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On-line ISBN 978-85-60944-08-8

An 6 Col. LEPSI IP/FE-USP 2006

 

A recusa do adolescente a entrar no jogo escolar ou a recusa dos adultos a introduzir a lei: um estudo de caso

 

 

Maria Luísa Carvalho de Almeida Sampaio

mluisasampaio@uol.com.br

 

 


RESUMO

Utilizando um estudo de caso, no âmbito da psicopedagogia, busca-se refletir sobre as recentes transformações no contexto cultural, mais especificamente, o processo de transmissão do legado cultural aos mais jovens. Parece ter havido um declínio dos marcos culturais, em virtude de um remanejamento profundo da esfera de valores, e isto tem dificultado a transmissão intergeracional. A nosso ver, isto se deve à recusa de pais e adultos, em geral, de marcar a diferença geracional e fazer uso da autoridade e da sua responsabilidade sobre o mundo, na perspectiva de Arendt.

Palavras-chave: diferença geracional, adolescência, autoridade.


 

 

Vamos discutir o caso de um adolescente no contexto da Psicopedagogia clínica, na perspectiva de Sara Paín (1985). De acordo com essa abordagem, o problema de aprendizagem representa um sintoma que expressa um conflito na relação do sujeito com o saber.

Trata-se de um adolescente que se recusa a entrar na ordem escolar. A lógica do trabalho escolar se baseia em regularidades, esforço e adiamento das gratificações. O ofício de aluno depende fortemente de um terceiro, ou seja, da mediação de um adulto. Neste caso, é necessário que o adulto assuma uma posição de autoridade, isto é, estabeleça a diferença entre as gerações, pois é um representante da cultura. Os adolescentes são muito resistentes a aceitar essa diferença, sobretudo no contexto escolar, portanto, é necessário que os pais legitimem a escola, no sentido de reforçar tal autoridade. É justamente esta questão que pretendemos enfocar neste relato de caso.

Fábio é um adolescente de 14 anos, de família de classe média. Está na oitava série e no momento está sem escola há uma semana, pois havia sido convidado a se retirar da instituição em que estudava por indisciplina. Tal fato tem se repetido nos últimos três estabelecimentos em que estudou.

Estava apresentando problemas disciplinares nos últimos dois anos. Desde então, estudava em uma escola que se configurava como um sistema de ensino e que tinha uma rede que se estendia por todo o estado, tendo inclusive cursos universitários.

Seus pais me procuraram por indicação do médico da família. Fábio já havia feito psicoterapia duas vezes, mas nunca de abordagem psicanalítica. Havia decidido parar nas duas ocasiões. As questões que os pais trazem referem-se mais ao comportamento agitado e indisciplinado do filho do que propriamente a uma preocupação escolar. O relacionamento com o filho está tenso, pois está manifestando bastante oposição frente aos pais.

Quanto à sociabilidade, Fábio não tem amigos. Não vai à casa de outros garotos e nem é visitado por colegas, porém, vai a danceterias e tem conhecidos no mundo "clubber". Está bastante mobilizado para ser DJ.

Os pais não conseguem discriminar se as dificuldades de manter-se na escola derivam de uma dificuldade de aprendizagem ou de uma questão emocional. Falam que "ele não sabe nada" do conteúdo escolar, mas apresenta um grande potencial criativo, sobretudo em música e em informática. Segundo os pais, ele tem uma grande energia, mas não a dirige para a aprendizagem formal.

A escola representa algo à parte, não ocupa um lugar significativo em sua vida. Para ele, estudar não implica nem em compromissos nem em submissão às normas. Na sua concepção, a escola é um lugar onde se faz o que se quiser. De fato, a escola em que estudava tem fama de ser bastante tolerante com os alunos. Fábio não leva o material escolar, perde as apostilas e nunca comunica esse fato aos pais. Jamais foi reprovado, mas sempre tira notas baixas, faz recuperações no fim do ano e acaba sendo aprovado.

Os pais parecem idealizar o potencial do filho e acreditam que o problema está nas escolas. O pai suspeita que o filho seja superdotado e teme que ele esteja nos lugares errados, desperdiçando sua potencialidade. De acordo com tal lógica, ele necessita de uma escola "diferenciada e dinâmica". Porém, tal idealização não se sustenta e dá lugar a outra suspeita – a de que o filho tenha hiperatividade.

