6Pratique à plusieurs: reflexões sobre uma experiência na instituição belga Le CourtilA atuação do psicanalista no apoio a professores frente à inclusão author indexsubject indexsearch form
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On-line ISBN 978-85-60944-08-8

An 6 Col. LEPSI IP/FE-USP 2006

 

Relato de uma experiência em psicanálise e educação... em uma clínica-escola de psicologia

 

 

Leandro Alves Rodrigues dos Santos

leandro.psi@uol.com.br

 

 


RESUMO

Trata do relato de uma experiência prática, a implantação e a operacionalização de um núcleo de supervisão para estudantes quintoanistas do curso de Psicologia em uma instituição de ensino superior. Historiciza o percurso, desde a criação do núcleo, em 2004, até os dias atuais e, por meio de um relato das especificidades dos atendimentos à clientela, aborda as questões cotidianas das intervenções, permitindo pensar no alcance e nas possibilidades de uma prática estruturada a partir das descobertas dos pesquisadores do campo da psicanálise e educação. Conclui, de modo preliminar, que a passagem da teoria para a prática é um momento crucial de checagem das teorizações efetuadas anteriormente e, principalmente, um ponto precioso no qual pode-se colocar em cheque as hipóteses de trabalho e as perspectivas futuras.

Palavras-chave: Psicanálise e educação; prática institucional; psicanálise em extensão.


 

 

Os cursos de Psicologia, em sua grande maioria, mantém uma tradição na estrutura das grades curriculares que colaboram para a formação dos futuros psicólogos: um rol de disciplinas, de cunho teórico, oferecidas durante os quatro anos iniciais e, no último ano, vários estágios supervisionados, nos quais o aluno, agora estagiário, poderá promover o cruzamento entre a teoria, apresentada durante os anos anteriores, e a prática, envolvendo-se com atendimentos à comunidade, dispostos em vários formatos, por meio da clínica-escola de sua instituição de ensino.

É neste terreno que este trabalho trafegará, pois visa problematizar os meandros de uma experiência relacionada com essa prática anteriormente citada: a implantação e a operacionalização de um núcleo de supervisão, para estudantes quintoanistas do curso de Psicologia em uma instituição de ensino superior, localizada na região do Grande ABC, em São Paulo.

O leitor poderá perceber que o título deste trabalho porta reticências em seu enunciado e, devemos lembrar, elas não são gratuitas, pois ajudam a demarcar dois momentos de reflexão: primeiramente algo que tangencia a seara da psicanálise e educação, uma intersecção que, já há um bom tempo, vem trazendo à luz diversas modalidades de produções teóricas, de experiências inovadoras e, especialmente, esforçando-se para sustentar teoricamente esse fazer tão complexo e ao mesmo tempo tão rico. E, num momento subseqüente, os aspectos e especificidades de uma experiência diretamente inspirada por esse campo numa clínica-escola, território privilegiado da prática de psicólogos – com ou sem o certificado formal – estagiários e supervisores defrontando-se com o número significativo de grande parte da população que busca por esses serviços especializados, muitas vezes encaminhados por postos de saúdes igualmente abarrotados e por outras instituições congêneres, como aquelas das faculdades de Medicina da região.

Pensar, portanto, em uma transmissão do que é produzido nesse campo dentro da universidade não é uma empreitada tão tranqüila, a menos que se pense em uma apresentação mecânica dos conceitos, uma leitura superficial e "academicista" – no mau sentido – das descobertas e das relações entre o texto freudiano e o mal-estar que parece ser inerente à educação.

No caso específico de um curso de Psicologia, a tarefa parece ser ainda mais complicada, pois o mosaico de teorias e concepções de homem e de mundo que fazem parte organicamente de sua estrutura, muitas vezes obscurecem o olhar do estudante para o futuro de sua profissão, para o momento de fazer algo com o conhecimento que lhe é apresentado, dia após dia.

