6O ensinar e o aprender a ser dramista: histórias de "submissão" incondicional ao desejo de representarA recusa do adolescente a entrar no jogo escolar ou a recusa dos adultos a introduzir a lei: um estudo de caso author indexsubject indexsearch form
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On-line ISBN 978-85-60944-08-8

An 6 Col. LEPSI IP/FE-USP 2006

 

A (re)invenção da infância em casos de inclusão – entre traços e travessias

 

 

Maria Eugenia Capraro de Toledo

 

 


RESUMO

O discurso escolar encontra-se povoado de discussões sobre a inclusão e sobre as chamadas dificuldades de aprendizagem, culminando no conhecido "fracasso escolar". Muitas propostas também têm surgido no campo da educação, mas, costumam tomar o aluno como objeto, submetendo-o aos saberes da ciência médica e da pedagogia hegemônica. Assim, quando uma criança se apresenta na escola atravessada por uma vicissitude subjetiva podemos pensar na (re)invenção da infância como uma das possibilidades para desmanchar o discurso da certeza e interrogar o professor a respeito do ato educativo. A proposta desta reflexão é discutir as intervenções possíveis neste campo a partir de uma leitura psicanalítica em casos de inclusão de crianças com distúrbios globais do desenvolvimento.

Palavras chave: Inclusão-escolar; psicose infantil; educação especial.


 

 

Introdução

Os professores atualmente se deparam com a exigência democrática de ensinar a todos. Partimos, então, da idéia de que se há uma diferença, esta deve ser apagada em prol de uma igualdade imaginária. A inclusão preconiza, assim, uma extensão total: todos incluídos pela força da lei.

Assim, desconsideram-se as diferentes dinâmicas psíquicas mobilizadas em alunos e professores nos diferentes encontros educativos.

O professor defrontado com discursos médicos e (psico)pedagógicos hegemônicos vê sua identidade de professor desvalida e sua capacidade de ensinar enclausurada em uma cela de impotência. Sente-se dividido entre técnicas pedagógicas e escolhas relacionais para dar conta daquilo para o qual não foi preparado.

Entram em jogo as idéias de formação e informação. Crescem os cursos de capacitação para professores na esperança de colocá-los na linha de frente empossados de um saber que os faça dar conta do impossível.

Na intenção de dialogar com a educação, a psicanálise, como nos diz Lajonquière, é um campo capaz de oferecer considerações a respeito "daquilo que escapa a um adulto quando se endereça a uma criança, ou seja, o controle dos efeitos dessa fala". A psicanálise, longe de apresentar-se como um saber capaz de dar conta do fazer educativo, quando convocada na dinâmica da interdisciplinaridade com a escola, faz-dizer, como apresenta Stazzone (1997). Questiona a produção discursiva da instituição escolar em seus ditos e não ditos a respeito do mal-estar da educação, implicando seus falantes e promovendo uma circulação discursiva.

A interdisciplinaridade pode ser uma possibilidade de diálogo pautada naquilo que Coriat (1997), citada por Pavone e Rubino (2003), aponta: "(...) que o especialista em qualquer campo, pelo seu interesse e estudo de uma disciplina, contará com mais elementos que um outro para pensar, recortar, classificar, registrar e desdobrar um objeto, de modo que proponha, quando possível, um brincar mais eficaz." Ressalta ainda que não se trata de demonstrar um certo saber mas sim "desdobrar o saber da criança e certamente cada especialista poderá fazê-lo desde um lugar e com extensões bem diferentes".

Em casos de crianças cuja subjetivação foi trincada, ns quais o autismo ou a psicose não decidida colocam-se em jogo, a inclusão escolar precisa contar necessariamente com a interdisciplinaridade. Para estas crianças, estar na escola é um tripé daquilo que Kupfer cunhou e nomeou como Educação Terapêutica. Para elas, estar na escola é uma segunda chance de subjetivação na qual a 1ª. educação não operou. Ler, escrever e circular na cultura, submetidas às suas leis, podem significar uma possibilidade de enlace com o Outro.

Através da circulação pelo discurso escolar, uma criança autista poderá trabalhar com algo do simbólico ou organizar as representações próprias ao registro do inconsciente, longe de ficar aprisionada no puro código das palavras ou dos números. A escola pode vir a implicá-la subjetivamente, com seu dizer ou escrever desde que possa supor a existência de um sujeito mesmo antes de ele mostrar-se através de um olhar ou de uma palavra. Também sustentar a instauração de uma alternância entre a presença e a ausência, suportando esperar ; dar "tempo ao tempo" para que uma criança possa apresentar-se na hiância causal que se apresenta entre a articulação sincrônica de um significante e a articulação diacrônica da significância representativa. Assim, o professor pode tomar um elemento com alguma significação que indique algum interesse ou singularidade da criança e a partir dele estabelecer um pedido, uma demanda.

