento na clínica psicanalítica em extensão com adolescentes autistas e psicóticos que visa, na singularidade de cada caso, uma saída subjetiva compatível com algum laço social.

A partir do convênio estabelecido entre o Instituto Philippe Pinel e o Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica da UFRJ com o apoio do CNPq, esta experiência é conduzida por profissionais e estagiários de ambas as instituições.

Este projeto visa à criação de um novo dispositivo de atendimento para adolescentes através da utilização de recursos externos ao espaço institucional de tratamento no qual esses adolescentes, desde crianças, estão inseridos.

O serviço infantil de referência para esses adolescentes foi o NAICAP (Núcleo de Atenção Intensiva à Criança Autista e Psicótica)1. O NAICAP foi o primeiro serviço público para atendimento às crianças psicóticas e autistas na área da saúde. Depois de alguns anos de trabalho, a equipe se deparou com impasses ligados à saída das crianças desse serviço.

O serviço constituiu-se, pelos seus resultados clínicos assim como pela transferência instituída, em um ponto importante de ancoragem para essas crianças e suas famílias. Constatamos que os pacientes, quando adolescentes, resistem às possíveis tentativas de encaminhamento para centros de atendimento de adultos, o que resulta freqüentemente em crises ou agravamento dos quadros. Diante deste primeiro impasse, colocou-se outro paradoxo: como criar no mesmo serviço de acolhimento, que se construiu pelo abrir as portas para essas crianças, a tarefa, nem sempre fácil, de desconstrução, ou melhor, de construir portas de saída. Na realidade, esse impasse se impôs não apenas pela idade cronológica dos pacientes, mas pela evidência constatada, pelos mesmos, das mudanças corporais características desse momento de puberdade. É o que nos evidenciava Carla quando mostrava seu sutiã aos membros da equipe, quando Cláudio se masturbava na oficina DO RE MI ou mesmo Ricardo quando usava o significante adolescente para junto com outros jovens adultos se diferenciar do espaço infantil.

Foi, portanto, seguindo o movimento desses sujeitos – que, cada um à sua maneira, apontavam para a porta de saída, para o exterior do NAICAP – e, ao mesmo tempo, respeitando o vínculo ainda importante com esse serviço, que pensamos em construir um dispositivo que se apresentasse como um ponto entre um dentro e um fora da instituição. Um dispositivo onde cada sujeito, em sua singularidade, pudesse trabalhar esse momento de passagem entre o infantil e o adulto, entre o serviço infantil, NAICAP, e outros possíveis laços sociais.

As atividades deste projeto têm como ponto de partida o Departamento de Psicologia Aplicada da Universidade que se situa no mesmo campus do Instituto Philippe Pinel. Assim, nessa relação de proximidade e distância das duas instituições (ambos, o IPP e a DPA da UFRJ se encontram no campus da Universidade na Praia Vermelha) criou-se uma possibilidade de separação desses jovens do local de referência do hospital infantil e a possibilidade de construção de novos pontos de ancoragem, através de um novo dispositivo clínico. Dessa ex-timidade – exterioridade interna – acreditamos abrir a possibilidade de uma travessia do habitual espaço infantil em direção à construção de novas formas de laço com o outro. A proposta deste dispositivo de passagem é o de criar um espaço "entre instituições": um espaço que mantém certa continuidade com o hospital, pela proximidade espacial, mas ao mesmo tempo separado, pela nova proposta de trabalho. Esse dispositivo procura manter um lugar vazio de saber, uma vez que nenhuma das equipes das duas instituições se coloca como detentora de todo o saber sobre o adolescente, possibilitando assim o aparecimento da posição subjetiva e singular de cada um nos destinos e circuitos a serem traçados pela cidade. Trabalhar a presença na ausência, a circunscrição de um dentro e fora, escansões do tempo, de entrada e saída, são possíveis caminhos para dar tratamento ao gozo enigmático que aparece no momento da puberdade, a partir das modificações no real do corpo. Apostamos assim, que estes sujeitos venham a construir invenções que possibilitem laços inéditos com o social.

