6A atuação do psicanalista no apoio a professores frente à inclusãoA insistência do singular: psicanálise e formação de profissionais da saúde author indexsubject indexsearch form
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On-line ISBN 978-85-60944-08-8

An 6 Col. LEPSI IP/FE-USP 2006

 

Impasses na inclusão de uma criança com transtornos invasivos do desenvolvimento1: sobre a posição da professora

 

 

Luciana Pereira Braga

 

 


RESUMO

Este trabalho pretende discutir se a posição discursiva do professor afeta o processo de inclusão escolar de crianças com transtornos invasivos do desenvolvimento.

Palavras-chave: escola; inclusão escolar; psicanálise.


 

 

A questão que este trabalho pretende discutir é se a posição discursiva de um professor pode afetar o processo de inclusão escolar de uma criança com transtornos invasivos do desenvolvimento. Esta interrogação surgiu da minha prática como uma profissional de um grupo interdisciplinar que é responsável por acompanhar o processo de inclusão escolar de crianças com este tipo de transtorno, atendidas na Pré-escola Terapêutica Lugar de Vida.

Trata-se da prática do Grupo Ponte, que é a equipe do Lugar de Vida que realiza o acompanhamento do processo de inclusão em escolas regulares das crianças ali atendidas. Ele é formado por profissionais da área da saúde, saúde mental e da educação, que têm sua atuação guiada pela psicanálise lacaniana. Esses profissionais vão às escolas oferecer o que, a princípio, chamamos de suporte, na busca de estabelecer uma parceria com a escola e oferecer um espaço de fala e escuta para os seus profissionais, acreditando que isto pode trazer benefícios para o processo de inclusão. Além das visitas às escolas, são realizadas reuniões mensais no Lugar de Vida para as quais são convidados os profissionais das escolas envolvidas com os pacientes da instituição para discutir questões relacionadas à inclusão trazidas por eles e também são recebidos outros profissionais interessados no tema.

O trabalho do Grupo Ponte está relacionado ao fato de que, no Lugar de Vida, a inclusão escolar é tida como um dos eixos do tratamento das crianças, justamente porque pode proporcionar ganhos para a sua constituição subjetiva. Há outros dois eixos que direcionam o funcionamento da instituição: o campo institucional e a escolarização. O conjunto destes três eixos constitui a Educação Terapêutica que é uma concepção de tratamento formulada pela psicanalista Maria Cristina Machado Kupfer, uma das criadoras da instituição, que fundamenta os atendimentos ali oferecidos.

Existem alguns trabalhos que expõe com detalhes os pressupostos desta concepção de atendimento e de inclusão escolar. São eles o livro "Educação para o futuro" de Maria Cristina Machado Kupfer (2001), a dissertação de mestrado de Marise Bartolozzi Bastos (2003) e o livro "Travessias" organizado por Fernando Anthero Galvão Colli e Maria Cristina Machado Kupfer (2005).

Em minha experiência no Lugar de Vida, como membro do Grupo Ponte, observei que há casos em que a relação professor-aluno se configura de tal forma que impede a inclusão escolar de trazer benefícios para a criança, além de promover grande sofrimento psíquico para o professor.

A minha hipótese é de que a posição do professor pode afetar o processo de inclusão de uma criança com transtornos invasivos do desenvolvimento na escola regular. A elaboração deste trabalho busca verificar se esta hipótese é pertinente, a partir de operadores de leitura da psicanálise lacaniana.

Para tanto, remeterei-me a um caso acompanhado pelo Grupo Ponte em que ocorreram alguns impasses no processo de inclusão escolar, os quais me fizeram pensar na questão proposta por este trabalho.

Falarei de um menino, ao qual chamarei de Thomas, que em um determinado momento de sua vida escolar estava atravessando uma passagem em que saía de um centro de educação infantil (ou CEI como é chamado na rede pública de ensino da cidade de São Paulo) e ingressava em uma escola de educação infantil. Algumas informações serão alteradas de forma a preservar a identidade da criança, de seus familiares e dos profissionais envolvidos no seu processo de inclusão na nova escola.

