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On-line ISBN 978-85-60944-08-8

An 6 Col. LEPSI IP/FE-USP 2006

 

A insistência do singular: psicanálise e formação de profissionais da saúde

 

 

Lucila Pastorello

lucilap@uninet.com.br

 

 


RESUMO

A área da Saúde engloba profissionais ditos médicos e "não-médicos" (enfermeiros, fisioterapeutas, fonoaudiólogos, psicólogos e outros). Esta divisão já anuncia a marca imperativa do discurso médico, presente na formação profissional e conseqüentemente nas formas de atuação, com forte carga positivista e determinista e uma valorização da doença na relação com o doente. É possível reconhecer, no entanto, algumas práticas que resistem a esta realidade. Este texto tem como objetivo apresentar a experiência desenvolvida na Faculdade de Psicologia e Fonoaudiologia da Universidade Metodista de São Paulo, na formação de profissionais da saúde a partir de uma perspectiva de humanização dos serviços de Saúde prestados na Universidade. Através do projeto de extensão "Sopa de Letrinhas" – que envolveu a prática de leitura oralizada de livros infantis para crianças em hospitais e salas de espera de atendimentos clínicos – direcionado aos alunos da área de saúde, procurou-se intervir na realidade da formação tradicional, de modo que os alunos pudessem refletir e vivenciar práticas assistenciais em que o foco não é a relação doença /técnica, mas aquilo que se apresenta como singular na relação entre aquele que sofre e aquele que pretende aliviar o sofrimento. Os resultados indicam a identificação, por parte dos alunos da área de saúde, de que marcas da singularidade, de quem cuida e de quem é cuidado, devem ser vistas como parte da prática profissional.

Palavras-chave: formação profissional; leitura; saúde.


 

 

Inspirações iniciais

A terapia literária
consiste em
desarrumar a linguagem
a ponto que ela expresse
nossos mais fundos desejos

Manoel de Barros - Livro sobre o nada

Este texto objetiva discutir brevemente algumas questões a respeito da formação de profissionais da área de saúde e apresentar alternativas que levem em conta a singularidade na relação entre quem cuida e que é cuidado, a partir de uma experiência em docência na formação de fonoaudiólogos em uma universidade privada.

A chamada "área da Saúde" engloba profissionais ditos médicos e "não–médicos" (enfermeiros, fisioterapeutas, fonoaudiólogos, psicólogos e outros). Esta divisão já anuncia a marca imperativa do discurso médico (nos termos de Clavreul J.em A Ordem médica, 1983 e Foucault M. em A história da loucura, 1993 e O nascimento da clínica, 2001), presente na formação profissional e consequentemente nas formas de atuação, com forte carga positivista e determinista, e uma valorização da doença na relação com o doente.

É possível reconhecer, no entanto, algumas práticas que desafiam esta realidade, como os movimentos de Humanização Hospitalar, como o programa governamental de 2001 (Brasil, Ministério da Saúde, 2001), e outras iniciativas não governamentais como Os Doutores da Alegria, o Projeto Carmim e a Biblioteca Viva em Hospitais (Pastorello, 2006). O que une estes projetos é a tentativa de recuperar o espaço de tratamento da saúde como um espaço social além da doença.

A idéia do projeto de extensão aqui relatado nasceu de minha experiência como docente na disciplina Fonoaudiologia Hospitalar, oferecida aos alunos do sexto e sétimo semestre do Curso de Graduação em Fonoaudiologia da Universidade Metodista de São Paulo. Esta disciplina era dividida em três módulos, sendo que os alunos deveriam optar por dois deles, cursados semestralmente. O que me colocou como docente nesta disciplina foi a experiência por muitos anos em um grande Hospital de São Paulo1. Contudo, o foco que eu pretendia dar à prática hospitalar estava justamente na contramão dos objetivos centrais da disciplina, que se preocupava com a técnica fonoaudiológica no ambiente hospitalar com todo o protocolo médico envolvido nesta prática (conhecimentos de biossegurança, ética médica, registros e técnicas específicas). Neste sentido, promovi discussões iniciais com todo o grupo (alunos e professores envolvidos) no sentido de localizar historicamente a instituição hospitalar e a prática médica – utilizando os textos de Foucault (1993; 2001) e Clavreul (1993) – e as vicissitudes da intervenção fonoaudiológica no ambiente hospitalar – utilizando especialmente o texto de Beatriz Oliveira, O silêncio da singularidade, de 2003.