 

DO PROJETO

O trabalho foi realizado semanalmente com cada adolescente através de visitas a museus, centros culturais, ateliês, shoppings, ciber cafés etc. As saídas foram organizadas a partir de um trabalho de escuta prévio com cada paciente, nos orientando na construção da direção clínica caso a caso e nos permitindo localizar os lugares, ofertas e possibilidades clínicas.

O dispositivo de trabalho pressupõe uma oferta de atividades fora da instituição infantil de cuidados. Entendemos que o desejo de aprender e a autonomia não surgem ex nihilo, mas de uma oferta feita pelo adulto. Para que essa oferta seja operante é necessário que ela seja adaptada à singularidade de cada caso.

Este trabalho com os adolescentes nos permitiu ratificar os benefícios deste dispositivo. Em relação aos moldes de atendimento do setor infantil psiquiátrico, os adolescentes construíram cada um a seu modo, um percurso próprio a partir do que eles apontaram e do que oferecíamos através das atividades na Comunidade.

A partir desta oferta clínica, alguns jovens vêm construindo novos percursos através da circulação pela cidade. Ricardo, Marina, Luiz José, são alguns dos cartógrafos que pedem passagem no redesenhar dos movimentos do espaço urbano, revelando as marcas de seus encontros.

Este trabalho vem se constituindo a partir dessas trajetórias, singulares em seu propósito. Aventurar-se pelas ruas da cidade requer o reconhecimento dos limites e do tempo de cada um. Neste sentido, a cadência do projeto segue um ritmo muito particular capturado pela marca singular de cada jovem.

Longe de ser meramente um movimento geográfico, este projeto pretende situar-se num para além da simples apropriação objetiva das ruas da cidade. Isto requer tempo.

Ricardo circula de maneira própria pela cidade, circunscrevendo o que há de enigmático de sua história e do que apresenta sua mãe. Este adolescente consegue construir um lugar próprio e menos invasor em relação aos pontos sem sentido de sua história, o que resulta em um apaziguamento. Ele nos ensina, a cada saída pelos bairros da cidade, o trabalho que realiza para revirar em efeito de criação os pontos de devastação da sua história e de sua mãe: das andanças pelas igrejas que era obrigado a realizar quando acompanhava sua mãe quando esta desencadeava crises psicóticas, Ricardo singulariza-se, apropriando-se dessa atividade de andarilho, realizando um circuito próprio nos trilhos e vagões do metrô. Ou ainda, da atitude da mãe de ler livros na sala de espera do NAICAP para evitar laço com outras pessoas, Ricardo cria um espaço de invenção a partir do projeto que o metrô oferece à população intitulado "Livros e Trilhos". Estes significantes, escolhidos por ele não por acaso, parecem-nos apontar para uma forma singular, propriamente sua, de criar e se apropriar do que se apresentava de forma excessiva, ameaçadora e louca do Outro materno. No momento, ele nos indica, através desse trabalho, a possibilidade de fazer uma reviravolta de sua história, transformando o gozo enigmático e impossível de simbolizar do Outro, em efeito de criação – criação propiciadora de um sintoma que o conduz em direção à construção de laços inéditos com o Outro.

Marina, que ratificava o embaraço com os outros e intensificava suas estereotipias nas primeiras saídas à rua, nos indicou que a forma de tratar o Outro louco, o gozo excessivo que a ameaçava, e, conseqüentemente, a maneira possível de fazer laço com o social, era estar entre quatro paredes, sem o imperativo de uma proposta de saída que a colocava ainda mais no lugar de objeto de um Outro consistente e ameaçador. Acatando o que Marina indicava, a equipe se retificou, reavaliando a proposta inicial de sair pela cidade, aceitou sua permanência nas salas de atendimento da DPA. Essa retificação da direção do tratamento de Marina propiciou um trabalho efetivo dela com os clínicos que a acompanhavam. A partir desse momento, Marina consegue criar pequenos objetos e falas, de modo agora menos estereotipado, para assinalar, por exemplo, a ausência e falta da mãe, dos seus votos de ser ouvida sem ser interrompida etc. Esta adolescente aponta, de forma própria, possibilidades de construir com o outro.

Luiz Jorge nos ensina que as saídas, ou as não saídas, devem ser assinaladas por ele e que dentro da sala de atendimento ele consegue pronunciar esboços de demandas até então inéditas em relação ao que apresentava no serviço infantil: fala quando quer sair, esboça formas de demandas e privilegia objetos como o ventilador, o baralho, o lápis etc. Fascinado e visado pelas caixas de brinquedos das salas da DPA, Luiz contabiliza e tenta circunscrever o gozo, como por exemplo no momento em que tenta conter na mão do clínico todos os lápis de cor dispostos em uma caixa . Nessa ocasião, de alguma forma, ele constatou, talvez, um limite, uma impossibilidade de tudo caber e ser ordenado no campo do Outro.

 

DAS INSCRIÇÕES

Postulamos como primeira etapa para essas trajetórias o momento de inscrição no Projeto. Não se trata aqui de uma mera inscrição protocolar, da autorização e da concordância do responsável pelo adolescente ao projeto. Propomos neste momento de inscrição um primeiro ponto de ancoragem em que mãe e filho respondem, diante da equipe, com sua letra ou assinatura, pelo seu engajamento e, dentro do possível, pela sua disposição e interesse por essa proposta clínica.

DA INSCRIÇÃO DE RICARDO

Ricardo, ao entrar na sala da equipe e ser apresentado aos seus membros, pergunta: "O que é o projeto?" Após a explicação de que o projeto é voltado para adolescentes, com passeios aos locais da cidade, escolhidos por eles, Ricardo sugere vários lugares e novamente pergunta: "Quais são as regras do Projeto?". Depois de ouvir a resposta de que as regras ainda serão construídas, ele nos interroga sobre o limite de idade permitido para a participação no Projeto. Ricardo enfatiza bastante o fato de que o projeto terá a participação apenas de adolescentes e adultos, sem permissão para as crianças. Quer saber também "qual será o expediente do Projeto". Um clínico entrega o documento para que Ricardo possa assinar, caso tenha realmente interesse. Geralda, mãe de Ricardo, se antecipa e pega o papel da mão do filho para ler, mas um outro clínico intervém dizendo que aquele documento é para Ricardo e que havia outro destinado a ela. Esta devolve o papel e Ricardo lê atentamente e decide assinar.

DA INSCRIÇÃO DE LUIZ JORGE

É Rita, mãe de Luiz, quem toma a frente no momento da inscrição do filho no Projeto. Ao saber que outros dois adolescentes também do Instituto Phillipe Pinel fazem parte do Projeto, fala da impossibilidade de Luiz escolher alguma atividade. Ele é bem diferente dos outros dois, que já conseguem fazer uma escolha, diz.

Um clínico apresenta a ficha de inscrição a Luiz. Rita impõe sua presença com várias perguntas e se interpõe no diálogo entre o clínico e Luiz, dizendo que este não sabe escrever. Este clínico intervém, colocando que ele pode então se inscrever, a sua maneira, fazendo um desenho ou qualquer traço no papel. Luiz pega então a caneta, faz vários traços e diz a palavra "Multi-Market," nome de um supermercado em Niterói onde gosta de passear, segundo a mãe. Luiz faz, assim, valer sua escolha e marca sua inscrição no projeto.

DA INSCRIÇÃO DE MARINA

Telma, mãe de Marina, afirma que ela quase não conhece nenhum lugar e em função disso será muito difícil escolher um local que deseja visitar. Marina não sai de casa para nada, apenas para ir ao Pinel, diz. Contudo com o desenrolar da entrevista Marina nos fala sobre a "Fazenda Alegria".

No momento da inscrição, Telma pede que Marina leia a palavra "inscrição" e sozinha lê o resto do texto. Usando algumas letras de seu nome, o A e o R, Marina assina sua inscrição.

Vamos nos ater, para desenvolver esse trabalho, no percurso realizado por Ricardo neste projeto.

SAÍDAS NO PROJETO COM RICARDO

"se energizando e trilhos energizados"

Durante o percurso de uma saída à rua, Ricardo fala sobre uma questão com a qual vai se ocupar em muitos momentos, ao longo de seu trabalho: os gastos com o dinheiro e com o tempo. Diz: "não podemos gastar mais dinheiro" e "estamos fazendo um bom trabalho no horário". Pergunta pelos outros adolescentes. Ao saber que ainda não puderam começar as atividades do projeto, fala: "minha mãe foi rápida e eu logo fiz a minha inscrição no projeto". Ao mesmo tempo, demonstra certa preocupação por estar tendo a atenção toda dirigida para ele, perguntando várias vezes quem fez a inscrição no projeto, sugerindo passeios e percursos para fazer quando estiverem todos juntos.

Neste dia Ricardo propõe: "hoje, como o combinado, vamos usar a internet pagando menos. Bem menos mesmo". Já na estação do metrô repete diversas vezes "Cuidado! Trilhos energizados!", sublinhando a proibição de pisar na faixa amarela. Refere-se também a um canal de televisão chamado "Alta Tensão" e olhando para o túnel do metrô diz: "os cabos alimentam os trilhos energizados com 750W". Utiliza-se desse mesmo significante "energização" para falar de sua própria alimentação. Quando faz um lanche está "se energizando". Fala que vai atravessar os trilhos e quem atravessa ganha 300 reais. Diz: "essa travessia é um desafio de morte". O clínico intervém, dizendo que não é permitido andar nos trilhos, mas Ricardo retruca, explicando que "é permitido andar nos blecautes". O clínico diz, então, que os blecautes são situações de exceção e lembra que Ricardo já havia dito que só funcionários podem andar nos túneis do metrô, com capacete e com os trilhos desligados. Logo em seguida Ricardo quer saber quanto dinheiro o CNPq dispensa para os projetos e acrescenta: "O CNPq só dá dinheiro para projetos excelentes". Logo em seguida diz: "quero sair com eles", referindo-se, aqui, aos outros adolescentes.

Esta seqüência no indica que Ricardo parece estar realizando um trabalho de contabilização do gozo: gastar menos dinheiro, ganhar mais tempo; energizar-se, comendo; desafio de morte frente ao excesso de energia nos trilhos, quando se infringe a proibição. Indica-nos também, que está sendo excessivo, para ele, a idéia de que todo o gasto de dinheiro e todo o investimento do projeto estariam dirigidos a ele, fazendo apelo à entrada de outros adolescentes no projeto.

Algumas questões se abrem para a equipe: haveria risco de passagem ao ato? Qual o lugar, o estatuto da máquina – computador, metrô etc. – e do significante "alta tensão" no percurso que Ricardo vem construindo desde o serviço infantil? Como veremos mais adiante, no momento de separação do clínico que o acompanhava, fala que precisa amarrar os fios do computador, repetindo: "Alta tensão".

A equipe se interroga, a posteriori, a partir dos trilhos energizados, onde situar o lugar do significante "alta tensão" para Ricardo. Será trilhos energizados uma construção inventiva que deve ser acolhida de um significante da alíngua, uma devastação, que pode ter como dobradiça uma invenção inédita, ou um sintoma que propiciará um possível laço social?

"Não quero saber de morte, só quero saber de vida"

Primeiro dia em que outra adolescente, Marina, sairia com Ricardo, mas telefonou avisando que não poderia vir. Ricardo fala: "Ela tem outro compromisso, eu sempre venho!". O clínico diz que desta vez Marina "furou". Ricardo, então, diz: "eu furei uma vez. Cheguei atrasado. Mas eu furo menos. Chego sempre antes do horário para não furar". O clínico intervém: "Todo mundo pode furar às vezes. Ficamos chateados, mas acontece". Ricardo diz: "Estou triste sem a Marina". No caminho para Urca, que havia sido escolhido como saída neste dia, Ricardo diz: "já fui a uma internet na Urca, mas não vou dizer o nome". Acaba falando é "Xsite".

O percurso que Ricardo vem desenhando pela cidade é marcado por pontos de ancoragem: as lan houses, que visita em cada bairro, realizando, no computador, percursos pelos sites que escolhe.

Neste mesmo dia, ao passarem embaixo do bondinho do Pão de Açúcar, Ricardo olhou para os cabos e disse: "Uma vez, em 2000, os cabos se romperam. Não teve vítimas fatais! Vou torcer para os cabos romperem!" O clínico, assustado, pergunta: "Por quê? Você quer que as pessoas morram?". Ricardo responde prontamente: "Não quero saber de morte, só quero saber de vida!" No que imediatamente o clínico responde: "Eu também".

Ao saírem do ônibus, Ricardo diz que vai fazer uma reclamação do ônibus 426, pois custa 2 reais e parece uma câmera frigorífica: "Eu rejeito o 426!" Depois acrescenta: "Rejeito 30%". Comentando sobre as árvores que precisam ser cortadas para permitir uma melhor visão do mar, diz: " Tem que cortar 30%". Ao chegar de volta ao ponto de partida, fala: "Meu coração está triste sem Marina".

Na discussão em reunião de equipe uma questão se apresenta. A intervenção do clínico utilizando-se do significante furar teria propiciado um esvaziamento, uma perda de gozo do Outro, já que Ricardo responde com os "30%", indicando, assim, que em sua contabilização de gozo já há um resto?

Presentificando os furos ("furei uma vez", "furo da Marina") e a ausência da Marina, Ricardo parece apontar para uma extração possível do gozo que viria de um Outro louco em direção a um objeto presente e desejado pela sua ausência (Marina). Este processo de simbolização nos faz pensar na trajetória deste menino: de um sujeito do gozo para um sujeito do significante (atualmente sustentado pelo S1 adolescente).

A partir desse projeto, com essas trajetórias que se iniciam, acreditamos possibilitar, para cada adolescente, uma possível extração e circunscrição do excesso de gozo. Esta possível extração tem como conseqüência a passagem, para cada um, da condição de sujeitos apenas do gozo para sujeitos do significante. A partir da criação e das invenções de cada um com os recursos da comunidade, apostamos na construção de um sintoma que possa retirá-los do mundo sem laço com o outro.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FREIRE, Ana Beatriz. Aprendendo com o NAICAP: uma transmissão clínica. In: Autismo e Psicose na Criança: Trajetórias Clínicas. RIBEIRO, Jeanne M.L. C. e MONTEIRO, K. (organizadoras), Rio de Janeiro: Editora 7 letras, 2004.

RIBEIRO, Jeanne Marie C.; MONTEIRO, Katia A.C. A "Prática entre Vários" e a Invenção do sujeito. In: Autismo e Psicose na Criança: Trajetórias Clínicas. RIBEIRO, Jeanne M.L. C. e MONTEIRO, K. (organizadoras), Rio de Janeiro: Editora 7 letras, 2004.

STAVY, Yves-Claude, L’Enfant aux échasses. In: La Cause Freudienne, nº 62, Nouvelle Revue de Psychanalyse, Paris, ed. Navarin, 2006.

 

 

1 Em 2004 os dois serviços para atendimento infanto-juvenil do Instituto Philippe Pinel (NAICAP e COIJ) integraram-se constituindo um novo serviço, sob nova denominação Serviço de Atendimento Intensivo Infanto Juvenil (SAIIJ).