 

Sobre a criança

Thomas estudou durante dois anos no CEI. Ao final do segundo ano, de acordo com a idade dele, sua mãe pôde escolher se gostaria que ele permanecesse mais um ano, para depois ir para a primeira série em outra escola, ou se preferiria que ele mudasse para uma escola de educação infantil por um ano, antes de ir para o ensino fundamental. Naquele momento, ela e o pai escolheram que ele saísse do CEI e fosse para uma escola municipal de educação infantil.

A mãe levou em consideração que ele teve muitos ganhos para a sua constituição subjetiva e para a relação com o outro desde o início do tratamento no Lugar de Vida2. Naquele momento, seu processo de constituição psíquica estava em risco. Thomas não falava, não olhava e não brincava. Passaram-se cerca de quatro anos de tratamento (dos quais os dois últimos ele freqüentou o CEI) para que ele estivesse em uma condição subjetiva que fizesse mãe e instituição de tratamento apostarem num passo como este. Para ela, ele se beneficiaria da ida para a nova escola em termos de desenvolvimento: "assim ele estará mais preparado para a primeira série", dizia. A equipe do Lugar de Vida apostava que ele se beneficiaria da mudança, porque a rotina e as atividades do CEI não colocavam mais desafios para ele. Apostávamos que, apesar das dificuldades que enfrentara anteriormente em circunstâncias de separação no CEI, naquele momento teria recursos subjetivos para lidar com isso.

Foram várias as conquistas de Thomas proporcionadas pelo trabalho das educadoras do CEI, como, por exemplo, a ampliação do uso da linguagem para se comunicar e para falar de si, e, em conseqüência, a diminuição de outros comportamentos como estereotipias e comportamentos agressivos com o outro e consigo mesmo, quando tinha que enfrentar situações difíceis para ele.

Seria muito importante, portanto, que a nova escola tivesse condições de dar continuidade a este processo. Thomas continuou a ter o acompanhamento do Grupo Ponte, através do meu trabalho, na nova escola e a ter atendimentos no Lugar de Vida. Assim que as aulas começaram na nova escola, entrei em contato com a direção e me coloquei à disposição para ir até lá quando julgassem necessário, deixando claro o meu interesse em manter uma interlocução com eles. A partir daí foram várias visitas no decorrer do ano em que pude escutar como foi o início de Thomas nesta escola, quais as dificuldades que surgiram e pude pensar junto com eles as possibilidades e os limites do seu trabalho.

Segundo o discurso dos profissionais da escola (no decorrer do ano tive contato com diretora, coordenadora pedagógica, assistente de direção, professora e algumas agentes escolares) a entrada de Thomas nesta escola foi difícil tanto para ele quanto para a própria escola. Aquilo que a mãe e nós, da instituição de tratamento, apostávamos em relação aos recursos subjetivos de Thomas não se confirmou. Ao menos, não diante das condições que a escola pôde lhe oferecer num primeiro momento.

De acordo com o relato dos profissionais da escola, quando Thomas entrou na EMEI, ele se apresentou bastante agitado. Queria correr pela escola, não queria ficar na sala de aula. Quando conseguia ficar na sala, ficava correndo de um lado para o outro, ou seguindo os colegas que tinham tênis com luzes piscando. Ele não ficava sentado na cadeira e queria sentar no chão. Fez xixi e cocô na calça algumas vezes. Bateu em algumas crianças na escola e no transporte escolar e tentou bater em alguns adultos também.

Esse comportamento de Thomas poderia nos fazer imaginar que a sua entrada nesta escola estaria provocando um certo retrocesso em seu desenvolvimento. Na verdade, isso, que parecia retrocesso, era indicador de que, diferente do que as linhas desenvolvimentistas afirmam, o desenvolvimento da criança não é linear. O fato de a criança adquirir certas habilidades, não quer dizer que tal aquisição está garantida. A mudança de escola, naquele momento e da forma como estava sendo feita, fez com que Thomas tivesse dificuldades em se sustentar psiquicamente e de sustentar o laço com o outro.