À medida em que os alunos (alunas, em sua maioria) se preparavam para a entrada no hospital, fui percebendo um movimento animado pelas práticas preparatórias como os contratos, a imunização (o convênio entre as instituições previa que os alunos tomassem vacinas específicas, como medida de biossegurança) e principalmente o uso da roupa branca. Este movimento me preocupou e percebi que não bastariam leituras e discussões a respeito da medicalização da clínica fonoaudiológica; era preciso criar um instrumento prático que colocasse os alunos fora desta dimensão. Passei então a pesquisar os movimentos de Humanização Hospitalar e me identifiquei com o programa Biblioteca Viva em Hospitais, uma parceria da ABRINQ e Ministério da Saúde. Participei como voluntária do programa no Hospital São Paulo e percebi que aquele era o instrumento que buscava: ler para as crianças, em uma oferta singular de linguagem e interação, independente de diagnósticos e condutas médicas. Após dois semestres de realização desta disciplina em hospital, desenvolvi um projeto de extensão que era direcionado não apenas aos estudantes de fonoaudiologia, mas de todos os alunos da área da Saúde (envolvendo os cursos de fisioterapia, odontologia, farmácia, biomedicina, psicologia e nutrição). O projeto envolveu a leitura oralizada de livros infantis ao pé do leito (enfermaria e pronto socorro pediátrico) em dois hospitais do ABC e nas salas de espera de atendimento da fisioterapia pediátrica e da odontopediatria da Universidade Metodista de São Paulo.

Antes da entrada no hospital/clínicas, os grupos freqüentavam aulas preparatórias. Neste momento três processos eram trabalhados: discussões sobre a relação entre o profissional de saúde e o paciente em diferentes contextos da prática profissional e reflexões sobre práticas de leitura em voz alta e o encontro com os livros infantis.

 

1) Discussões sobre a relação entre os profissionais de saúde e o paciente em diferentes contextos da prática profissional; identificação de olhares e fazeres impregnados pelo discurso da medicina.

O processo apontado no primeiro item, conforme já colocado neste texto, envolveu leitura e discussão de autores que situam crítica e historicamente o saber e o fazer médico e textos de psicanalistas que discutem as implicações de estar no ambiente hospitalar, especialmente Oliveira (2003), psicanalista que tem um texto no livro Fonoaudiologia Hospitalar, e Eda Tavares, também psicanalista, que faz considerações importantes a respeito dos movimentos de Humanização Hospitalar.

 

2) Reflexões sobre práticas de leitura em voz alta – leitura como prática discursiva.

Não pode haver ausência de boca nas palavras:
nenhuma fique desamparada do ser que a revelou.

Manoel de Barros – Livro sobre o nada

Na clínica fonoaudiológica a palavra leitura pode remeter a diferentes práticas: A associação com a escrita – leitura como atividade preparatória para a escrita; a normatização de códigos – a leitura como ferramenta de controle dos códigos lingüístico, moral e ético; a investigação de processos cognitivos – a leitura como instrumento para verificação de processos gnósicos, mnêmicos e associativos; o diagnóstico de patologias – confirmação, através do desempenho em leitura, de hipóteses diagnósticas envolvendo dificuldades no aprendizado, dislexias, etc. Outros pontos de vista podem enriquecer a reflexão sobre a leitura na clínica e fora dela.

Barthes (1987) entende que a palavra leitura não remete a um conceito, mas a um conjunto de práticas difusas. Para ele, ler é ao mesmo tempo uma técnica, uma prática social, uma forma de gestualidade, uma sabedoria, um método e uma atividade voluntária. Também Orlandi (1996) considera a leitura como prática discursiva: para a autora a leitura se atualiza na enunciação, no momento em que se lê.

No trabalho aqui relatado, a leitura em voz alta também é considerada uma produção singular: embora subjetivada pelas letras no papel a leitura apresenta-se como única: a escolha do livro a ser lido, a interpretação que se desvelará no corpo daquele que lê – respiração, voz, ritmo, melodias. Também quem recebe a leitura, quem ouve, deixa que as palavras entrem em seu corpo e experimenta sentidos que não são universais.

Alguns autores discutem justamente a leitura como atividade realizada de maneira subjetiva e singular, embora não usem estes termos. Compagnon (1999) discute a questão do papel do leitor na criação do texto-lido, identificando caminhos possíveis: por um lado é possível conceber um papel limitado da interpretação do leitor, já que o texto em si carrega marcas e indícios que conduzem o leitor na geração do sentido; por outro lado é possível pensar, como faz Iser (1999), que o sentido é um efeito experimentado pelo leitor e não um objeto definido; assim o objeto literário autêntico é a própria interação do texto com o leitor.