Apresento a seguir o relato de dois recortes tomados em casos de inclusão de crianças cujas vicissitudes subjetivas trazem à tona a questão do ato educativo, pois envolvem a posição do adulto como aquele que se endereça a uma criança através da palavra e a mergulha na linguagem, tornando-a capaz de produzir laço social ou qualquer traço ou enlace que lhe for possível.

Casos de inclusão que envolvem estas crianças muitas vezes trazem angústia e desconforto ao professor e à escola como um todo.

Nestas circunstâncias a presença de um profissional que agencie o discurso da psicanálise junto ao professor pode possibilitar que este fale de seu mal-estar diante destas crianças enigmáticas e transbordantes que desmancham suas certezas e põem em jogo o imprevisível da educação.

Nessas cenas escolares, professoras e crianças tiveram que (re)inventar sua relação e produzir um saber sobre a igualdade e a diferença.

 

Pedro e a professora: uma relação revista

Pedro é um menino de 7 anos. Está na primeira série de uma classe regular com mais 39 colegas. É sua primeira experiência escolar. Pedro não fala e não olha seus interlocutores. Balança seu corpo de maneira rítmica e incessante.

Numa tarde de inverno, encontrei Pedro em sua carteira escolar, envolvido com seu balanceio vazio, quase escondido entre um amontoado de revistas e panfletos variados trazidos pela professora. O balanço compassado destoava do acúmulo disforme sobre sua mesa.

Laura, a professora, trouxera revistas e folhetos de supermercados para que Pedro pudesse entrar em contato com um material diferenciado, fora do contexto de aprendizagem dos outros alunos da sala. Já fizera a experiência com jogos de montar, os quais ele logo abandonou. Lançou mão desse dispositivo que nomeou como pedagógico, pois não sabia como entrar em contato com Pedro. Laura ficava angustiada diante da falta de olhar e de palavras que Pedro pudesse lhe endereçar. Não conseguia propor trabalho algum com aquele material, que ficava ali apenas como um excesso, sem borda. Estávamos em setembro e Pedro sequer tinha um caderno.

A professora estava na lousa apresentando as letras e as palavras ao resto da turma. Apresentava aos curiosos alunos a estrutura da língua, suas leis e regras, e as possibilidades infindáveis de combinações.

Olhando para Pedro e falando com ele sobre as revistas, retirei uma de cada vez de sua mesa. Pedro não mudou o compasso de seu balanço. Deixei, então, apenas um folheto. Pedro parou. Mostrei-lhe um folheto e perguntei sobre as imagens antecipando perguntas e respostas. Ele olhou as figuras e apontou para um refrigerante. Emprestando palavras a Pedro, eu disse: "Coca-Cola! Então você gosta de Coca-Cola!" Pedro, parando seu movimento por um instante, repetiu: "Cola!". Seguiu apontando duas outras figuras e pedindo palavras. A professora observou a cena sem falar nada até Pedro sair para o intervalo.

Disse que menino nunca lhe respondera e que ele sequer a via. Perguntei por que e ela respondeu que ele não aprendia. Sem pausa, continuou a frase dizendo que o pai de Pedro lhe informou que o menino tinha a idade mental de uma criança de 6 meses. Perguntei a ela se as crianças aprendiam aos seis meses. Laura logo se entusiasmou e disse que sim, que é uma fase em que as crianças aprendem muito. Então, franziu a testa ensaiou um sorriso sem graça dizendo, num titubeio entre perguntar e afirmar: "Então Pedro aprende?!" A formulação desta possibilidade fez Laura lembrar-se de que Pedro aprendeu a ficar sentado durante a aula, usar o banheiro para fazer xixi, sair e voltar da sala de aula sem dispersar-se pelo pátio.

Laura, que no início de nosso encontro não conseguia esconder o desconforto que aquele menino de olhar vazio e poucas palavras lhe trazia, pôde reconhecer pequenos avanços e considerá-los aprendizagens. Lembrou-se de que a mãe de Pedro lhe dissera que o menino vira uma placa de rua com o nome de uma ótica da cidade. Insistia para que a mãe virasse o rosto e lesse aquela palavra. A mãe, nesse momento, lembrou-se de que Pedro vira na TV o anúncio da ótica.

Laura se interroga sobre o episódio: "Pedro teria lido a placa?!"

 

Clara e seus dois presentes

Clara tem 8 anos. Está na primeira série. Anda com dificuldade, quase não fala, usa fraldas. Já esteve incluída em uma creche. É seu primeiro mês em uma escola de ensino fundamental.

Maria, sua professora, queixava-se dos longos períodos de ausência de Clara na escola. Achava que assim ficaria mais difícil criar vínculos que abririam as possibilidades para o trabalho.

Logo que a escola estabeleceu um contrato com a mãe, através do qual esta deveria priorizar a presença da menina na escola todos os dias, algumas coisas foram se estabelecendo. Maria conta que nos primeiros dias Clara ficava muito tempo com um olhar perdido olhando pela janela da classe. Maria investia em sua participação na turma. Fazia a chamada no início da aula e sempre falava seu nome mesmo que ela não respondesse. Clara passou a responder "presente" como as outras crianças depois de algumas semanas. Isso acontecia ao mesmo tempo em que Maria relatava que Clara a imitava. Falando sobre isto durante uma supervisão, Maria retomava a questão: assim como estava imitando seus gestos estava imitando as crianças. Queria saber se Clara seria capaz de responder por si ou só podia repetir o que os outros diziam, como um eco. Inventou uma estratégia: começou a chamar pelo nome de Clara e ela hesitava em responder pela primeira vez. A professora então perguntava novamente pelo seu nome – "Será que Clara faltou?!" Maria esperou. Clara puxou então seu avental e quase gritou: "Presente!" Maria se encheu de júbilo! Reconheceu sua resposta. Além disso, Maria dizia tratar-se também de um jogo, um esconde-esconde que elas estabeleceram na sala.

Passadas algumas semanas, a professora levou alguns bombons para seus alunos. Estávamos na Páscoa. Entregou um saquinho a Clara e disse: "Presente, Clara. Quando gostamos de alguém costumamos oferecer presentes. Isto é um presente!" Maria inaugura um outro significado para a palavra presente.

Clara começava, segundo Maria, a fazer escolhas. Para pintar, Clara sempre usava a cor azul. Maria ficava curiosa: seria o azul por que toda a cor era azul ou ela escolhia o azul entre as outras cores. Investigou mais e descobriu que azul era o nome que Clara dava para todas as cores, inclusive para o próprio azul. Resolveu então apresentar outras cores à Clara. Começou pelo amarelo e disse a ela que aquele era "não azul". Dividiu o mundo em azul e não azul e foi apresentando as cores e dizendo que elas tinham outros nomes.

 

Conclusão

Maria e Laura são professoras da 1ª série e têm alunos que possuem o mesmo diagnóstico clínico. Ambos apresentam um funcionamento psíquico peculiar e possuem dificuldades em implicar-se subjetivamente com os outros e com os objetos do conhecimento. Dificilmente estabelecem um laço, uma relação. Precisam que o adulto suponha ali um sujeito mesmo que estas crianças se apresentem como puro organismo, sem palavra, sem olhar. Também é necessário que se façam presentes a demanda e a alternância entre a presença e a ausência do Outro.

Laura precisou deparar-se com seu próprio dizer para ocupar-se de Pedro como um menino que pode aprender. Saiu da instância da certeza sobre um veredicto, "ele não pode aprender" para o enigma sobre como aprendem as crianças. Conseguiu também pensar sobre as revistas e panfletos como um excesso que podia desencadear um descontrole em Pedro.

Como Pedro reconheceu o nome da ótica talvez consiga tomar posse das palavras que representam as imagens que vê nas revistas e panfletos e colocá-las numa cadeia significante.

Laura falou em rever a proposta e inaugurar uma nova possibilidade de relação com Pedro.

Maria opera como alguém no exercício da função materna: fala, se retira, espera, renuncia narcisicamente e recebe jubilosa a resposta que Clara lhe dá. Este jubilamento faz um efeito no trânsito da menina pela linguagem.

Maria inaugura uma cadeia discursiva para Clara. Instaura uma polissemia com a palavra "presente" e inaugura uma policromia. Presente e azul deixam de ser estereotipia e passam para algo do âmbito da relação, da Cultura, do novo.

Nos dois casos, as professoras puderam falar sobre a travessia que faziam com seus alunos e das dificuldades que o encontro diário com eles trazia.

Nas duas situações, os diagnósticos em si mesmos não dariam conta de trazer informações sobre aqueles sujeitos ou a melhor maneira de ensiná-los. Laura e Maria precisaram interrogar seu encontro diário com estas crianças e construir as possibilidades com elas. Foram confrontadas com seu próprio dizer e assim puderam avançar em seus empreendimentos com Pedro e Clara.

Os avanços serão traçados no diário dos dias, quando Laura e Pedro, Maria e Clara puderem sustentar seus encontros e (des)encontros e "deixarem a desejar".

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

STAZZONE, R.(1997) O que um psicanalista deve fazer na escola? Estilos da Clínica, Revista sobre a Infância com problemas, ano II, no. 2, p. 44.

PAVONE, S., RUBINO, R (2003). Da estereotipia à constituição da escrita num caso de autismo: dois relatos... um percurso. Estilos da Clínica, Revista sobre a Infância com problemas, ano VIII, no. 14, p.68-69.

PETRI, R.(2003) Psicanálise e educação no tratamento da psicose infantil. Quatro experiências institucionais. São Paulo, SP, Annablume.

LAJONQUIÈRE,L.(2006) Educação, Religião e Cientificismo. Revista Educação, Edição Especial, nº 1, Editora Segmento.