6A relação com o saber para a psicanáliseA (re)invenção da infância em casos de inclusão: entre traços e travessias author indexsubject indexsearch form
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On-line ISBN 978-85-60944-08-8

An 6 Col. LEPSI IP/FE-USP 2006

 

O ensinar e o aprender a ser dramista: histórias de "submissão" incondicional ao desejo de representar

 

 

Maria da Glória Feitosa Freitas

mariadagloriaff@hotmail.com

 

 


RESUMO

A partir de 2002, iniciando o Doutorado, quis pesquisar sobre as protagonistas de um movimento que durou mais de 60 anos e que interligaria antigas e atuais brincantes de dramas cantados em Guriú, localizado no litoral Oeste do Ceará. Essa intenção de investigação, e que se expressou na Pesquisa de Doutorado realizada em 2004, amparou-se na escolha metodológica de percorrer a trajetória de existência dos dramas cantados de Guriú, através da memória de suas dramistas (Histórias orais) ou de observação direta de espetáculos ou ensaios. A Pesquisa fez esclarecer as suposições iniciais do Projeto de Pesquisa: Seriam educadores todos os adultos responsáveis em todos os tempos em ensaiar dramistas-meninas? Poderíamos chamar essas mulheres de Mestras de drama e as meninas-mocinhas de dramistas aprendizes ou aprendizes de dramas? Haveria um "método" menos ou mais apropriado de ensinar dramas? Ou as mestras de drama inventavam suas "estratégias" no caminhar? Será que cada uma das que denominamos de mestras de drama agem com suas marcas pessoais? São movidas pelo desejo de ensinar os dramas às novas gerações? Em que essa experimentação estética modificou as vidas das meninas-dramistas ?

Palavras-chave: aprender; ensinar; mestras e aprendizes dramistas.


 

 

Os dramas cantados fazem parte do repertório de brincadeiras da Comunidade de Guriú no passado e que desaparecidos, com a chegada da TV, recomeçaram em 1999 a ser re-encenados. São denominadas de brincadeiras da infância por nossos entrevistados e acatamos essa conceituação ofertada pelos brincantes entrevistados desde 1998, quando realizávamos pesquisa sobre o brincar em quatro gerações em Guriú (litoral oeste do Ceará), sob a orientação de Leandro de Lajonquière.

A pesquisa realizada no decorrer do doutorado, orientada por Daniel Lins (UFC), respondeu as minhas indagações e trouxe um entendimento da importância histórica desta rica experiência estética. Otília, nascida em 1925, recitou (1997) os dramas cantados de sua infância e de outras meninas, suas companheiras queridas de ensaio e apresentação. Citava o nome dos adultos engajados nestas preparações. Lembrava da sua madrinha que ensinou a novidade dos dramas cantados. Uma idéia trazida da Capital! As apresentações de dramas em Fortaleza inspiraram uma produção local, em Guriú. Relatava esta história repleta de muita saudade e colocando-se no papel de Memorialista da História da sua e de outras infâncias em um Guriú do passado.

Tais dramas cantados, sendo rememorados por nossa memorialista, pareciam falar de uma produção estética produtora de certo entendimento da vida, dos segredos da vida, das conquistas, dos amores, das seduções, do desejo que pulsa em nós e nos faz sujeitos. Freud consegue nos convencer que é ainda melhor cantar do que morrer ou matar:

Esse instinto agressivo é o derivado e o principal representante do instinto de morte, que descobrimos lado a lado de Eros e que com quem divide o domínio do mundo. Agora, penso eu, o significado da evolução da civilização não mais nos é obscuro. Ele deve representar a luta entre Eros e a morte, entre o instinto de vida e o instinto de destruição, tal como ela se elabora na espécie humana. Nessa luta consiste essencialmente toda a vida, e, portanto, a evolução da civilização pode ser simplesmente descrita como a luta da espécie humana pela vida. E é essa batalha de gigantes que nossas babás tentem apaziguar com sua cantiga de ninar sobre o céu. (FREUD, 1930, p. 81).

Então para aquietar o coração, uma música, por favor! Didier-Weil reflete sobre

essa estranha absoluta que é a música, a quem ela responde, não segundo o modo freudiano da identificação: ‘Tu és idêntica a mim’, mas por essa dupla negação que corresponde a uma identificação metafórica: ‘Sim, tu não és estranha ao estranho que sou eu’. (1999, p. 12)

Pois viajei mais de quatrocentos quilômetros com a intenção de viver mais como pesquisadora do que como poeta a não menor emoção de tentar entrar nas casas, nas vidas, no passado, no passado tão presente, dos risos e dos suspiros e do canto de antigas dramistas.

Nilda, dramista e mestra de drama, nascida em 1950, muito precoce começou a participar de drama aos sete anos, apesar de que a lei era de crianças maiores serem preparadas para dramistas. Ela justifica dizendo que era uma exceção a regra, um prodígio e revelou que:

eu comecei criança, eu comecei criança, com sete ou oito anos, antes mesmo eu já brincava, botavam para eu fazer gracinha ali, que eu me requebrava e botavam para eu fazer graça. E mesmo o finado Caboclim Marques (que era o dono da casa e do lugar), só dava a casa, ele perguntava logo: "Você vai brincar?", que era para ver eu brincar que ele achava engraçado. É, por isso que as meninas botavam eu.

Minha entrevistada define-se como uma "Menina sapeca, toda vida eu fui criativa mesmo". A mestra faz o mapa do tesouro ou a sua trajetória para se fazer dramista. A preparação para ser dramista começa pela observação do espetáculo dos que já são reconhecidos pela comunidade, à sua época, como renomadas dramistas ou aquelas em processo de aprendizagem sob a orientação de um mestre.

Ela desvenda o fazer-se dramista, ela explica como se desfaz o não-saber sobre o ensinar e o aprender das mestras e das aprendizes-dramistas de Guriú:

Antes de eu participar em dramas, a minha mãe levava para os dramas destas moças mais velhas. Aí aquilo fui gostando, fui indo e foi o tempo eu que fiquei e peguei em casa em imitar, eu mesma em casa imitava. Sim, tinha um circozinho que aparecia por aqui, eu via as baianas e aquelas brincadeiras de circo e quando eu chegava em casa eu ia imitar aquilo que eu via no circo, nos dramas, aí em casa eu fazia tudinho. Por isso o dono da terra, o Finado caboclim via aquilo, que ele gostava de andar na casa de meu pai e via eu com aquela arrumação e mandava eu brincar: "Brinca, menina, drama! Imita fulano de tal". E eu fazia isso. Era a boca da noite, era a meio-dia quando ele chegava lá em casa. Era isso!

E vista assim, imitando as renomadas dramistas, olhada pelo pai e pelo dono do lugar, dono das terras, não custou a sair do lugar de espectadora e se torna dramista-aprendiz antes do lugar-comum que era a chegada da puberdade e adolescência.

Ela revela que só

lembro que quando eu era criança de quatro, cinco, seis anos minha mãe levava para esses dramas. Quando eu chegava dos dramas no outro dia, eu ia imitar. Aí meu pai, o finado velho dono da terra, o velho Caboclim achavam engraçado, aí mandavam eu brincar, eu imitava, e aí as meninas viram que eu era assim e convidavam para eu brincar no drama com elas. Foi o tempo que elas pararam mais e eu continuei com meu grupo.

Tendo aprendido assim com suas amigas de palco, de tablado e suas mestras queridas; o que se podia fazer na hora da destituição das mais velhas deste lugar de atriz era não deixar o en-canto acabar.

O casamento as condenou a uma só escolha: descer do palco feito com tábuas e não mais se esconder por trás das cortinas (empanados) feitas de lençóis antes de o espetáculo começar? A minha experiência de pesquisa revelou que dramistas nunca foram obrigadas a deixar essa experiência estética depois do casamento. Foram salvas de qualquer forma de dominação masculina, ainda que reclamem do fim dos tempos de atrizes em palco e façam coincidir este fato com seus casamentos. São atrizes, queixas de atrizes, dramas de atrizes. No caso específico das mulheres dramistas de Guriú a dominação masculina acabou com a apresentação pública do primeiro grupo de dramistas, na 1ª metade da década de 1940.

Houve um tempo demasiado para que eu conseguisse fazer uma escuta das falas das atrizes e não me fixasse na queixa circulante expressa pela grande maioria. Por um longo período estava certa de que o casamento tinha acabado com a condição de atrizes e decretava o fim de todo o contato com este sonho. Ingênuo engano a que pesquisadoras e pesquisadores estão sempre expostos! Depois de casadas era possível ser mestra e isso ocorria por serem livres de dominações as dramistas.

Esse lugar estético que conquistaram em Guriú e nas comunidades ao redor foi o impulsionador deste escape. Resistiam das proibições criadas para o recato feminino e que eram reafirmadas pelas mães, irmãs mais velhas, pais, padres e maridos. Eram as dramistas livres de jejum quaresmal às danças e seus dramas seguiam fora das reprimendas de todas as autoridades constituídas, masculinas na sua maioria.

As dramistas conseguiram escapar do "jejum" e ter a possibilidade de constituírem a única alegria permitida, já que era proibido neste período anterior ao domingo de Páscoa qualquer toque para dança. Não era permitido fazer um samba, como alguns entrevistados afirmaram. Só era permitido dança de dramista. Essa realidade foi marcante na vida das gerações primeiras de brincantes das décadas de 1940 e 1950, principalmente.

Não sei o que aconteceu ao Padre, ao dono da fazenda, aos pais, maridos, namorados e espectadores masculinos em geral. Suponho que os dramas e as dramistas de Guriú tenham seduzido os seus ouvidos, até invadir todos os seus olhares, pois, tendo os ouvidos abertos, os acordes das sereias-dramistas devem ter penetrado as almas deles. Coitados! Seduzidos assim, só lhes restariam os lugares de espectadores encantados que sempre foram, sentados nestes bancos feitos com caixas de querosene enquanto a indústria nacional não descobria as atuais cadeiras brancas de plástico. As dramistas formaram platéia desde os anos 1940.

Livres para conduzir as novas gerações viravam mestras. Agora era ser mestra - a única possibilidade de ganho narcísico com os dramas. E Nilda explica que "os dramas, eu só não faço é mim representar, mas no momento em que eu estou ensinando, eu estou dançando, estou fazendo todos os gestos com elas."

E era necessário sair procurando neófitas, gente nova, sangue novo e com talento para dançar, cantar e encantar o público. Afinal os dramas não podem parar! E o elemento essencial era procurar aquelas que queriam ser dramistas e que sustentadas pelo desejo próprio e ânsia das mais velhas de cumprir a missão de quem en-sina ou seja quem mostra a sina alegre de ser dramista.

Ela vai citando os nomes das companheiras-dramistas e revela que era grande a participação de diversas mocinhas

que eram moças no meu tempo,elas eram moças naquele nosso tempo, tudo a gente brincava, um sábado uma ia, no outro sábado já era aquela era quem ia, as mocinhas naquela época do meu tempo tudo participava, que eu convidava. As que queriam, não é?! É foi até eu me casar, até na era de 72, quando eu me casei..

Ouvi os relatos de Nilda e a surpresa com o seu cantar que vem lá do passado. Apareciam Canções que me seduziram...e não há como não concordar que:

no instante em que soa a música, uma estranha metamorfose se apodera de mim: até então eu podia passar meu tempo, na minha relação com o Outro, marcando meus limites para instruí-lo quanto ao limiar que ele não deveria violar para não pisar em meu território íntimo – e eis que agora um Outro se dirige a mim, solicitando um ouvinte inaudito a quem faz ouvir essa novidade siderante: ‘Em ti, estou em minha casa’. (DIDIER-WEIL, 1999, p.10).

Para cantar tem que ir vencendo o medo de gastar a fita do gravador alheio com versos quebrados, com buracos de palavras que não voltam. Mas vence tudo isso e canta. E Nilda diz "a Baiana de primeiro era assim"...

A Baianinha quando vem chegando
Ela vem cheia de mil fantasias
Ela requebra, requebra, requebra
A baiana faceira é do Brasil
Ela vem toda cheia de renda
Vem do batuque
Vem se requebrando
Ela quebra de qualquer maneira
Com as mãos nas cadeiras
Vem se requebrando

Estas meninas, mulheres, senhoras, donas de casa cuidando da tapioca e temperando o peixe e as idosas esperando os dias de ir a Camocim pegar o "aposento",1 aprenderam mais do que a arte de ser dramista ou ocupar um suposto lugar de quem sabe ensinar alguém que queria ser dramista a realizar seu desejo. Conseguiram a possibilidade de encantar o público, de seduzir a platéia e de por detrás da empanada, lá atrás do palco, conduzir só tudo e não adiar o que as vidas lhes impulsionavam a criar. Aprendiam também a conduzir a própria vida; eram sujeitadas a este modo cantante de viver.