A própria criação desse núcleo corrobora essa hipótese, pois nesse curso as disciplinas de quinto ano são eletivas, porém o estagiário deve optar sempre por três áreas, sendo uma disciplina por área, a saber: atendimento individual – ou psicoterapias em várias linhas teóricas – nos moldes mais clássicos; atendimento em grupo, ou psicoterapias em grupo, atuação em comunidades com grupos; e, por fim, atividades institucionais, como por exemplo, as modalidades específicas de atuação em empresas, hospitais, presídios e, também, na educação.

Para que um núcleo possa ocorrer, é necessário um número mínimo de estagiários inscritos e, até 2004, a possibilidade de algo que se relacionasse à educação se dava por meio de ofertas com núcleos nomeados como "psicologia e educação" ou ainda "psicologia escolar", com uma oferta de trabalhos desenvolvidos em escolas, calcados em uma prática mais crítica e que se distinguiam do clássico modelo em que se sucediam "psicodiagnóstico-laudo-encaminhamento", tão criticado por não levar em consideração a multiplicidade de fatores que antecedem uma queixa escolar.

Mesmo assim, a procura por esses núcleos era pequena e, portanto, eles não ocorriam. Num dado momento, houve a idéia de fazer algo diferente e iniciou-se então a oferta do núcleo "psicanálise e educação", num primeiro momento calcada em minha experiência como psicólogo que atuava no campo da educação a partir do referencial psicanalítico – que culminou na dissertação intitulada "Psicanálise: uma inspira-ação para a psicologia escolar?", que defendi em 2003 –, mas fundamentalmente pela expectativa de que algo pudesse se viabilizar nas questões da educação, lacuna ainda presente no quinto ano do curso.

Em 2004 inicia-se a primeira turma, sobre a qual ainda não se pode afirmar a razão do interesse pelo núcleo, se por um certo fascínio que a palavra "psicanálise" exerce nos estudantes ou ainda se algo da ordem da transferência com o supervisor. E, desde então, o núcleo tem sido bastante procurado, tendo agora, portanto, decorridos praticamente três anos de experiências práticas que podem resultar em um olhar mais aprofundado sobre esse percurso.

A idéia central deste núcleo é abranger, fundamentalmente, intervenções em questões da educação tomando como base os referenciais da psicanálise, investigando e operacionalizando modalidades específicas de atendimentos orientadas por essa teoria. Isso se dá mais especificamente no acolhimento de casos oriundos de queixa escolar. Nesses casos, o núcleo oferece um atendimento à criança, efetuado por um estagiário, e aos pais, por outro estagiário, ao mesmo tempo, concomitantemente. O participante do estágio tem a possibilidade de criar, estruturar e colocar em prática algumas estratégias que abordem essas e outras temáticas que eventualmente apareçam nos discursos dos pais, da criança e da escola. Todas essas intervenções são inspiradas pelo referencial psicanalítico, partindo mais especificamente de teorizações publicadas por autores desse campo de pesquisa, que seguem majoritariamente o ensino de Freud e Lacan.

O objetivo principal, mas não o único, é introduzir o aluno em um novo campo de pesquisas, resultante dessa intersecção entre a psicanálise e a educação. Tem como intenção proporcionar um conjunto de experiências que tenham como fio condutor a detecção de questões, demandas e problemáticas relacionadas ao cotidiano da educação, que resultem na elaboração e na operacionalização de intervenções atravessadas pelo referencial psicanalítico.

O método que foi construído nesse percurso, aprimorado pelas dificuldades, pelos percalços e pelos obstáculos, consiste em que cada estagiário atenda por até quatro encontros os sujeitos, passando pelas crianças e pelos pais, com o intuito fundamental de implicar os sujeitos, partindo da queixa inicial, visando transformá-la em demanda de atendimento. Considerando-se a procura significativa da população e o acúmulo crescente de casos, cada dupla de estagiários atenderá mais de um caso, um deles com a criança e o outro com os pais, invertendo no segundo caso, seguindo a estratégia criada no começo do semestre letivo, sob a orientação do supervisor. A supervisão consiste, essencialmente, no relato de fragmentos das intervenções, articulação com os textos de pesquisadores do campo, estruturação de hipóteses diagnósticas e direção do processo. O relatório individual, que visa formalizar a conclusão do estágio, tenciona sistematizar uma forma de apreensão da experiência por parte do aluno, para além do suposto "erro" ou "acerto", mas ao contrário, a partir de um exercício regular de pensar o próprio ato. Há ainda, no final do estágio, uma apresentação da dupla, a ser definida no final do semestre, com recursos audiovisuais, aliando a experiência e a teoria. O conceito final, que atende os ditames da burocracia institucional, leva em consideração todos esses aspectos, especialmente a implicação do estagiário durante o desenrolar do semestre. Uma peculiaridade que vale a pena ser descrita é sobre a avaliação, pois os estagiários, sempre se mantendo em duplas, redigem uma questão – que exija um raciocínio analítico do colega para responder, para além das empobrecedoras memorizações – e enviam por correio eletrônico ao supervisor, que monta avaliação e a re-envia para todos os estagiários. Estes respondem-na, sempre em duplas, e enviam esse material para outra dupla, que a "corrige", dá uma nota e lhe explica as razões dessa nota, procurando contribuir para a formação dos colegas. Essa estratégia tem uma razão simples sustentando-a: que os estagiários possam se colocar no lugar do professor e sentir "na carne" o quão difícil é ocupar esse papel, advertindo-os que lidar de uma forma crítica ou menos ingênua com queixa escolar não é, simplesmente, culpar professores, pois não é fácil fazer parte dessa profissão... impossível, parafraseando Freud.

Nos dias atuais, com o núcleo já consolidado e com uma pequena história, é interessante notar os efeitos dessa experiência nos estagiários, que vem de uma formação na qual a escuta do singular, da subjetividade ou, de forma mais direta, do inconsciente, não se dá da mesma forma, pois não é patologizado, nem tampouco classificado, mensurado ou até mesmo naturalizado em termos biológicos ou produtos das diferenças sociais e de classes. Não, a presunção é que o estagiário possa, partir de seu ato, de seu fazer, promover movimento na queixa, ainda difusa e profundamente imaginarizada, com os já clássicos termos: "hiperativo", "disléxico", "portador de inúmeros déficits e transtornos", implicando os pais e também a criança nesse encaminhamento que, muitas vezes, é decidido pelo outro, quer seja pela instituição escolar, pela medicina em suas diversas especialidades e também por profissionais da fonoaudiologia, da psicopedagogia. Aos pais interroga-se sobre o que eles acham disso tudo e, o que eles podem fazer pelo seu filho, por uma questão que será esmiuçada, não tanto por esse núcleo, até pela brevidade dos encontros, mas possivelmente por outros atendimentos que venham a decorrer daí, se for o caso. Cabe marcar que, muitas vezes, após os quatro encontros, é dito aos pais que a criança não necessita, a priori, de atendimento psicológico, pois se trata possivelmente de uma questão de cunho pedagógico e que, na escola isso poderia ser tratado. Cabe aos pais agora se posicionarem de outra forma frente a este "pedido" da escola ou do médico e seus pares.

Os textos utilizados(1), que não poderão ser esmiuçados aqui, por uma questão de espaço, trazem em seu bojo teorizações que emulsionam esse modus operandi um tanto quanto diferenciado, que destina um outro lugar ao estagiário e que, indiretamente, o impulsiona a fazer o mesmo com os pais e com as crianças que lhe demandam por algo que não é tão facilmente definível.

O que talvez mais importa, para além do que é pedagogicamente considerado, é que essa experiência causa um impacto no aluno, o surpreende com os efeitos de sua escuta e de seu posicionamento, mesmo que este ainda não esteja envolvido com seu tratamento analítico que é insubstituível para aquele que pensa em lidar com pessoas e envolver-se com qualquer desdobramento do que pode se chamar cura ou tratamento "psi". O que inquieta os alunos é que, ao ocuparem um outro lugar e, especialmente, ao destinar um lugar diferenciado às crianças e aos pais, não de objetos, mas de sujeitos, lembrando a radicalidade da postura do psicanalista, isso por si só já produz pequenos giros. Giros estes que podem não se sustentar, que podem ser fugazes e evanescentes, mas que, naquele determinado momento, são cruciais e podem potencializar nos sujeitos movimentos que os levem a encarar as coisas de outra forma, saindo de uma passividade preocupante frente ao discurso do outro.

As perspectivas futuras deste núcleo parecem ser promissoras, os encaminhamentos redundam em procura por parte dos pais, tanto para eles quanto para as crianças e para os adolescentes. Uma dificuldade adicional reside nos casos de psicose, encaminhados por representarem uma alteridade muito difícil de ser aceita, pois funciona muito diferententemente daquilo que o ideal médico-pedagógico preconiza e espera da criança "normal", segundo os ditames desenvolvimentistas. Afinal, quatro encontros apenas ajudam para diagnosticar, mas efetivamente trata-se de uma questão que necessita de longos períodos de tratamento, pela complexidade e pelos episódios que já marcaram esse sujeito, antes de sua chegada ao núcleo.

Concluindo, a psicanálise pode inspirar outras práticas, pode abordar os sinais que vem do mal-estar que assola o laço social, pode colaborar para a formação de futuros psicólogos, mas esse "pode" deve ser tomado como possibilidade e, não como potência idealizada, quase fálica, que suture nossa falta, ocupando um lugar questionável de panacéia que supostamente resolverá nossas angústias. Persistir e continuar criando possibilidades é o que parece ser a escolha mais razoável.

 

REFERÊNCIAS:

SANTOS, L .A. R. Psicanálise: uma inspira-ação para a psicologia escolar? São Paulo, 2003. 111p. Dissertação (Mestrado em Psicologia) – Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, 2003.

 

(1) BIBLIOGRAFIA UTILIZADA NO NÚCLEO "PSICANÁLISE E EDUCAÇÃO:

DUARTE, L. P. L. A compulsão à repetição nas brincadeiras infantis. Stylus. Rio de Janeiro, n. 8, p. 109-120, 2004.

DUARTE, L. P. L. A guarda dos filhos na família em litígio. Rio de Janeiro, Lúmen Júris, 2006. p. 163-172.

KUPFER, M. C. M. A escrita na clínica psicanalítica com crianças. In: COLÓQUIO DO LUGAR DE VIDA/LEPSI, 3., 2002, São Paulo. Anais. São Paulo: Laboratório De Estudos E Pesquisas Psicanalíticas E Educacionais Sobre A Infância IP/FE-USP, 2002. p. 53-59.

LACAN, J. (2001) Outros escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. p. 369-370.

MARTINHO, M. H. Dona Encrenca: a questão do imaginário na direção do tratamento. Marraio. Rio de Janeiro, n.1, p. 73-80, 2001.

MINUZZI, D. et al. Especificidades no trabalho de entrevistas iniciais. Estilos da Clínica. São Paulo, ano VI, n. 10, p. 163-166, 2001.

MORAES, Z. B. O feminino, a feminina... uma questão de fé. Letra Freudiana. Rio de Janeiro, ano XVII, n. 23, p. 139-144, 1999.

SANTIAGO, A. L. B. A inibição intelectual na psicanálise: Melanie Klein, Freud e Lacan. São Paulo, 2000. 301f. Tese (Doutorado em Psicologia) – Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo. 2000. p. 36-58.