Os pais oscilam entre responsabilizar a escola, por ser inadequada para o filho, e a problematizar o comportamento do mesmo. Neste raciocínio, não há espaço para questionar a parte dos pais nesta questão, mais especificamente, seu lugar como educadores, no sentido de ajudá-lo a tolerar as situações de frustração, de curvar-se às normas sociais e de inseri-lo no mundo da cultura.

Quando os pais me procuram, noto uma divergência no casal quanto aos limites e o filho percebe isso. A mãe tende a ser mais permissiva e o pai acredita que é necessário serem mais rígidos com o filho.

Esclareço aos pais qual é a minha área de trabalho e proponho realizar um diagnóstico psicopedagógico, isto é, verificar todo o aspecto ligado à aprendizagem e, sobretudo em relação à dimensão normativa desta, pois parece que Fábio não quer se submeter às regras, apresentando uma modalidade hiperassimilatória em relação ao conhecimento, segundo Sara Paín (1985). De acordo com tal funcionamento, o sujeito nega a curvar-se aos objetos de aprendizagem, querendo sempre submetê-los segundo suas necessidades e desejos.

Fábio estava havia uma semana sem escola e os pais cogitavam tirá-lo do ensino regular, acreditando que uma formação mais técnica seria mais produtiva para ele. O filho estava trabalhando com os pais na empresa familiar, com a tarefa de cuidar da área de informática, mas seu comportamento lá era bem inadequado.

Fábio parecia estar solto, clamando por uma contenção dos adultos e por um grupo de pares em que pudesse trocar e interagir. Estava claro que ficar no mesmo ambiente que os pais o dia todo, com quem estava tendo conflitos, poderia agravar a situação.

Esclareci que seria importante insistir no término do Ensino Fundamental e, nesse ínterim, pesquisar alternativas de ensino mais adequadas ao filho. Além do mais, estávamos no mês de maio e Fábio não poderia ficar inativo e sem um grupo social de referência. Sugeri que procurassem uma escola menor, para que pudesse finalizar o Ensino Fundamental e onde tivessem condições de acompanhar o aluno com mais atenção.

 

Diagnóstico

Fábio é bastante receptivo e mostra-se um adolescente inteligente, com senso de humor, ambicioso, curioso e, acima de tudo, carente por normas. Quanto aos recursos cognitivos, apresenta um pensamento ainda muito empírico, sem lidar de uma maneira mais sistemática com os desafios, em geral, e com proposições formais.

Falta-lhe um controle da produção cognitiva, isto é, um acompanhamento e avaliação do próprio sujeito do desenvolvimento da tarefa que realiza. Quando lhe dou uma referência, isso acaba fazendo com que ele abandone as estratégias mais mirabolantes e articule melhor seus procedimentos. Parece que tal intervenção o faz entrar em contato com a realidade, deixando de lado sua onipotência.

Fica claro que Fábio clama por uma mediação, necessitando de referências, modelos, enfim, uma direção para desenvolver sua produção.

Quando tem que manter um esforço continuado para resolver uma tarefa, acaba desistindo. Ele parece não ter se convertido ao ofício de aluno, isto é, não entrou na lógica do trabalho escolar, de acordo com P. Perrenoud (1995: 16).

Ao deparar com um obstáculo, deprecia as proposições, isto é, diz que o enunciado não é claro, o gráfico não é nítido, etc.. Projeta no objeto ou no outro a falha, eximindo-se da responsabilidade pelo fracasso.

No desenho do Par Educativo, em que o sujeito representa uma situação de aprendizagem, Fábio faz uma sala com um aquário do tamanho de uma lousa, cheio de peixes e plantas, e em cima desta está escrito Anima Mundi. Ao lado, há uma professora que aponta para o aquário com uma vareta, e sua figura é bem elaborada e está sorrindo. Na sala há algumas carteiras e há apenas um aluno, que está sentado no chão e parece estar olhando para o aquário. Ao ser perguntado sobre o desenho, Fábio diz que era uma aula de biologia do 1º ano do Ensino Médio. Diz que o aluno está gostando da aula, está "relaxado". Conta que o aluno propôs à diretoria fazer o aquário e sua proposta foi aceita.