 

3) O encontro com os livros infantis: leitura prévia de livros infantis a serem utilizados no hospital.

Antes de ler para as crianças os alunos liam os livros infantis silenciosamente e depois para o grupo. Nesta atividade, a princípio apareceu a surpresa na constatação de que ler pode tomar muitos sentidos. O livro infantil é um produto da interação entre texto verbal e imagético e a leitura em voz alta adiciona mais um tecido: o sonoro.

Assim, após várias leituras o grupo podia experimentar quantas diferentes leituras são possíveis a partir da interação texto-imagem-oralização: tantos quantos forem os momentos de leitura. Os alunos perceberem que não apenas a leitura se modificava apenas em função do leitor, mas também a cada novo instante em que o mesmo leitor lia o mesmo texto: eram leituras diferentes. Aos poucos o grupo foi percebendo a importância de assinar uma leitura e finalmente na atividade prática ficou claro que a leitura também envolvia a audição: aquele que escuta, em um movimento dialógico, faz parte da construção da leitura em voz alta.

 

Resultados

As leituras não modificam apenas a estadia dos pacientes no hospital, mas também o trabalho dos profissionais ali inseridos, criando um ambiente menos tenso. Foi impressionante ver que gestos tão simples, como ler história para crianças hospitalizadas, mudam completamente o foco de atenção, que antes era a doença, o medo. Relato de aluna do sétimo semestre do Curso de Fonoaudiologia.

Os resultados indicam a identificação, por parte dos alunos da área de saúde, de que marcas de singularidade, de quem cuida e de quem é cuidado, devem ser vistas como parte da prática profissional. Estas marcas foram percebidas no modo singular com que cada aluno fazia suas opções no processo de leitura, desde a escolha do material a ser oferecido à criança, às opções de oralização da leitura (ritmo, deslizamentos melódicos, articulação, expressividade corporal). A leitura oralizada pode funcionar como uma ponte entre o livro e aquele que ouve o lido, mas também como atividade que estreita laços entre quem lê e quem recebe a leitura (Pastorello, 2006). É possível pensar a leitura oralizada também como oferta de língua e de linguagem.

As respostas das crianças e familiares à atividade também evidenciaram como cada sujeito pode manifestar traços de sua saúde quando a doença não é o foco.

 

Comentários Finais

A experiência aqui descrita indica a possibilidade de pensar práticas, na formação do profissional de saúde, que sejam interessantes tanto para a assistência à população que recorre aos sistemas de saúde, quanto para a oferta de discursos alternativos aos da Ordem médica, que valorizem a singularidade de quem cuida e de quem é cuidado. Neste sentido a Psicanálise é uma referência importante na formação dos profissionais de saúde.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BARTHES & COMPAGNON A Leitura, Enciclopédia Einaudi v.11 Imprensa Nacional /Casa da Moeda 1987.

BRASIL, MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2001 Manual do PNHAH , Disponível em www.humaniza.org.br

CLAVREUL J. A ordem Médica. Poder e impotência do discurso médico. São Paulo: Brasiliense, 1983.

COMPAGNON, A. O Demônio da Teoria: literatura e senso comum. Belo Horizonte, Editora UFMG, 1999.

FOUCAULT, M. A história da Loucura. Perspectiva, 1993.

____________O Nascimento da Clínica 5ª edição. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2001.

ISER, W. O ato da leitura v.2. São Paulo: Ed. 34, 1999.

PASTORELLO, L.M. A insistência do singular: práticas de leitura e produção da subjetividade na formação de profissionais de saúde. In BERBERIAN. AP; MORI-DE ANGELIS, C. MASSI, G. Letramento - referências em saúde e educação. São Paulo, Plexus, 2006.

OLIVEIRA, B. S. A. O silêncio da Singularidade (Algumas Considerações a Respeito da Subjetividade à Ordem Médica) in TAVARES, S. Fonoaudiologia Hospitalar. São Paulo, Lovise, 2003.

ORLANDI, E. A linguagem e seu funcionamento. Campinas, Pontes, 1996.

TAVARES, E. E. Algumas Considerações preliminares sobre a humanização e medicina. Disponível em http://www.portalhumaniza.org.br/ ph/texto.asp?id=34

 

 

1 Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP.