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On-line ISBN 978-85-60944-08-8

An 6 Col. LEPSI IP/FE-USP 2006

 

Aproximações sobre o tema da deficiência mental no contexto escolar

 

 

Marisa Assunção Cirilo

marisacirilo@uol.com.br

 

 


RESUMO

Tendo como ponto de partida a definição de deficiência mental constante dos Parâmetros Curriculares Nacionais em seu volume Adaptações Curriculares (1999, p. 26), o propósito de nossa investigação é o de pôr em crise o conceito, averiguando em que medida esta teorização, construída sob a influência das abordagens médica, psicológica e pedagógica, foi decisiva para excluir crianças cuja performance não condizia com o ideal de aluno surgido no contexto do ensino público obrigatório. Na seqüência examinamos duas questões: se o tema da deficiência mental poderia ser abordado de outro prisma distinto da perspectiva médica, psicológica e pedagógica em voga e se as recentes políticas públicas de inclusão escolar poderiam contribuir para desencadear uma mudança no jeito de considerar o aluno deficiente mental.

Palavras-chave: deficiência mental; inclusão; psicanálise e educação.


 

 

1. O TEMA DA DEFICIÊNCIA MENTAL

A atual política de inclusão escolar e de atenção à diversidade colocou os sistemas de ensino diante do impasse de ter que prover respostas educativas para um alunado que até bem recentemente não tinha espaço dentro do projeto curricular da escola, entre estes o aluno deficiente mental.

É oportuno mencionar que a identificação do aluno deficiente mental e a quem ou qual estrutura escolar compete a correspondente ação pedagógica envereda por controvérsias e paradoxos, sinalizando que a questão faz ruídos e possui muitas significações em que pese o esforço de alguns educadores de enquadrá-la numa linguagem de validade geral. Assim é que as manifestações fenomenológicas são observadas quando a criança inaugura sua vida escolar e adquirem caráter de vaticínio quando finalmente ingressa no ensino fundamental.

A diversidade de desempenho escolar destes alunos tem a sua correspondência na falta de unanimidade no trato da questão, o que nos fez optar por tratá-la enquanto discurso. Lembremos que a perspectiva discursiva começou a tomar corpo na segunda metade dos 1900, alicerçada na Lingüística. Portanto, é um campo contemporâneo e transdisciplinar, cada abordagem tendo seu próprio sistema de referência teórico-metodológica. No domínio da Psicanálise, Lacan formulou a teoria dos quatro discursos, proposição que balizou nossa aproximação do tema da deficiência mental. Seguindo o rastro lacaniano tomamos o discurso enquanto uma estrutura inserida na linguagem e que institui lugares pré interpretados que transcendem a palavra (LACAN, 1992, p. 10-11).

Portanto, conjecturamos que uma determinada produção discursiva molda a imagem do deficiente mental nos papéis de filho, de aluno e de cidadão atribuindo-lhe uma posição específica na trama social. Tais falas não devem ser consideradas como teorizações que circulam socialmente de forma isolada. Tampouco devem ser imputadas individualmente a este ou aquele agente da trama social – o professor, o médico, o psicólogo, o pai, a mãe – mas antes devem ser consideradas como uma rede da linguagem que se instalou desde a Modernidade.

Com relação ao discurso pedagógico, aquele que aqui nos interessa, é necessário então situá-lo dentro do discurso da ciência que veio sendo gerado no mundo ocidental desde o século XIV, tornou-se hegemônico no século XIX com o imperativo da sociedade capitalista e desdobrou-se no século XX nas formas do cientificismo e do tecnicismo que pautam o jeito de pensarmos o ser e o mundo nos dias atuais.

No nosso país, partindo do discurso pedagógico oriundo de fonte oficial, vamos encontrar nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), em seu volume Adaptações Curriculares (1999, p. 26), uma transposição da descrição proposta pelo Diagnostic and Statistical Manual (DSM-IV), da Associação Americana de Psiquiatria (1994, 4. ed, grifo nosso) que caracteriza a deficiência mental como "um funcionamento intelectual geral significativamente abaixo da média, [...] concomitante com limitações associadas a duas ou mais áreas da conduta adaptativa".

Além da transposição de conceitos de um campo do conhecimento para o outro se configurar indevida já que se trata, via de regra, de modelos que em si mesmos são inconciliáveis, o termo deficiência mental como traduzido para a Língua Portuguesa evidencia qual o recorte que a instituição médica, a instituição do saber psicológico e a instituição escolar fizeram do conceito, que tanto em francês como em inglês é designado de retardo, respectivamente "arrière" e "retard". É revelador que a tradução em Língua Portuguesa do DSM-IV e do CID-10 trazem as duas categorias como uma mesma: retardo mental e deficiência mental. Esta tradução enviesada, que não poucos atribuiriam a uma disposição cultural amistosa e em cuja crítica veriam um excesso de rigor, mascara que o conceito entre nós ficou reduzido a um déficit de rendimento intelectual, um desvio em relação a uma suposta população média, bem ao modelo adotado há dois séculos, na França, por ocasião da instituição do ensino público obrigatório, funcionando como critério de transferência de crianças para um sistema de ensino paralelo, a escola especial.

Presumimos, assim, que uma formulação como a do DSM-IV, adotada tal e qual pelos PCN, tão sintética e natural, encobre uma história de embates entre os campos do conhecimento médico, psicológico e educacional, que tem o seu ponto inicial na metade do século XIX, no interesse de oferecer à fundação da psiquiatria infantil um estatuto científico, e seu ancoradouro final no âmbito escolar, como teorização construída para excluir crianças cuja performance não condizia com o ideal de aluno surgido no contexto do século XX.

 

2. ACERCA DA CONSTRUÇÃO HISTÓRICA DA TERMINOLOGIA SOBRE A DEFICIÊNCIA MENTAL

A proveniência das concepções sobre deficiência mental teve bases médicas, nas duas décadas iniciais do século XIX na Europa, particularmente na França, quando médicos que descreviam os estados mentais começaram a esboçar a noção de retardamento. De acordo com Bercherie (2001, p.130 ) "não se tratava, aliás, de uma noção elaborada a partir de uma observação da criança, mas de um conceito que marca um momento capital da formação da psiquiatria do adulto". Nomes como Pinel e Esquirol sobressaíram-se nestes estudos. No entanto, essas primeiras noções eram descritivas e remetiam à heterogeneidade dos quadros referidos. Bercherie (2001, 131) assinala que "desde Esquirol, a descrição clínica da idiotia é complexa e diversificada".

Uma primeira abordagem de que se têm notícias, envolvendo uma criança, ocorreu por volta de 1800 e envolveu o médico J. Itard e um menino de idade incerta, entre 12 a 15, com hábitos não sociais, que foi encontrado nas florestas do Sul da França e batizado de Victor do Aveyron.

A empreitada de Itard com Victor do Aveyron, não de todo bem sucedida, originou a proposta de reeducação para crianças com deficiências. Do enlace da psiquiatria, assentada na abordagem sensorial dos quadros de retardamento, com a pedagogia inaugurou-se a tradição da educação especial para os retardados.

Ainda na segunda metade do século XIX, enquanto a psiquiatria do adulto via-se às voltas com a descrição e classificação dos quadros de afecções mentais, a psicologia despontava como ciência. O tema da objetividade científica ocupou grande parte das discussões da época e foi Binet, psicólogo atuante no ‘Laboratoire de Psychologie de la Sorbonne, quem em 1894, deu destaque aos problemas metodológicos da psicologia. Como resultado da psicologia científica, em 1905, na França, é publicada a primeira escala de desenvolvimento da inteligência de autoria de Alfred Binet e Théodore Simon. A partir de então, a psiquiatria infantil toma impulso já que a possibilidade de mensurar e comparar a inteligência emprestou-lhe um verniz de rigor e cientificidade principalmente neste primeiro período em que estava às voltas com as questões de retardamento segundo um viés meramente descritivo.

Uma década mais tarde, em Genebra, seriam os estudos desenvolvidos por Piaget, acerca do desenvolvimento cognitivo que tornariam a enlaçar psicologia e psiquiatria infantil. As idéias de Piaget difundiram-se de modo diverso dentro da própria psicologia e em campos da prática médica. Em relação à psiquiatria infantil estas idéias formaram um conjunto que ficou conhecido como psicologia do desenvolvimento, passando a ocupar-se do desenvolvimento e dos seus distúrbios (AJURIAGUERRA,1980, p. 5). Assim, o tema do retardamento, por não ter uma patogênese definida, perdeu terreno em favor da retomada das teses organicistas que passaram a marcar a psiquiatria como o campo das psicopatologias.

Na terceira década do século XX, a questão do retardamento encontrava-se bastante diluída na psiquiatria infantil, suplantada pela emergente concepção médica e somática dos distúrbios mentais enquanto doenças do cérebro e tomou rumos distintos segundo sua filiação às três escolas predominantes da época: francesa, alemã e americana.

Desalojado de seu lugar de honra na psiquiatria infantil, especialmente a vertente americana como se verá adiante, o tema do retardamento passou a merecer atenção nos domínios da psicologia e da pedagogia, mesclando tanto os pressupostos de Binet quanto os de Piaget. Em um primeiro momento, para a pedagogia contemporânea tratou-se de fazer uso das idéias de Binet acerca das escalas métricas de inteligência, de forma a identificar as crianças atrasadas e mesmo impossibilitadas de ascender à escolarização e direcioná-las para a educação especial, com enfoque médico-pedagógico. De outro lado, a apropriação das idéias piagetianas pela psicologia é feita dentro da tradição do pensamento behaviorista, inaugurando o domínio da psicologia da aprendizagem que irá impregnar sobremaneira as teorizações feitas no âmbito da pedagogia, cabendo à pedagogia especializada – educação especial sustentada no discurso médico – dominar o saber fazer acerca da deficiência mental.

Engendrou-se, desse jeito, um discurso de saberes especializados, de controle de uma verdade, cujos efeitos de segregação imiscuíram-se até mesmo no discurso da psicanálise.

Nas primeiras décadas dos 1900, a difusão da psicanálise para outros campos e disciplinas, incluindo a própria psiquiatria infantil, assentou-se sobre os aspectos menos ortodoxos do arcabouço teórico freudiano conhecido como psicologia do ego, tendo em Anna Freud sua sustentação. Influenciados pela perspectiva psicanalítica proliferaram os estudos sobre o autismo e as psicoses bem como a generalização das técnicas psicoterápicas conhecidas como psicanálise de crianças.

Na França dos anos cinqüenta, Lacan, ele próprio um psiquiatra de formação, expõe a dissensão reinante no campo da psicanálise, ao retomar a obra de Freud a partir de sua questão de fundação: quem é o sujeito da relação analítica?

Portanto a psiquiatria francesa influenciada pelo ensino de Lacan despontará, nas pessoas de Françoise Dolto e mais especialmente Maud Mannoni, na investigação e no tratamento de crianças sob a premissa de interrogar sobre o sujeito que fala através de uma variedade de sintomas. Destaque foi dado às psicoses, mas caberá à Mannoni a ousadia de debruçar-se sobre as crianças retardadas, assinalando sobre o retardamento o que outros psiquiatras ou educadores já haviam feito ao longo dos séculos, isto é, sua condição heterogênea (MANNONI,1988, p. 12).

Mannoni desenvolveu seu trabalho numa época em que os psicanalistas, apesar de acordarem sobre o caráter defensivo de base neurótica do retardamento, consideravam inviável a psicanálise com os retardados, uma vez que a análise põe em jogo a palavra e, portanto, somente estaria destinada às pessoas dotadas de inteligência. Questionando o conhecimento instituído da psiquiatria de seu tempo, ela se absteve de formular uma nova classificação ou de encontrar uma nova causa, nem mesmo se tratava de desenvolver um melhor diagnóstico, propôs, isto sim, que se buscasse o sentido da debilidade.

De acordo com Mannoni (1988, p. 30, grifos do autor), "a debilidade concebida como déficit capacitário isola o sujeito na sua deficiência. Procurando para a debilidade uma causa definida, nega-se que ela possa ter um sentido, quer dizer, uma história, ou que ela possa corresponder a uma situação."

Mannoni, no que tange à questão do retardamento, resgata a psicanálise de sua linhagem desenvolvimentista e traz para o primeiro plano em sua abordagem o aparecimento do sujeito do inconsciente e os efeitos de sentido, contrapondo ao desenvolvimento uma história.

Mas se a psiquiatria francesa da metade do século XX foi permeável às teses psicanalíticas de então o mesmo não aconteceu com a psiquiatria americana. Nos anos de 1930 Adolf Meyer migrou para os Estados Unidos e fundou a escola psiquiátrica americana baseando-se num modelo biopsicológico que mesclava-se às teses psicanalíticas que vinham paulatinamente se incorporado à clínica psiquiátrica infantil nos países europeus. O modelo biopsicológico ou psicogenético levava em conta o estudo dos problemas conflitivos, através da compreensão da história de vida individual do doente em interação com o contexto da sociedade e da cultura.

Neste período, o campo da saúde infantil passou a ser domínio de outras especialidades – neurologia, pediatria, psicologia, psicopedagogia, fonoaudiologia – e a psiquiatria infantil vai abandonando a assimilação das teses psicanalíticas e passa a se pretender uma especialidade médica independente, adotando uma postura pragmática lastreada, de um lado, na neurologia e, de outro, na psicologia cognitivista e comportamental.

Assim, da mistura das teses funcionalistas com a abordagem comportamental surgiu, na segunda metade do século XX, a noção de patologia das grandes funções com sua expressão fenomenológica nos distúrbios do comportamento. A assunção das idéias positivistas com seu registro pragmático será de suma importância para os anos vindouros. É neste contexto que a noção de doença mental entra em crise e cria-se a categoria dos distúrbios mentais: a doença refere-se ao corpo e não à mente. À mente seria mais propício considerar como acometida por uma disfunção que se expressa fenomenologicamente em um distúrbio de conduta.

Mesmo assim, o rumor das distintas concepções no campo psiquiátrico levou os psiquiatras americanos a criarem, nos anos 70, um sistema classificatório operativo, baseado em recortes empíricos e de observação, que não se prendiam à etiologia dos fenômenos da clínica. Neste movimento, a abordagem biopsicológica perdeu definitivamente o terreno e a perspectiva biomédica, sobretudo mais pragmática e verificável, toma a dianteira, destacando a importância dos critérios de diagnóstico. A codificação e a validação de tal sistema originaram o International Classification of Disease, da Organização Mundial de Saúde, agora em sua 10ª. edição, (ICD-10, 1992) e o Diagnostic and Statistical Manual, da Associação Americana de Psiquiatria, atualmente em sua 4ª. edição, (DSM-IV, 1994).

Conseqüentemente, a partir dos anos de 1990, o modelo biomédico se fortalece e sofre outra revisão, desta vez pelo advento tanto das tecnologias de imagem como dos avanços da farmacologia, e a noção de distúrbios mentais, ainda que colocados no plano da conduta humana não adaptada, é substituída pela noção de distúrbios neurobiológicos (DOUBLE,2005, p. 1).

Consoante com essas concepções prevalecentes na escola psiquiátrica americana, a questão da deficiência mental passou a assentar-se no seguinte modelo: a) ascendeu à categoria de diagnóstico, utilizando-se de critérios descritivos que desconsideram a compreensão de sua etiologia; b) é entendida a partir de um prisma funcionalista, como funções intelectuais que se expressam independentemente da história da criança; c) o rendimento deficitário dessas funções intelectuais é passível de medição através de tratamento estatístico, conferindo-lhe um grau de objetividade e predição; d) as funções intelectuais com rendimento deficitário interferem na relação organismo-meio limitando a capacidade adaptativa das pessoas, que fica à margem da ordem social estabelecida.

 

3. A ABORDAGEM DA DEFICIÊNCIA MENTAL COMO EFEITO DE SENTIDOS

Cabe nesta parte retomar o ponto em que iniciamos nossa exposição, a definição de deficiência mental tal como aparece nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) tendo como suporte os sistemas classificatórios da psiquiatria nos quais se baseia a prática da medicina e verificar quais os efeitos que tal transposição provoca no domínio do discurso pedagógico tomado no viés cientificista-tecnicista tanto para o aluno como para o professor.

O paradigma biomédico predominante na psiquiatria americana da segunda metade dos anos novecentos é emblemático da ilusão científica contemporânea e como tal é hegemônico no cenário médico brasileiro. Portanto não causa espécie que uma classificação da deficiência mental específica à área médica, lastreada num pressuposto científico, compareça como norteadora de referenciais de ensino que batalham por alcançar estatuto científico. Esta referência é funcionalista e adaptativa; sua inspiração conceitual é a biologia. Seu modelo está baseado nas deficiências físicas e sensoriais, de maneira que a deficiência mental é também considerada sob o prisma de uma topografia funcional cerebral. Seu mote judiciário é normativo e discriminante.

Conforme menciona DOUBLE (2005), a adoção do paradigma biológico tem conseqüências éticas, entre elas apagar a história de vida dos indivíduos e pelejar por reduzir os fatores biológicos, psicológicos, sociais e culturais que entram em jogo na formação de um sintoma psíquico ou físico unicamente a causas orgânicas. Somando-se ao debate, Cirino (2001, p. 92) adverte que na "[...] ideologia de um ‘cérebro sem sujeito’ presente na perspectiva psiquiátrica atual, um psicanalista incomoda-se principalmente com as conseqüências terapêuticas desse modelo: o único agente de transformação possível seria o recurso aos psicofármacos, no máximo associados ao condicionamento do comportamento ou do pensamento."

No caso da deficiência mental, se a pensarmos unicamente pela perspectiva funcional e adaptativa, aspectos que certamente entram em jogo na realidade escolar, eximimos o deficiente mental de se implicar no seu retardo e o alienamos de sua história.

Agora podemos descortinar como as coisas se passam pelo lado do professor. As teses organicistas ao migrarem para o domínio da educação escolar o fazem de par com a psicologia da aprendizagem e levam consigo o entendimento de que as marchas e contramarchas que um aluno experimenta durante seu percurso acadêmico estão intimamente relacionadas com o desenvolvimento ou amadurecimento de seu equipamento biológico. Diante de tais circunstâncias tidas como naturais, o professor se exime da responsabilidade de ensinar a espera de que os modismos teóricos lhe digam como fazê-lo ou então que os especialistas finalmente descubram um mau funcionamento ou um defeito orgânico que o subtraia do lugar da impotência perante uma educação excessivamente idealizada como possível (LAJONQUIÈRE, 2002, p. 33).

Finalizando as reflexões desta seção, se Manonni fala de efeitos de sentido em relação ao débil nos arriscamos a conjeturar, no contexto escolar, que também com respeito ao professor trata-se de algo semelhante, apenas que no último caso refere-se a uma história de como cada professor sustenta ou não seu ato de ensinar a um aluno nesta posição. Seria um bom começo os professores retomarem sua posição de atores do ensino e autores das suas próprias metodologias e, analogamente aos alunos que deveriam ser colocados em posição de se interrogarem sobre seu atraso cognitivo, se situarem numa posição de implicação (VOLTOLINI, 2002, p. 271).

 

4. INCLUSÃO ESCOLAR E DEFICIÊNCIA MENTAL

Existem polêmicas e paradoxos com relação aos pressupostos e ao manejo do processo de inclusão escolar que vem ocorrendo no nosso país neste início de século. O tema da deficiência mental é apenas um entre outros tantos que se colocam nesse cenário. O fato é que por causa deste processo é que estamos revisitando a questão do retardamento que permaneceu no obscurantismo nos últimos duzentos anos.

Pode-se pensar a inclusão sob diversos ângulos mas para permanecer alinhados com a perspectiva adotada neste texto propomos tratar a inclusão como uma tentativa violenta de ruptura, por isso o mal estar a ela associado, com um ideal homogeneizador, normativo e adaptativo vigente na atualidade que expulsa o diferente, o mórbido, o desajustado. Embora possa ser tomada como mais um disfarce do discurso cientificista-tecnicista hegemônico, não dá para desconsiderar que nas suas entranhas se aninha um embate acirrado que pode ser sintetizado na seguinte questão: como ser um no meio de todos?

Portanto, talvez pudéssemos mesmo pensar a inclusão escolar como extinção do lugar da exceção e nesse caso em nada diferente do processo de horizontalidade que acontece na sociedade (ARENDT, 1995, p. 50; ROUDINESCO, 2000, p. 19). Mas assim sucedendo, a política de inclusão escolar reinstala o conflito, qual seja, que todos os envolvidos têm que se ver frente a frente com as impossibilidades, as indeterminações, o fracasso e o inesperado, fenômenos estes que os modelos educativos ao longo dos séculos empenharam-se em ignorar, expulsar e controlar.

A título de encerramento, cogitamos que nenhum campo do conhecimento pode, exclusivamente, deliberar sobre a deficiência mental. O que talvez pudesse acontecer seria a priorização de um campo do conhecimento sobre outro dependendo do lugar em que se toma o deficiente mental, de sorte a minimizar os efeitos de discursos divergentes na constituição do sujeito.

Quando se pensa o deficiente mental a partir do campo pedagógico talvez a psicanálise possa lançar outras luzes, interrogando sobre o ato de ensinar que é justamente o que mobiliza o aluno na sua condição de sujeito desejante. "[...] O drama dessas crianças é, justamente, nunca terem sido tratadas como sujeitos de seus desejos." (MANNONI, 1988, p. 74).

Esta é a face da questão que vale ressaltar no que toca ao aluno deficiente mental. Colocá-lo no lugar de quem possa dar-se conta de sua situação de sujeito e assim sustentar suas próprias questões se responsabilizando pelo seu aprendizado, pela sua condição de sujeito do conhecimento enfim. Não todo o tempo e nem para sempre como se fica tentado a pensar ilusoriamente o aprendizado. Mas de forma transitória, intermitente, fortuita, paradoxal como é o irromper do sujeito do inconsciente. Como também é próprio de todo processo de aprendizagem a despeito de pretender-se planejá-lo, controlá-lo e subjugá-lo.

Quanto ao professor, referimo-nos a uma nova produção de saber que designamos por implicação. Trata-se da interrogação feita pelo professor acerca das possibilidades de seu ato de ensinar os deficientes mentais, ainda que às vezes vituperando as diretrizes oficiais, se apegando a certezas, se destituindo de sua autoridade de professor ou abrindo-se para o inesperado. E à questão: por que ensinar quem não aprende, entre eles, os deficientes mentais? A resposta talvez viesse no sentido de uma descoberta, qual seja, agüentar o incômodo, as dúvidas, as surpresas, o inexplicável e da mesma forma desapegar-se de métodos pedagógicos generalizantes, que no mais das vezes demitem o professor de seu lugar de autor. Enfim, descobrir o seu próprio caminho, a sua própria verdade que dê ao seu ato de ensinar um sentido de singularidade.

Pelo lado da instituição escolar propomos a formulação de que não é lícito supor que uma ou outra modalidade de educação – especial ou regular – tenha o domínio exclusivo do ensino do deficiente mental. Assim é que a missão da educação nacional deveria colocar a questão de ofertas educacionais flexíveis que estivessem baseadas primeiramente no laço social, aquilo que garante à criança, na posição de aluno, um lugar de pertencimento simbólico, ao invés das propostas educativas em voga lastreadas unicamente numa educação idealizada como utilitária e funcional. Como sugere Mannoni (1988, p. 76) "[...] os sucessos, bastante paradoxais em sistemas escolares diferentes, não se explicam nem pelo método pedagógico empregado, nem pelo nível intelectual do sujeito, mas antes pelo que este encontra como resposta ao que buscava inconscientemente."

Por último, se chegamos a concluir que as políticas públicas de inclusão escolar são formas de estabelecer garantias morais a fim de evitar a exclusão baseada em perspectivas de categorização, de outro lado, ao fazê-lo correm o risco de ser tomadas no discurso cientificista-tecnicista que apaga as diferenças e dilui a dissimetria. Este jogo de forças queda como violência imposta pela pena da lei à prática pedagógica – as resoluções e regulamentações oficiais – no estilo de uma imposição peremptória: faça-se a inclusão não importa a quantas penas. O saldo é o cenário caótico e persecutório bem familiar àquele que atua em educação.

Por outro lado o processo de inclusão ao reintroduzir o conflito abala, sem dúvida, as instituições escolares, comprometidas pela sua própria inerência, com a ordem da conservação e da reprodução. Assim, sem nem mesmo o pretender numa forma que diríamos objetiva, este desarranjo promoveu um corte no discurso tecnicista e adaptativo hegemônico.

Portanto, abrir furos na prática cotidiana escolar que possibilitem a criação de novas cenas tendo como compromisso oferecer um lugar de existir no laço social para tantas crianças especiais talvez seja o desafio que nós, educadores, deveríamos abraçar.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

AJURIAGUERRA, J. Manual de Psiquiatria infantil.Tradução de Paulo Geraldes e Sonia Alves. Rio de Janeiro: Masson do Brasil, 1980. 952 p.

ARENDT, H. A Condição Humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995.

ASSOCIAÇÃO AMERICANA DE PSIQUIATRIA. Manual de diagnóstico e estatística das perturbações mentais. 4. ed., 1994. Disponível em: <http://www.psiqweb.med.br/dsm/dsm.html>. Acesso em: 12 de jan. 2007.

BERCHERIE, P. A clínica psiquiátrica da criança: estudo histórico. Tradução de Oscar Cirino. In: Cirino, O. Psicanálise e Psiquiatria com crianças: desenvolvimento ou estrutura. Belo Horizonte: Autêntica, 2001. p. 127-144

BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais. Adaptações Curriculares – Estratégias para a educação de alunos com necessidades educacionais especiais. Brasília: Ministério da Educação, 1999.

CIRINO, O. Psicanálise e Psiquiatria com crianças: desenvolvimento ou estrutura. Belo Horizonte: Autêntica, 2001. 155 p.

DOUBLE, D.B. Paradigm Shift in Psychiatry. In: RAMON S.; WILLIAMS J. (ed.). Menthal health at the crossroads: the promisse of the psychosocial approach. Abingdon: Ashgate, 2005. Disponível em: http://www.critpsynet.freeuk.com/paradigm.htm Acesso em: 25 de mar. 2007.

LACAN, J. (1969-1970). O avesso da psicanálise. Tradução de Ari Roitman. O Seminário, Livro 17. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992.

LAJONQUIÉRE, L. Infância e ilusão (psico) pedagógica. 3. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002. 204 p.

MANNONI, M. A criança retardada e a mãe. São Paulo: Martins Fontes, 1988.

ROUDINESCO, E. Por que a psicanálise? Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.

VOLTOLINI, R. As vicissitudes da transmissão da psicanálise a educadores. In: ANAIS DO COLÓQUIO LEPSI - PSICANÁLISE, INFÂNCIA, EDUCAÇÃO, 3., São Paulo. São Paulo: Universidade de São Paulo, Instituto de Psicologia, Lugar de Vida, 2002.