A partir de tal representação da aprendizagem, podemos depreender que Fábio ainda investe libidinalmente na escola. Deseja ingressar no Ensino Médio, isto é, prosseguir em sua escolaridade. Porém, sua atitude denota uma resistência a integrar-se ao sistema escolar. Em seu desenho, colocou o aluno a uma certa distância do aquário, mantendo-se à margem, uma vez que não estava sentado na carteira. É ambivalente quanto a "jogar o jogo" escolar, na acepção de François Dubet e Danilo Martuccelli (1996).

 

Conclusão do diagnóstico

A idealização que os pais faziam de Fábio e que ele também tinha de si pareciam estar prejudicando a sua inserção nas escolas e o enfrentamento das suas dificuldades. Os pais não conseguiam sustentar o processo de integração escolar e social. Do lado das escolas, estas pareciam não favorecer tal adaptação, pois ora eram rígidas demais, ora não lhe davam qualquer direção. E, o mais grave, alimentavam a onipotência de Fábio, pois sempre acabava sendo aprovado.

Propus então aos pais um atendimento psicopedagógico para fortalecer os recursos cognitivos de Fábio e levá-lo à lógica do trabalho escolar, porém, mostrando que ele não perderia com isso – adquiriria mais conhecimentos e experiência. Enfatizei a necessidade da mediação, de dar um suporte para essa passagem ao mundo dos adultos, que lhe parecia tão difícil e desprovido de gratificações.

Apontei que a situação era muito delicada e, dependendo das respostas do ambiente, haveria duas possibilidades: ou esse momento poderia constituir-se num degrau para o desenvolvimento do Fábio, ou as coisas poderiam tornar-se bastante difíceis, pois, sem um projeto, ele poderia perder-se.

Ficou combinado um atendimento uma vez por semana, em virtude de questões financeiras.

Durante o período do diagnóstico, os pais o colocaram em uma escola menor, porém, bem estruturada e com profissionais experientes com adolescentes. Fábio parecia manifestar uma atitude positiva em relação à escola, pois estava seguindo as regras escolares e havia relatado com interesse a apresentação que assistiu na escola de um profissional da área editorial. O pai, em poucas palavras, foi bem sarcástico em relação a esta, dizendo que eles levaram um profissional só para "vender livros". Marquei que Fábio necessitava agora da sustentação por parte dos adultos para adaptar-se à nova escola e que era melhor guardar para si tais impressões.

Na devolutiva ao Fábio, propus o seguinte desafio: como estar dentro da escola sem ser um "nerd" (usando a sua expressão), sem ter que se conformar ao sistema, sem abdicar de sua subjetividade. Estabeleceríamos projetos com objetivos alcançáveis, para não fazê-lo entrar na onipotência. A proposta era manter-se na escola em que acabara de entrar e procurar, com vagar, durante aquele ano, uma instituição de ensino que mais se adequasse aos seus interesses e às suas necessidades.

A rotina de Fábio era muito vazia e, além da escola, que não estava gostando, não tinha mais nenhuma atividade. Ficava em casa, sozinho, explorando o computador. Os pais trabalhavam fora o dia inteiro. Ele estava muito solto, com uma rotina desinteressante e carente de estímulos. Sua única fonte de realização e subjetivação estava concentrada na escola, e como as coisas estavam difíceis naquele ambiente, ele ficava muito resistente e insatisfeito.

O pai retoma a idéia de tirá-lo da escola e colocá-lo em um curso de Web Design, que já vinha pesquisando. Vale marcar que sempre quando as coisas ficavam difíceis na escola, Fábio criava uma situação para ser convidado a se retirar e não ter que "pagar o preço", isto é, defrontar-se com as dificuldades e tentar superá-las. Desta forma, ele não entrava no jogo escolar, que consiste em respeitar as regras da instituição e desempenhar o papel de estudante – sendo bom ou até mau aluno.

As notas começaram a chegar e ele teve péssimos resultados. Era a primeira vez que ele tinha um dado de realidade, pois, na escola anterior, as notas eram "amenizadas" e a chance de recuperação era sempre certa. Fábio passou a faltar às aulas. Seus pais não conseguiam fazê-lo acordar para ir para a escola.

Em meados de setembro, os pais foram conversar com a coordenadora sobre a situação do filho e, sabendo da possibilidade de reprovação, decidiram tirá-lo da escola. Mais uma vez Fábio foi poupado.

A partir de então, trabalharia no escritório, desenvolvendo um projeto de informática junto ao pai. Fábio seria matriculado em um curso de Web Design, porém, este só começaria em outubro e seria apenas uma vez por semana – aos sábados, o dia inteiro. Ou seja, no período de um mês ele não teria qualquer outra referência a não ser eu e a família, visto que a empresa em que estava "estagiando" era familiar.

Tendo em vista tudo isso, apontei a necessidade de um diagnóstico diferencial. Fábio estava desorientado, queria descobrir coisas, constituir uma nova identidade, e estava claro que não estava achando caminhos produtivos para isso. Uma outra possibilidade era intensificar o atendimento psicopedagógico. Os pais alegaram que naquele momento a opção seria investir no curso de informática, que era muito caro.

Assim, o atendimento psicopedagógico converteu-se no único espaço de produção e de subjetivação. Sem tal possibilidade, restaria apenas a passagem ao ato. Neste sentido, parecia que a agressividade em relação aos pais estava relacionada com essa impossibilidade – como não tinha condições de elaborar seus conflitos, de simbolizá-los, sentia a urgência de fazer coisas, e, como não havia muitas opções, utilizava o recurso da realidade perceptivo-motora, segundo Philippe Jeammet (1994: 4).

Estabelecemos, assim, um novo projeto de trabalho. O atendimento a partir de então, seria centrado em projetos, buscando colocá-lo na lógica do trabalho, do esforço, por meio da realização de coisas do seu interesse.

Fábio vinha falando da vontade de mudar o seu quarto, já tinha pintado uma parede, enfim, manifestava o desejo de pôr as próprias marcas no seu espaço. Falava que queria fazer um mural, etc. Tinha a necessidade de entrar numa posição ativa, de produzir coisas com as quais pudesse se identificar.

O desejo de pôr suas marcas, de entrar em ação, além de ser uma necessidade dos adolescentes, parecia ser uma importante forma de sublimação, já que Fábio não tinha mais a possibilidade de fazer isso no lugar por excelência destinado a este fim – a escola.

Ficamos trabalhando por quase um semestre, Fábio refletia sobre suas dificuldades tanto em relação aos projetos que desenvolvia comigo, quanto sobre os acontecimentos da sua vida. Passou a freqüentar o curso de Web Design, mas este não parecia muito adequado para ele, pois era muito técnico e ele não tinha a base necessária para acompanhar. Ao invés de encontrar um grupo para compartilhar os mesmos interesses, ficava inibido com a idade e a maturidade dos colegas. Novamente Fábio não se integrava a um grupo e se isolava.

Até novembro, os pais não procuraram nenhuma escola para o filho cursar no ano seguinte. Em casa, Fábio tornou-se muito agressivo e, no fim do ano, os pais decidiram procurar um psiquiatra. O atendimento foi encerrado e, no ano seguinte, ele foi matriculado em uma escola do bairro e passou a fazer um tratamento psiquiátrico duas vezes por semana.

 

Considerações Finais

A primeira questão que podemos levantar a partir da reflexão sobre esse caso diz respeito à ausência de alguém que exerça a lei. Ora, segundo a psicanálise, cabe ao pai (ou alguém que cumpra a função paterna ) dar limite ao desejo incestuoso do filho e colocá-lo à sombra da cultura, que o insere no mundo das trocas simbólicas. No caso de Fábio, a ausência da norma o faz refém das exigências narcísicas. Ao invés de ter que se submeter a algo que está previsto pela lei – ir à escola – é premiado com a sua exclusão desta.

Isto parece dizer respeito aos novos padrões de relações intergeracionais que têm predominado nas últimas décadas. Nos tempos atuais, os modelos identificatórios parecem cada vez mais difusos, portanto, caberia um aprofundamento acerca do núcleo familiar e de seu funcionamento, assim como sobre o exercício da autoridade.

Vamos recorrer à Elisabeth Roudinesco (2003), que traça um painel histórico para compreender a evolução da família, com o fim de apreender que mudanças ocorreram no núcleo familiar e como isto tem influenciado a transmissão dos modelos culturais.

Desse painel, podemos depreender que a família sofreu uma grande transformação em sua estrutura. Se no início esta era arraigada às tradições e rigidamente hierarquizada, ao longo de quase três séculos, tornou-se uma estrutura horizontal e fraterna. Fazendo um inventário dessas mudanças, reconhecemos que houve uma humanização nas relações familiares, porém, podemos afirmar que a questão da autoridade foi tornando-se bastante difusa e problemática.

A autoridade, segundo Roudinesco (2003), ao longo do tempo, evoluiu de uma ordem divina, associada ao poder do rei, passando para ordem simbólica, advinda da função paterna, e, por fim, tornou-se uma ordem cada vez mais abstrata e difusa.

Logo, houve uma redefinição das posições de autoridade e esta passou a ser mais compartilhada, em prol de uma dinâmica familiar mais humanizada. Isto impôs um desafio aos adultos – exercer a autoridade de forma mais democrática, sem, no entanto, apagar as diferenças. Para tanto, os adultos necessitam ocupar uma posição assimétrica, no sentido de garantir a inscrição da Lei junto às novas gerações.

Vale marcar que para a psicanálise, a lei fundamental – a lei da proibição do incesto – implica na renúncia pulsional. Isto é, o filho não pode possuir a mãe, mas, em compensação, pode possuir todas as outras mulheres. Neste sentido, a lei inscreve uma diferença em relação ao objeto proibido1, segundo Leandro de Lajonquière (1999: 76). O estabelecimento da lei coloca o sujeito diante do proibido e da diferença. Em suma, a lei torna aquele que se submete a ela um sujeito do desejo.

A lei da interdição do incesto, de acordo com Freud, instaura o pacto social, por isso ela constitui "a lei das leis". Desta forma, todas as leis deveriam seguir o mesmo espírito, apontar para a diferença: isto é proibido, mas outras coisas são permitidas.

Para Lajonquière (1999: 78), a educação tem algo que remete ao espírito das leis. O adulto, em nome da diferença geracional, introduz a criança a um mundo que é ordenado segundo as leis, ou seja, algumas coisas são permitidas aos mais novos e outras não. Desta forma, a criança é educada segundo as diferenças. O adulto assim faz, pois tem a responsabilidade sobre o mundo, segundo Arendt (1997), que diz respeito à preservação da civilização.

No caso de Fábio e de todos os jovens, a mensagem da lei de obrigatoriedade escolar seria: a decisão de estudar é algo inquestionável para as pessoas da sua idade2, no entanto, outras coisas podem ser questionadas. Neste sentido, o adulto, em nome da lei, determina que o jovem renuncie aos seus impulsos e adie as gratificações, pois, mais tarde, poderá decidir sobre sua vida. Por acréscimo, o jovem fica livre de suas exigências pulsionais e pode usar a libido para outros fins, como a obra cultural. Neste sentido, a lei liberta.

Desta forma, a lei humaniza, faz uma operação simbólica, segundo Ana Maria Medeiros Costa (2000), atribuindo o lugar de cada um. Se a diferença é estabelecida, a família se torna um lugar de negociação entre a autoridade e a liberdade, entre o vínculo e a autonomia, entre a satisfação dos desejos e a adiação das gratificações, de acordo com Roudinesco (2003).

A nosso ver, a autoridade compartilhada implica uma redistribuição das tarefas, dos papéis, mas ela não exime os adultos do papel de transmitir a lei. Essa função cabe aos pais. E somente ao assumir a diferença entre as gerações – a assimetria – isso se viabiliza. A autoridade não é contraditória à democracia como muitos pensam. Pelo contrário, autoritário seria não transmitir a lei e deixar o indivíduo à mercê dos próprios desejos.

Portanto, acreditamos que os pais de Fábio não conseguem exercer a autoridade no sentido de favorecer a discriminação, pois ou superprotegem o jovem, como se este fosse uma criança, ou o tratam como um igual, como se já dispusesse de todos os recursos para lidar com o mundo dos adultos.

A ambivalência em relação a assumir a autoridade foi percebida por Hanna Arendt (1997) há cinco décadas. A filósofa faz um alerta para o fato de que os adultos estão se demitindo de sua responsabilidade sobre o mundo, ao não assumirem a diferença entre as gerações diante das crianças, os "recém-chegados". Uma primeira leitura desse fenômeno é que os adultos foram influenciados pelos princípios democráticos da Escola Nova, o que vemos acontecer com freqüência no dias de hoje, mas Dufour (2005: 138) nos aponta para outra direção: há uma negação em envelhecer, em aceitar a passagem do tempo.