Dramistas nunca foram mulheres submetidas a uma rotina caseira e totalmente manipuladas pelo querer masculino. Iraci, da 1ª. geração, anos 1940, alerta:

Nós nunca dependemos muito de marido não! Eu pelo menos, graças a Deus, tinha minha arte. Costura, costurei muito e depois passei para escritório, fui funcionária pública, e até poucos dias eu gostava muito de costurar. Ficar sem fazer as coisas, não dá! Tem que estar sempre se movimentando.

Isso dialoga com minha concepção de que as dramistas foram umas meninas que se tornaram umas mulheres diferentes das regras apontadas para a mulher na região norte do Estado do Ceará, fizeram-se mais independentes, e isso para as dramistas filhas do povo e as dramistas filhas do dono da fazenda. Erotildes conta que, quando foi casar levou a rede da lua de mel dela e a mala compradas com o dinheiro de apresentações de dramas. Para as dramistas filhas do povo esse dinheiro era importante.

Com esse dinheiro elas compravam o material para fazer drama, compravam batom, roupa, brinco, material para fazer caçoeiras de pesca, quer dizer, era uma forma de estar muito independente. Participar de dramas foi uma maneira de resistir a uma certa ordem que situava a mulher na condição de um ser que não tinha liberdade. Livres, conseguiam dinheiro, respeito e notoriedade em Guriú e nas comunidades vizinhas. Iraci, representante da geração dos anos 1940, informa que foram elas que deram o ponta pé! E revelou: "É, fomos luz para elas, abrimos o caminho. Até sem saber! Não é verdade? De repente surge!".

A pesquisa possibilitou que narrassem estes sublimes e corajosos atos em mais meio século. Estes encontros de memorialistas abriram baús fechados por longos anos. E uma mínima conseqüência foi o retorno dos dramas no romper do século XXI, as adolescentes inventaram, e recorriam às memórias das ex-dramistas um jeito coletivo de viver a experiência vibrante de subir palcos feitos de tábuas. Iam às casas de minhas memorialistas e colhiam suas flores em forma de versos.

Entre tantas lições que aprendiz com ex-dramistas é que ninguém faz uma dramista, e não há um método mais eficaz que um outro: só o desejo de ser dramista é que é imperativo. E o desenrolar de seus relatos abrem caminho para a certeza de que em algum momento de seus percursos se fizeram aprendizes de outras mestras e dentre muitas, algum tempo mais tarde, apostaram as horas no desejo de ser mestre das mais novas.

A arte de fazer ou de ser dramista, todavia, demole edificações tidas como evidências incontestáveis. A experiência estética com os dramas cantados em Guriú e das relações intergeracionais que se estabeleceram é uma história bem-sucedida, bastante exitosa. Não recolhi nenhum depoimento de sofrimento existencial causado pela aposta de vir a ser dramista ou de ter sido mestra. Ninguém falou em conflito entre gerações, pois quem queria ser aprendiz procurava uma ex-dramista e a nomeava de mestra. E aprendia a ser uma boa dramista, reconhecida pelo público pagante. Voltava para casa com dinheiro para comprar o material para um novo espetáculo.

As mestras e as dramistas de Guriú inventavam seus jeitinhos de ensinar e de aprender a fazer ou tornar um corpo adolescente transmutado em um corpo de atriz, de dramista. A lição essencial era aprender a representar, a arte intermediava a possibilidade de mulheres adultas poderem ensinar as mais jovens uma forma de resistir contra o estabelecido.

Ouvir as mestras, cuja maioria foi outrora de aprendizes, representou uma tarefa fundamental para montar um entendimento sobre essas vivências estéticas grupais. Elas puderam esclarecer como se inventa uma dramista, como se produz saber-ser dramista e como alguém é nomeada deste lugar de Mestra.

As dramistas de Guriú aprenderam, me ensinam e nos ensinam a engolir gota por gota com entusiasmo o encanto de seguir cantando pelas comunidades vizinhas. Fizeram da vida algo mais do que tristeza, melancolia, repetição monótona de movimentos cotidianos e domésticos. Enfrentaram a dominação masculina que oferecia os peixes e os esperavam fritos dias após dias. Apostaram na alegria de dramatizar e viver momentos felizes de dramas.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

DIDIER-WEIL, Alain. Invocações: Dionísio, Moisés, São Paulo e Freud. Tradução de Dulce Duque Estrada, Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 1999.

FREUD, Sigmund. (1930) O Mal-Estar na Civilização. Tradução de José Octávio de Aguiar Abreu, Rio de Janeiro: Imago, 1997.

 

 

1 Aposento é como chamam o dinheiro da aposentadoria pago pelo Instituto nacional de Seguridade Social