Ficar correndo pela sala, pela escola, nos primeiros dias de aula, foi o modo que ele encontrou de lidar com o estranho que a escola lhe disparou. Para atravessar essa adaptação ele precisaria do suporte de várias instâncias: família, tratamento, acompanhamento escolar, profissionais da antiga escola e profissionais da nova escola.

Thomas não pôde contar com a ajuda das educadoras do CEI que freqüentava para enfrentar melhor a mudança para a nova escola. Elas se posicionaram em relação a ele como uma mãe que tem medo que o filho cresça e que caminhe com as próprias pernas (inclusive no sentido metafórico, ou seja, quando uma mãe, consciente ou inconscientemente, tende a manter o filho na condição de dependente dela). Tiveram falas para mim e para a mãe dele do tipo "estou com medo de que outra professora não possa dar conta de trabalhar com ele no ano que vem". São falas como as que Bastos (2002) cita em seu artigo, ao falar da professora que se posiciona enquanto mãe diante do aluno. Embora as educadoras não tenham falado isto diretamente para Thomas, este discurso pode ter contribuído para que a mudança tenha sido mais difícil para ele.

Seria importante que a nova escola compreendesse todos estes aspectos e estivesse disponível para fazer um trabalho de acolhimento e de adaptação com Thomas, que colaborasse no atravessamento dessa desestruturação. A escola precisaria construir com este aluno os recursos para que ele se beneficiasse da escolarização em termos sociais e pedagógicos. A instituição de tratamento, através do Grupo Ponte, tem o objetivo de ser parceira da escola nessa construção.

 

Sobre o atendimento no Lugar de Vida

Ao mesmo tempo, a equipe do Lugar de Vida buscaria proporcionar que os atendimentos na instituição oferecessem suporte para Thomas lidar com os conflitos e as dificuldades emergentes dessa situação de mudança e de perdas. Meu trabalho envolveu reuniões com os profissionais envolvidos no seu tratamento, para levar notícias de todo este processo e pensar junto com eles intervenções a serem feitas com ele e com a família na instituição. Porém, foi possível perceber que alguns fatores do tratamento também podem ter contribuído para o surgimento das dificuldades. Na mesma época em que Thomas mudou do CEI para a EMEI, mudou também a configuração do seu tratamento no Lugar de Vida. Até então, ele e a mãe eram atendidos juntos por uma profissional. No mesmo ano em que começou a freqüentar a EMEI, o atendimento neste formato foi encerrado e ele passou a freqüentar um atendimento em um grupo de crianças sem a participação da mãe e com outros profissionais.

Pensamos que o comportamento de Thomas dava sinais de que foram muitas mudanças para elaborar. Começamos a realizar intervenções na busca de ajudá-lo a lidar com estas questões. Tais intervenções ocorreram nas atividades oferecidas no Lugar de Vida e nas conversas com a escola. Neste artigo me debruçarei sobre o trabalho com a escola.

 

Sobre o trabalho do Grupo Ponte

O profissional do Grupo Ponte, que, como já coloquei anteriormente, acompanha a inclusão das crianças atendidas no Lugar de Vida, dispõe de alguns dispositivos teóricos e técnicos dos quais pode utilizar para construir com o professor (e com a escola como um todo) as condições necessárias para que o processo de inclusão traga benefícios para a criança, de acordo com a sua singularidade, e para a escola. São esses dispositivos: a teoria lacaniana dos quatro discursos, o giro discursivo, a confrontação e a escuta analítica3 formulados por Lacan, no seminário 17 "O avesso da Psicanálise".

Nessa teoria, Lacan coloca que todo laço social se configura por uma estrutura discursiva. Essa estrutura é determinada pela posição em que se coloca aquele que fala. A partir dela, é determinada a posição do outro para o qual se fala, e são determinadas qual a produção do discurso e qual a verdade velada por essa estrutura.

Sempre que falamos estamos posicionados em determinado lugar (de agente de discurso) e situamos o outro em uma dada posição, realizando certa produção que tem a ver com uma determinada verdade. Esses lugares são descritos por dois binômios interligados por uma seta:

Lacan propõe quatro modalidades discursivas para abordar quatro modos de relação social: o discurso do mestre, o discurso da histérica, o discurso universitário e o discurso do analista. Devemos lembrar que esta classificação é feita a partir do agente do discurso, que "não é forçosamente aquele que faz, mas aquele a quem se faz agir" (Lacan, 1969-70, p. 161).

Existem quatro elementos discursivos que circulam por esta estrutura dependendo do tipo de discurso agenciado pelo falante. Estes elementos são S1 (significante mestre), S2 (o saber), $ (o sujeito) e a (o objeto, a perda). A partir de um discurso, derivam-se os outros por um giro de seus elementos:

Os lugares dos discursos são fixos porque todo discurso é sempre movido pela verdade enquanto sua mola propulsora, sobre a qual está um agente, que se dirige a um outro (destinatário), a fim de obter dele uma produção.

Pensamos que é importante que escola e professor agenciem um discurso em que se alternem entre uma posição de alienação e a posição de Outro barrado. Isso quer dizer que, num primeiro momento, é importante que o professor tome a criança como "seu" aluno e se coloque na posição de quem tem um saber sobre ela, considerando que há intenções em suas aço de quem tem um saber sobre ele, oferecendo palavras, nomeando suas ablemas na constitui;a situações, atribuindo sentido a elas e nomeando-as.

Mas, ao mesmo tempo, escola e professor precisam se posicionar enquanto Outro barrado4. Trata-se de instalar um funcionamento mais próximo do registro simbólico, em que o deslizamento significante permite que a criança não fique aprisionada a um determinado lugar imaginário construído pelo adulto que encarna o Outro para ela. Neste sentido, é preciso que o professor ocupe uma posição discursiva em relação à criança em que ele suporte não saber tudo. Isto quer dizer que o professor precisa estar bem situado enquanto um sujeito constituído pela instalação de uma falta estrutural. A partir desta, inaugura-se o funcionamento do psiquismo e do inconsciente do modo como concebe a psicanálise lacaniana. Não é possível ter um saber total sobre o outro ou sobre si mesmo.

"A psicanálise lacaniana nos ensina que o saber é sempre incompleto, muito diferente do que é para a pedagogia, a medicina e a psicologia. O conhecimento pode tentar causar o efeito de completude, mas também se descobre que é sempre parcial. A grande contribuição de Freud e Lacan é poder caminhar pelo saber sem ter que dar conta de tudo, sem ter que ser completo. Acreditamos que esse é o grande desafio da escola, quiçá da Educação: poder não dar conta de tudo, poder ser incompleta" (Assali & Amâncio, 2005, p. 84).

Quando as instituições de ensino têm um funcionamento discursivo em que se coloca ilusoriamente como dona do saber sobre o outro, dificulta-se a educação de uma criança com TID. Isto porque se constitui uma idealização do modo como a criança deve responder ao processo de ensino-aprendizagem e a instituição não consegue suportar quando a criança não corresponde a essa expectativa.

Ao mesmo tempo, no caso de crianças com transtornos invasivos do desenvolvimento, sua própria condição subjetiva coloca alguns obstáculos ao processo tradicional de escolarização, porque a maneira com que funciona seu psiquismo implica em um modo particular de aprender e de compartilhar o seu conhecimento.

Por ter um funcionamento psíquico diferente do das crianças chamadas "normais5" que chegam à escola, e por ter essas reações "estranhas6" à entrada numa escola nova, se a escola está posicionada como dona do saber total, o modo como poderá olhar para a criança dificultará que haja contribuições para a sua aprendizagem.

 

Sobre a posição da escola. Sobre a posição da professora.

No começo, o discurso da escola mostrava uma grande dificuldade em lidar com a maneira como Thomas se apresentou. A principal dificuldade era a – assim chamada por eles – agressividade. Para a escola, havia grande preocupação com os pais das crianças que apanharam do Thomas. Suas falas continham uma identificação com os pais: "se fosse meu filho que tivesse apanhado, eu não ia gostar" (sic). Para a professora, parecia haver preocupação com o fato de Thomas não se afetar pela sua fala e pelos seus atos. Em nossa primeira conversa, ela estava muito aflita. Dizia que Thomas não parava sentado, corria pela sala e quando ela o chamava parecia que ele não a escutava. Em um dado momento, uma fala importante apareceu: "eu imaginava que poderia sentar ao lado dele, pegar em sua mão e ensiná-lo a pegar no lápis, desenhar... E isso não está sendo possível. Quando insisto para ele sentar, ou pego-o no colo, ele se agita, quer levantar e correr, fala palavrão, parece que não gosta" (sic).

A fala da professora foi mostrando o quanto ela estava frustrada por querer ensiná-lo e não conseguir. Ela foi contando como costuma trabalhar com as crianças. Chegou a se emocionar diante de mim ao contar o quanto estava sendo difícil suportar a sensação de impotência diante dessa criança. Para ela, parecia que não estava fazendo nada por ele, que ele estava largado, e isso ela não queria.

Perguntei como eram as atividades propostas, se ela percebia quando ficava mais difícil para ele e o que fazia quando ele reagia "mal7" às suas intervenções. O meu intuito era, ao mesmo tempo, entender o que se passava com Thomas e saber em que posição discursiva a professora estava se colocando e colocando a criança.

Em seu relato, a professora revelou que, no seu modo de trabalhar, só cabem atividades segundo o modelo da Pedagogia tradicional. Não é possível oferecer atividades educacionais mais próximas de um método construtivista, envolvendo atividades lúdicas, por exemplo, pois, para ela, essas atividades não ensinam. Para a professora, uma oferta desse tipo é sinônimo de deixar as crianças "largadas" (sic). Para ela, ensinar é ver as crianças sentadas na carteira, com lápis e papel na mão, fazendo o que ela as orienta a fazer.

Certos comportamentos de Thomas eram inaceitáveis para ela. Como quando ele se recusava a sentar na carteira e só queria sentar se fosse no chão. Essa professora julgava que tinha que fazer com que ele sentasse na carteira, a qualquer custo. Ela supunha que ele se sentava assim porque na creche as crianças faziam atividades em roda e no chão. Em sua fala isso era tomado como algo errado, sem valor. Ela não reconhecia esse comportamento como fruto de um momento educativo pelo qual ele passou. Se assim fosse, poderia propor a mudança para a carteira nomeando e acolhendo. Ela suprimia as marcas de sua experiência educativa anterior e buscava imprimir as suas marcas (o que ela acreditava que era educar).

A professora de Thomas demonstrava ter um certo ideal de professor: uma construção imaginária do que seria o seu papel, qual a sua função em relação aos seus alunos. Para ela, ser professora era se situar numa posição particular em que os alunos estariam ali para receber dela o aprendizado. Ela seria a protagonista.

Segundo a teoria dos quatro discursos de Lacan, podemos entender que a posição que a professora ocupa em relação aos alunos e à escola indica que ela agencia o discurso universitário.

Discurso universitário

Elementos: S1 (significante mestre), S2 (o saber), $ (o sujeito) e a (o objeto, a perda).

Portanto, não foi por acaso que o encontro com Thomas trouxe muito incômodo para esta professora. Thomas não correspondia às expectativas da professora. Suas práticas fracassavam com ele. Quanto mais ela demandava, mais ele dava sinais de que não tinha recursos psíquicos para responder a esse tipo de demanda. Ele gritava, chorava, falava palavrão, batia... Isso alimentava um ciclo vicioso: para essa professora, se a criança não responde ao que ela demanda, não é possível dar valor à sua produção; mas ela não percebia que quanto mais convocasse Thomas nessa posição, mais ele responderia de maneira "inadequada" (aspas minhas), e quanto mais ele respondesse dessa maneira, menos ela poderia acolhê-lo.

Conforme fui construindo minha hipótese a respeito da posição da professora em relação à criança e à sua própria prática, fui pensando que a direção do meu trabalho seria buscar um giro discursivo. Seria buscar que a professora se deslocasse do lugar de todo saber, para que pudesse ver valor nos pequenos atos pelos quais Thomas demonstrava estar enlaçado a ela e aos conteúdos da cultura que ela transmitia. Que ela pudesse ver Thomas como uma criança singular que tem o seu jeito particular de aprender e de compartilhar o seu conhecimento, sem, com isso, deixar de oferecer a ele o acesso ao social, à cultura e ao conhecimento.

As bases teóricas do trabalho do Grupo Ponte propõem uma atuação que envolve uma escuta analítica, em que o professor é convidado a falar sobre suas práticas, suas dificuldades, suas conquistas com o aluno, e o profissional do Ponte atua com a confrontação e o dizer esclarecedor8, buscando que o próprio professor se escute e faça deslocamentos nas construções imaginárias que emergem do encontro com o aluno. Esta atuação não envolve tocar na subjetividade do professor, justamente por conceber que esta prática não se trata de um atendimento clínico psicanalítico.

Além do trabalho do Ponte, a professora passou a ter um acompanhamento mais próximo da coordenadora pedagógica que, juntamente com a diretora, concordou que era necessário construir com ela um novo olhar sobre sua prática com seus alunos. A coordenadora se comprometeu a trabalhar com a professora, propondo o estudo e a atuação baseada em teorias da própria Pedagogia segundo as quais a postura do professor, principalmente do professor de educação infantil, não deve ser tão rígida.

 

Sobre os efeitos do trabalho do Grupo Ponte

Ao longo do ano, fiz cerca de cinco reuniões com a professora individualmente e outras três com coordenação, direção e assistente de direção alternadamente.

Minha tentativa foi, escutando a professora, ver quais os pontos onde não conseguia ver valor na produção de Thomas e instigá-la a dar um outro estatuto, tanto aos atos dele, como às suas próprias intervenções – as quais ela também desvalorizava, quando se distanciavam do que ela acreditava ser professora.

No decorrer desse período, pouca coisa na posição da professora mudou. Em nossas conversas, suas falas enfatizavam justamente elementos do comportamento de Thomas que reforçavam o seu olhar pré-estabelecido a respeito dele.

Por exemplo, em uma de minhas visitas, eu pude presenciá-la oferecendo uma atividade de pintura para os alunos. Ela distribuiu uma folha sulfite com o desenho de um coelho mimeografado, que as crianças deveriam colorir com giz de cera. Thomas pegou a sua folha, pegou um giz de cera e pintou todo o desenho, do seu jeito. Ele não pôde pintar respeitando o contorno do desenho, nem usou cores diferentes para pintar as diversas partes do corpo e do rosto do coelho. Mas pintou somente sobre a folha. Não pintou a mesa, a parede, ou mesmo o chão, como vemos outras crianças com falhas na constituição subjetiva fazer. Ao ver o que Thomas fez, a professora se dirigiu a mim e disse: "Está vendo? Eu falei que ele não pinta, ele só rabisca". A minha fala deu outro estatuto à produção dele, porque, de fato, para mim, ver aquela criança fazendo aquilo, era motivo de satisfação. Vi ali um menino que estava mais próximo da posição de aluno, utilizando aquele material, embora de forma diferente do que uma criança de sua idade faria, de acordo com a sua função na nossa cultura: lápis (ou giz de cera) e papel existem para desenhar e escrever.

A professora não pôde se afetar pela minha fala. A posição discursiva que ela agenciava na relação comigo era semelhante a que se estruturava na relação com os alunos. Essa professora se colocava em uma posição de mestria em relação a mim. Minhas tentativas de não ocupar o lugar no qual ela me colocava fracassaram. Se isso tivesse sido possível, não se efetivaria o discurso universitário e haveria um deslocamento em sua posição de todo-saber9.

Penso que era uma estrutura discursiva alimentada pela escola, onde até então ela era tida como expert. No início do ano, diretora e coordenadora a escolheram para receber Thomas por acreditarem que ela seria a pessoa mais indicada, justamente por colocarem-na nesse lugar. Tal construção imaginária estava relacionada à suposição de que o professor que tem especialização em educação especial e maior conhecimento na área da saúde tem maior capacidade de trabalhar com um aluno portador de necessidades especiais. A professora de Thomas atendia a ambos os critérios, tinha especialização em educação especial e estava cursando uma faculdade na área de saúde na época, à qual se remetia para falar de seu saber. Por exemplo, em um determinado momento – ao final do ano – a professora foi convidada a falar sobre o trabalho com Thomas e chamou a atenção que ela atribuiu suas conquistas aos seus conhecimentos na área da saúde.

Mas justamente por alimentar essa estrutura discursiva, a escola contribuiu para que o encontro com a criança psicótica se tornasse mais difícil. O processo de inclusão é favorecido quando o professor suporta não ser mestre. Por isto, de acordo com o que coloca Bastos (2002), é preciso deixar de lado o mito de que os professores devem ser especializados para que atendam melhor as crianças com dificuldades especiais. Isso, segundo ela, gera uma exclusão do professor sem especialização que não consegue se ver capaz de trabalhar com a criança com dificuldades e, com isso, fica impossibilitado de ocupar seu lugar de educador.

Depois de analisar as ferramentas com que trabalhei neste caso, ocorreu-me a questão sobre os alcances e os limites de nosso trabalho. Temos nos deparado com professores que se posicionam de diferentes maneiras em relação à inclusão das crianças que acompanhamos. Muitas vezes seria necessário um giro discursivo na posição do professor para que o processo de inclusão beneficiasse a criança e a própria escola, mas, de fato, nem sempre isto é possível.

Sendo assim, o que é possível fazer quando estas práticas não alcançam os efeitos necessários para que a relação professor-aluno propicie o processo de inclusão?

 

Considerações finais

Devemos, então, reconhecer que o processo de inclusão nem sempre é possível dependendo da posição discursiva do professor envolvido. Não se trata de ser mau ou bom professor, de ter boa ou má vontade. Trata-se de que cada um se posiciona no discurso de uma maneira diferente e que, dependendo disso, o encontro com o diferente (ainda mais quando este diferente diz respeito à loucura) será mais ou menos possível. Não há como saber previamente qual será o melhor professor para a criança em questão. Mas há alguns cuidados possíveis, como, por exemplo, que os professores possam falar sobre sua disponibilidade, seus receios e suas expectativas.

Outro cuidado necessário é o acompanhamento do processo, a continuidade desta escuta dos professores. Isso pode contribuir para a construção – no decorrer do processo – das condições necessárias para que o processo de inclusão traga benefícios para todos os alunos e para o trabalho do próprio professor. O acompanhamento deve envolver uma avaliação contínua e alterações em diversos aspectos do funcionamento da escola. Para isso a parceria com toda a equipe escolar é fundamental. Pode ser necessária a diminuição do número de alunos na sala de aula. Às vezes isso será possível, às vezes não. Nem sempre a escola poderá oferecer as condições que o processo de inclusão demanda.

Neste caso, os profissionais envolvidos no tratamento da criança terão que lidar com este limite, reconhecendo, inclusive que há limites no seu próprio trabalho. Há casos em que a família precisará levar em consideração a mudança de escola, por exemplo, reconhecendo que será uma escolha em que não haverá garantias. Também não é possível saber como a criança reagirá às diferentes circunstâncias de sua vida escolar. É possível formular algumas hipóteses e tomar alguns cuidados. Porém, surpresas são sempre iminentes.

Será então que o que resta ao profissional (tanto da escola quanto do campo do tratamento) é buscar ter condições subjetivas para lidar com estas surpresas?

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BASTOS, Marise Bartolozzi. O feminino e a professora. Impasses vividos na inclusão escolar. In: ALONSO, Silvia Leonor; GURFINKEL, Aline Camargo & BREYTON, Danielle Melanie (orgs.). Figuras clínicas do feminino no mal-estar contemporâneo. São Paulo: Escuta, 2002. p. 171-180.

________, Marise Bartolozzi. Inclusão escolar: um trabalho com professores a partir de operadores da psicanálise. São Paulo, 2003, Dissertação (Mestrado) – Psicologia escolar e desenvolvimento humano – Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.

________, Marise Bartolozzi. Inclusão escolar: inclusão dos professores? In: COLLI, Fernando & KUPFER, Maria Cristina Machado (orgs.). Travessias inclusão escolar. A experiência do grupo ponte – Pré-escola Terapêutica Lugar de Vida. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2005. p. 133-148.

BRAGA, Luciana Pereira. Dos traumas ao mundo misterioso de Thomas. In: COLLI, Fernando & KUPFER, Maria Cristina Machado (orgs.). Travessias inclusão escolar. A experiência do grupo ponte – Pré-escola Terapêutica Lugar de Vida. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2005. p. 43-64.

COLLI, Fernando & KUPFER, Maria Cristina Machado (orgs.). Travessias inclusão escolar. A experiência do grupo ponte – Pré-escola Terapêutica Lugar de Vida. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2005.

KUPFER, Maria Cristina Machado. Educação para o futuro. São Paulo, Escuta, 2000.

PETRI, Renata. Psicanálise e educação no tratamento da psicose infantil: quatro experiências institucionais. São Paulo: Annablume / FAPESP, 2003.

 

 

1 O termo transtornos invasivos do desenvolvimento refere-se aqui aos problemas na constituição subjetiva na infância considerados pela psicanálise como psicose infantil e autismo. A escolha do uso deste termo no lugar da nomenclatura psicanalítica se deu para propiciar a interlocução com profissionais de outras formações. Em alguns momentos usarei a abreviação T.I.D. para me referir a estes transtornos.
2 Existe outro trabalho de minha autoria sobre este caso, referindo-se ao período em que Thomas freqüentou o centro de educação infantil e ao seu tratamento no Lugar de Vida no decorrer deste mesmo período. Trata-se do capítulo “Dos traumas ao mundo misterioso de Thomas” contido no livro “Travessias: inclusão escolar. A experiência do Grupo Ponte – Pré-escola Terapêutica Lugar de Vida” organizado por Fernando Anthero Galvão Colli e Maria Cristina Machado Kupfer (2005).
3 Sobre estes operadores de leitura da psicanálise no trabalho do Grupo Ponte existe a dissertação de mestrado de Marise Bartolozzi Bastos (2003).
4 Renata Petri (2003) em seu livro “Psicanálise e educação no tratamento da psicose infantil: quatro experiências institucionais”, discorre sobre este conceito, falando com mais detalhes da posição que um adulto deve ocupar em relação a uma criança para que se dê a constituição subjetiva desta.
5 (aspas minhas).
6 (aspas minhas).
7 (aspas minhas).
8 Ambos os conceitos estão detalhados na dissertação de Marise B. Bastos (2003) no que diz respeito ao trabalho com os professores em situação de grupo.
9 Este mecanismo de deslocamento da posição do agente e, conseqüentemente do discurso agenciado, está descrito em detalhes na dissertação de Marise B. Bastos (2003).