6Psicanálise em extensão: uma experiência com adolescentes autistas e psicóticos na comunidadeRelato de uma experiência em psicanálise e educação... em uma clínica-escola de psicologia author indexsubject indexsearch form
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On-line ISBN 978-85-60944-08-8

An 6 Col. LEPSI IP/FE-USP 2006

 

Pratique à plusieurs1: reflexões sobre uma experiência na instituição belga2 Le Courtil3

 

 

Kelly Cristina Brandão da Silva

kelly-cristina@gmx.net

 

 


RESUMO

O presente trabalho tem como objetivo discutir uma experiência de estágio realizado na instituição belga Le Courtil, que se ocupa de casos de autismo e psicose em crianças e adolescentes. A Psicanálise lacaniana orienta a montagem institucional através da pratique à plusieurs, expressão nomeada por Jacques-Alain Miller em 1992. As condições para essa prática são estruturadas a partir de quatro eixos: a parceria de cada membro da equipe com a criança ou o adolescente, a reunião de equipe, a função do diretor terapêutico e a referência teórico-clínica. Um caso é apresentado para ilustrar essas reflexões.

Palavras-chave: autismo; psicose; pratique à plusieurs.


 

 

"C’est le français!"4 Essa era a frase derradeira que eu ouvia do adolescente Dan5 sempre que eu o questionava – indignada – a respeito das incongruências do idioma francês.

Minha passagem pelo Le Courtil foi marcada pela dificuldade com o idioma. Dan, desde o início, interessou-se pela estagiária brasileira e quis aprender algumas expressões em português. Aos poucos ele foi se tornando meu professor de francês – muito exigente em relação à minha pronúncia – e dedicávamos cada vez mais tempo às traduções e leituras de romances que ele escrevia.

 

Um pouco de história

Dan, que na ocasião do meu estágio tinha 15 anos, nasceu na Romênia e foi adotado por um casal francês. Os pais adotivos relatam que sua infância foi marcada por longos períodos de pesadelos, crises de violência e momentos de ausência. Os pais, desde cedo, engajaram-se numa empreitada educativa. Ele aprende a ler com a mãe, antes de ir à escola. Esse tempo parece marcado por alucinações e pensamentos delirantes, de um lado, e exigências exclusivamente educativas dos pais, de outro.

Ele é internado. O psiquiatra conclui que Dan vive o semelhante como um perigo, fechando-se em suas idéias delirantes, o que parece ser um mal menor frente às crises de agressividade. Dentro dessa concepção, o que o psiquiatra propõe é deixar Dan na segregação e não operar seu delírio. Sem deslocamento.

Ao chegar no Courtil, com 11 anos, propõe-se um outro caminho a Dan. Sua violência é sim interditada, mas não sua enunciação. Ele começa a falar regularmente de sua agressividade (o desejo de bater na sua mãe; os murros nas paredes da casa... ) e a ler os romances que escreve. Todos seus textos são assinados com um pseudônimo. Com deslocamento.

 

La pratique à plusieurs

Conforme Di Ciaccia (2005), a expressão pratique à plusieurs foi nomeada por Jacques-Alain Miller em 1992, referindo-se a uma prática utilizada por uma instituição que se ocupava de casos de autismo e psicose em crianças e adolescentes. As condições para essa prática, segundo Di Ciaccia (2005, p. 12), são estruturadas a partir de quatro eixos: a parceria de cada membro da equipe com a criança, a reunião de equipe, a função do diretor terapêutico e a referência teórico-clínica.

Em relação à parceria de cada membro da equipe, pode-se dizer que cada um deve apresentar-se frente à criança despido de sua especialidade (seja ela pedagogo, psicólogo, psicanalista ou qualquer outra) e a partir de sua própria posição subjetiva, ou sua própria presença, munido de um desejo de encontro. Essa parceria tem como prerrogativa o intercâmbio entre os membros da equipe, não a serviço do melhor funcionamento da instituição e sim às exigências estruturais dessas crianças e desses adolescentes.

A função da reunião de equipe não se limita a ser um lugar de comunicação de informações ou coordenação do trabalho. É um lugar onde se fala da criança, se sustenta um discurso sobre ela a partir da fala dos diferentes membros. Oferece-se à criança a chance de ser efeito de um discurso. Outra função é promover a separação para cada membro da equipe em relação ao seu saber sobre a criança. É a possibilidade da elaboração de um saber além do individual.

O diretor terapêutico é responsável para que tudo funcione em referência a uma meta precisa. A meta em questão é validar ou não o axioma de Lacan – que diz que a criança autista está dentro da linguagem, mas fora do discurso.

O quarto eixo é a referência teórico-clínica: a psicanálise freudiana e os ensinamentos de Lacan. Este trabalho teórico sobre a prática clínica se elabora dentro de cada equipe e entre várias instituições, sem, portanto, instituir uma pessoa ou uma instituição como um pretenso lugar de suposto saber. O saber em questão não é da ordem da suposição e sim da exposição.

 

Meu encontro com Dan

Considero que o meu encontro com Dan possa ser analisado a partir do primeiro eixo da pratique à plusieurs. Naquela ocasião eu me coloquei perante ele como uma estrangeira, recém-chegada à Bélgica, cheia de dificuldades com o francês. De repente Dan pôde deslocar-se para uma posição totalmente inusitada: a de professor! Corrige meus erros, procura sinônimos para as palavras que eu não conheço, começa a digitar os romances para que eu leia, porque tenho muita dificuldade em entender sua letra, e organiza uma lista de dicas com o seguinte título: Pour Kelly - mots, expression et prononciation courante em français6.

Ao me apresentar como um ser faltante, barrado, criou-se um espaço privilegiado entre nós em referência à língua francesa, essa sim o tesouro dos significantes. Dan pôde colocar-se como mediador entre mim e esse tesouro. Mesmo tendo essa função, ele conseguia alternar momentos de completude e falta. Ora ele detinha todas as respostas às minhas perguntas, ora ele mesmo precisava pedir ajuda a algum intervenant7 em relação a um sinônimo. "C’est le français!", ou seja, há algo que nos coloca em posição de semelhantes, em referência à mesma Lei.

No meu último dia de estágio Dan, que gostava muito de esportes, me presenteou com uma camiseta da Copa do Mundo de 1998, com bandeiras da França e do Brasil, na qual ele assina com o mesmo pseudônimo que usava em seus romances. Apesar da ironia, fica como um significante desse encontro.

 

Algumas considerações finais

Como nos diz Zennoni (1991, p.103), "(...) a orientação de uma prática institucional que trata da psicose infantil é solidária à construção clínica que ela elabora". A prerrogativa do intercâmbio dos intervenants no Le Courtil, em que cada dupla de adultos fica somente um dia por semana com cada grupo de crianças e adolescentes, mostra como a psicose é pensada e, portanto, que o dispositivo institucional está lá a serviço dessa teorização e não por questões burocráticas.

Se para a Psicanálise a questão da psicose relaciona-se com o Outro, invasivo, onipresente e onisciente nada mais coerente do que uma montagem institucional onde a alternância seja a tônica. Alternância de sujeitos, de desejos, de encontros. Deslocamento. A multiplicidade de discursos protege as crianças e os adolescentes de serem capturados pelo gozo totalitário. A alternância tem efeito de corte de gozo.

Ainda sobre a alternância:

"Ora, propor uma alternância entre as atividades não seria algo próximo de se buscar o giro discursivo na direção do discurso analítico? Não estaria havendo aí a tentativa de se provocar, por uma manobra da transferência, uma mudança na posição de objeto em que se encontrava essa criança ?" (KUPFER, 1996, p. 27).

Durante as reuniões semanais de equipe no Le Courtil todos eram convidados a falar de suas impressões, experiências e estranhamentos com as crianças e adolescentes. O dispositivo do rodízio entre os intervenants mostrava-se mais uma vez eficaz, pois inúmeras vezes os membros se surpreendiam com esta ou aquela intervenção, este ou aquele comentário. Os saberes individuais cediam. E no encontro subseqüente com a criança ou o adolescente já havia elementos novos.

Na minha curta experiência no Le Courtil – um estágio de dois meses8 – pude constatar que os efeitos da pratique à plusieurs são bastante efetivos principalmente nas crianças e nos adolescentes que já têm o recurso da fala e para aquelas que usufruem minimamente do laço social. Nos casos mais graves de autismo e mesmo de psicose esses efeitos são menos evidentes. Talvez menos por razões teóricas e mais por escolhas inconscientes dessa instituição.

Para concluir, lembro de uma frase de Véronique Robert – uma das diretoras terapêuticas do grupo onde fiz estágio e minha supervisora nesse percurso – "Desde a entrada da criança no Le Courtil já apontamos que um dia ela terá que partir".

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

DI CIACCIA, Antonio. A propos de la pratique à plusieurs. In: Les Feuillets du Courtil, n° 23. Leers-Nord: Champ Freudien en Belgique, 2005. p. 11 – 17.

KUPFER, Maria Cristina. A presença da psicanálise nos dispositivos institucionais de tratamento da psicose. In: Estilos da Clínica, ano 1, n° 1. São Paulo: IPUSP, 1996. p.18-33

ROBERT, Véronique. Préférer quelques autres... à son délire et à ses voix. In: Mental, n° 15. Paris: Nouvelle École Lacanienne, 2005. p. 154 - 158

ZENNONI, Alfredo. Traitement de l’Autre. In: Préliminaire, n° 3. Bruxellas: Antenne 110, 1991. p. 101-112.

 

 

1 Prática em vários.
2 Le Courtil: instituição belga que atende crianças e adolescentes psicóticos e autistas.
3 Esse texto foi aceito e será publicado na edição de nº 13, no 2º semestre de 2006, da Revista Imaginário- USP
4 "É o francês!"
5 O nome foi alterado.
6 Para Kelly – palavras, expressão e pronúncia corrente em francês.
7 Intervenant, aquele que intervém. Assim são nomeados todos os adultos que trabalham com as crianças e adolescentes no Le Courtil
8 O estágio foi realizado nos meses de maio e junho de 2005.