Isto tem sentido pois, de fato, vivemos sob o imperativo da juventude. Esse imperativo faz com que todos sejam tomados pelo temor do envelhecimento, como se isso significasse decadência. Desta forma, não há uma contrapartida no amadurecimento. Não se vê o lado da experiência, da maturidade que os anos proporcionam a todos.

Walter Benjamin (1996) fala do fio narrativo que distribui os sujeitos entre o narrador e os ouvintes, e Dufour (2005: 138) utiliza a mesma idéia: haveria também um fio discursivo, que distribuiria cada geração em seu lugar.

A negação geracional diz respeito à recusa do adulto em assumir a autoridade que lhe cabe na educação das novas gerações. A autoridade na educação advém, segundo Arendt (1997: 235), de uma necessidade natural: a criança necessita de alguém que cuide dela, que a proteja, e de uma necessidade política: a continuidade da civilização.

O adulto, que deveria assumir o lugar da autoridade, faz isso em nome da cultura, para introduzir a criança ao mundo dos adultos. Para Arendt, a autoridade seria menos que uma ordem cega e mais do que um conselho e ela se ampara no reconhecimento da diferença entre as gerações. No entanto, nas últimas décadas, difundiu-se uma idéia de autoridade entre adultos e crianças atrelada à argumentação. Trata-se de um mal-entendido, pois, para Arendt (1997: 129) isto diz respeito à persuasão, situação entre iguais. Neste caso, haveria um apagamento da diferença que existe entre as gerações. Esta é mais uma das idéias que também foi disseminada com a educação moderna e que foi assimilada nas escolas e na sociedade, em geral, resultando na suspensão da autoridade, como adverte Arendt.

No caso de Fábio, os pais duvidam da capacidade da escola de formar seu filho e a desautorizam quando esta quer torná-lo um aluno que tem que submeter-se às normas, como qualquer outro jovem. Para esses pais, a autoridade é vista como arbítrio, e nenhum ganho advém de tal submissão.

É dessa crença, a nosso ver, que a família de Fábio parece compartilhar – a idéia de que a autoridade é castradora, coercitiva, que impede a livre expressão do sujeito. Trata-se de um mal-entendido, pois a lei à qual todos estão submetidos é também aquilo que possibilita a expressão do desejo. A lei é algo que limita e impede, mas também é algo que protege e estrutura.

No que diz respeito a Fábio, no lugar de ter que entrar no jogo escolar, no qual deveria obedecer às normas institucionais e aprender os conteúdos que são uma amostra do patrimônio cultural, embora simplificada, lhe é oferecido um curso de informática, algo que, na visão dos pais, é mais interessante e dinâmico. Mas paga um preço por isso – sem a lei – não estabelece laços sociais e fica enredado no núcleo familiar.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

ARENDT, H. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 1997.

COSTA, A.M.M. Autoridade e Legitimidade. KEHL, M. R. Função fraterna. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000.

DUBET, F. e MARTUCELLI,D. À l‘École: Sociologie de l‘ expérience scolaire. Paris: Seuil, 1996.

DUFOUR, D-R. Da modernidade à pós-modernidade: referências, A arte de reduzir as cabeças. Sobre a nova servidão na sociedade ultraliberal. Rio de Janeiro: Cia. de Freud, 2005

JEAMMET,P. As patologias do agir na adolescência. Tradução de Lucas Pierini e Mônica do Amaral, do artigo Les pathologies de l'agir 'a l'adolescence. Bulletin de L'ACIRP, Adolescence et psychanalyse, Journée des CMPP. Besançon, 09/04/1994, nº 2, pp75-92.

LAJONQUIÈRE, L. As formas da ilusão. Infância e ilusão (psico)pedagógica. Petrópolis: Vozes, 1999.

PAÍN, S. Diagnóstico e tratamento dos problemas de aprendizagem. Porto Alegre: Artes Médicas, 1985.

PERRENOUD, P. Ofício de aluno e sentido do trabalho escolar. Porto: Porto Editora, 1995.

ROUDINESCO, E. A família em desordem. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.

 

 

1 O objeto de desejo é singular, é diferente de todos os outros objetos.
2 Isto inclusive está previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente.