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On-line ISBN 978-85-60944-08-8

An 6 Col. LEPSI IP/FE-USP 2006

 

Do plural ao singular

 

 

Monica de Barros Cunha Nezan

 

 


RESUMO

A prática institucional na Pré-escola Terapêutica Lugar de Vida e no grupo Ponte (grupo que acompanha a escolarização das crianças do Lugar de Vida) tem suscitado vários questionamentos entre os profissionais e em especial um: como, a partir dos diferentes discursos dos diversos profissionais envolvidos no atendimento de uma determinada criança, vai emergindo a singularidade do caso em questão? Para discutir esta questão, partirei do singular de um caso, trazendo como ponto de partida um impasse que aparece e que provoca algo da ordem de um mal-estar dirigido à instituição: a pergunta sobre o lugar que é dado aos pais no atendimento de uma criança, as demandas que são a eles dirigidas pelos diversos atores institucionais e as demandas que se dirigem à instituição por parte dos pais...

Palavras Chaves: Autismo; Educação Terapêutica; Singularidade.


 

 

A prática na Pré-escola Terapêutica Lugar de Vida e no grupo Ponte tem suscitado vários questionamentos entre os profissionais e gostaria de destacar uma em particular: como, a partir dos diferentes discursos dos diversos profissionais envolvidos no atendimento de uma determinada criança, vai emergindo a singularidade do caso em questão?

Para discutir esta questão, partirei do singular de um caso, trazendo como ponto de partida um impasse que aparece e que provoca algo da ordem de um mal-estar dirigido à Instituição. A pergunta, tão recorrente, sobre o lugar que é dado aos pais no atendimento de uma criança, as demandas que são a eles dirigidas pelos diversos atores institucionais e as demandas que se dirigem à instituição por parte dos pais desemboca numa outra questão: como manejar o tempo que todo tratamento requer, ou seja, "o tempo de ver, de compreender e concluir", sem cair no enlouquecimento do discurso do mestre a serviço do supereu, nem terminando na desestruturação do trabalho de uma equipe em nome do discurso do analista; conforme nos adverte Barros (2003, p.82).

No Lugar de Vida, são muitas as situações graves, que podem incluir o horror, tais como a miséria, o abandono, a gravidade dos casos, formas de real que convocam o sujeito. Tratar desse real, de algo do impossível, é aquilo a que os praticantes do Lugar de Vida se dispõem e também são convocados. Cito Lambert (2003, p. 49), quando afirma que "quanto mais alguém se oferece para dar conta do impossível, mais cai na impotência". Para fazer face ao real, cada um dos sujeitos envolvidos vai responder de forma precária.

Segundo Barros (2003, p.80), "A lógica do discurso do analista é aquela que abre o caminho para uma utilização inédita do real, do gozo que escapa e que, na psicose, se conjuga ao Outro, dando-lhe consistência de invasor. Essa lógica exige todo um trabalho para cingir o real em jogo na experiência, de forma a furar o imperativo implacável ao qual se acham submetidos: a criança colocada em posição de objeto; a mãe, cujo gozo do objeto é perturbador; o pai descartado, considerado inoperante e os diversos profissionais, quando não dispõe do discurso do analista como referência".

 

A chegada na Instituição

Na Triagem Victor se mostra agitado, fala sem parar, palavras soltas e descontextualizadas; pega revistas, folheia várias ao mesmo tempo e recorta logotipos. A mãe diz que ele é assim o tempo todo, "não tem parada". Quando questionados sobre o que acham que acontece com o Victor, o pai pede para a mãe responder; a mãe responde que não sabe dizer, ou seja, nada tem a dizer sobre isso. O que consegue formular é "tenho que ficar 24 horas com ele", dizendo não poder confiar nele pois ele não tem a noção de perigo, tendo que vigiá-lo o tempo todo.

O início do tratamento é marcado pela recente separação dos pais de Victor. Ele, por sua vez, não se separava de objetos/recortes de figuras com o qual ele interagia de uma forma incessante e sem trocas, fazendo colagens...

Victor está na puberdade, cursando a 5ª. série, na mesma escola em que estudaram familiares. Foi encaminhado para o Lugar de Vida com o diagnóstico de autista; este diagnóstico de "autista" apareceu para a mãe com uma marca, quando ela diz, a respeito do significante autista: "ainda bem que tem um nome".

Os pais de Victor namoraram escondido por 1 ano até que a mãe engravidou. Segundo ela própria, seu pai era um homem rígido e dizia não gostar de "nordestino" – o pai de Victor é nordestino. Diz que, no início do casamento, pai e filho foram rejeitados pelos familiares dela e com o passar do tempo foram "aceitos".

Quando fala da história de Victor, a mãe destaca alguns episódios, separados por vários espaços de tempo. Começa a falar dele, a partir do 5º mês de gestação, data em que comunica aos seus familiares a sua gravidez. Desse período, ela se desloca para o momento em que ele tinha 3 anos: "uma criança que não falava, mas escrevia". O namoro foi escondido, engravidando após 1 ano, também "escondido" – o filho também ficou escondido durante uma parte da gestação.

Victor tem um irmão mais novo que ele. No nascimento deste irmão, começaram as desavenças entre ela e seu marido até que se separaram e o pai de Victor foi morar com outra mulher, "abandonando" a família sem conversar com o filho, segundo a própria mãe.

Sua produção escrita também traz a marca do incessante. Desenhava frotas e mais frotas de táxis, bombeiros e polícia e escrevia, preenchendo toda a folha, quer com os desenhos e/ou os escritos sem pausa – sem espaço.

 

O percurso na instituição

Foi indicado, inicialmente, o ateliê de Lego para Victor, como uma tentativa de construção de algo novo para ele e desconstrução do "incessante", ou seja, com o objetivo de dar um contorno e transformar as colagens e os recortes dos logotipos em uma construção de um outro lugar, "para que o incessante cesse".

Com as intervenções da equipe, surgiram mudanças significativas quanto a possíveis trocas e mudanças de interesse. O que antes eram revistas "Bêja" (Veja), nas quais procurava logotipos de carros, deslocou-se para ônibus e bombeiros. Passou a poder efetuar trocas com a equipe de tratamento, permitindo que se guardassem as revistas no armário do grupo, havendo uma mudança de posição frente às intervenções, do grito onde não tinha palavra possível, neste momento, podia se pensar e falar.

Victor estava em um outro momento do tratamento, passou a nomear as crianças, pais e profissionais da instituição, construir frases e se utilizar de recursos próprios para amainar suas angústias. Por exemplo, diante de um "não" passa a perguntar se depois poderá fazer o que lhe foi negado agora e pode se tranqüilizar. A mãe descobriu que podia estabelecer limites, oferecer trocas para o filho: "isso não pode, mas aquilo talvez..."

Neste momento, há também a mudança de tratamento, Victor passou para um grupo onde o trabalho é centrado na escrita e se pensou em um acompanhamento e na indicação da escolarização para ele – Grupo Ponte, em paralelo.

Victor freqüentou pré-escola no passado, mas permaneceu por pouco tempo, pois, segundo a mãe "ele precisava de uma escola para autista" – esta foi a demanda inicial para o Lugar de Vida. Nota-se que o pedido inicial destes pais não se referia ao tratamento do filho em questão, mas a um saber sobre o autismo, ou a falta dele. A resposta institucional não foi a de responder a esse pedido, entendendo que a demanda é sempre de outra coisa. Foi por não se colocar no lugar de especialista em autismo que viria completar o saber que faltava nos pais, que o dispositivo institucional pôde fazer um giro nesse discurso. A resposta dada não veio do lugar do mestre, daquele que teria um saber a oferecer sobre o autismo.

Victor começou a freqüentar a montagem institucional, lugar em que se tentou situar quais os recursos que esta criança já havia construído para lidar com as demandas das várias pessoas envolvidas no tratamento. Nos diferentes espaços de tratamentos, no grupo, com a referência, na escuta dos pais, havia um atravessamento de um norte a seguir, ou seja, compreendia-se ser necessária uma atenção criteriosa e reflexão sobre os acontecimentos e intervenções e as respostas vindas por parte de Victor e os pais. As conseqüências foram aparecendo, pôde-se deixar de pensar em "uma escola para o autismo, e como tratar um autista", para se abrir uma possibilidade de tratamento daquela criança.

Partindo de uma ética e princípios próprios, a psicanálise nos mostra que a totalidade e a completude harmônica são da ordem do impossível. É a partir dessa orientação que os diferentes dispositivos institucionais foram criados no Lugar de Vida.

O significante autista produziu, inicialmente, um alívio e não alguma estranheza ou questionamentos maternos e, no decorrer do tratamento institucional, foi se dando um deslocamento e um esvaziamento desse sentido produzido pelo significante-mestre que nomeava Victor, aos olhos da mãe. Se autista era "um nome" sob o qual o sujeito se eclipsava, o tratamento institucional deu lugar à queda desse significante, para que "onde autista era, Victor pudesse advir".

Do grupo terapêutico inicial, onde Victor fazia colagens e recortes de logotipos, sem cessar, dois momentos importantes marcam a virada no tratamento e o enlace transferencial da mãe em relação ao tratamento do filho. O primeiro, deu-se quando ele usou uma das frases de um seriado, de forma contextualizada, no grupo e quando respondeu à pergunta de sua mãe sobre uma produção sua. No primeiro episódio, ele aproveitou-se de um vacilo de um membro da equipe, abrindo o armário e pegando as revistas que costumava usar. Surpreendido por um dos membros da equipe, ele diz: "Não contavam com a minha astúcia" (relembrando o ‘seriado Chaves’). O segundo episódio foi narrado pela mãe à referência institucional: ele havia produzido, com as peças do seu monta-monta, uma cena articulada. A mãe pergunta sobre o que ele fez e, como de costume, não esperou resposta. Ele explicou a cena, dizendo: "Esse é o metrô, vou pegar a Pça. Da República (ônibus) e esse é o Marcelo na janela" (Marcelo, amigo da instituição).

 

A ponte para a escola

Victor chega em uma escola, escolhida por sua mãe, escola esta conhecida por ela há muito tempo. É uma escola grande e barulhenta. Curiosamente, ele tem horror a barulho e tapa os ouvidos, para não escutar. Ele se adapta ao ambiente e consegue interagir com o barulho, o número grande de crianças, sem se perturbar tanto.

A professora, por sua vez, já o conhecia de antes, porque trabalhou em uma pré-escola em que ele tivera uma passagem e na qual fora expulso. Ela, ao saber que ele iria se matricular lá, demonstrou interesse em ficar com ele na sua sala, o que implica na decisão de que ele iria para a 2ª Série, em que ela lecionava.

Na escola, já chegou alfabetizado; no entanto, ele escrevia as palavras sem intervalos, sem espaço entre elas, sem separação. Escrevia sem parar, de maneira compulsiva, preenchendo todo o espaço em branco, do papel, em páginas e páginas. Aos poucos, com a ajuda da professora, e do Grupo da Escrita em paralelo, Victor passa separar as palavras que ele escrevia. Ele pôde dar o intervalo entre as paradas e limitar a sua produção escrita. Consegue fazer bem cópias, mas demonstra dificuldade para produzir textos de sua autoria. Em matemática, faz contas de forma mecânica e apresenta dificuldade se as contas estiverem fora da ordem esperada, não conseguindo subtrair ou adicionar.

Apesar das dificuldades de Victor, ele pôde chegar na 5ª Série. A escola funcionou como um lugar de travessia para ele. É um lugar que ele gosta, faz laço com os professores (em especial, o de matemática) e consegue circular entre os pares, sem grandes impasses. A escola ofereceu um lugar para um aluno, com dificuldades, não aprisionado no significante autista.

 

Espaço Institucional: há um tempo de concluir

Estando no grupo da escrita, Victor chega à puberdade, momento que está na escola, beneficiando-se de uma vida num outro lugar. Entendeu-se que chegou a hora de dar continuidade a este percurso, que fora iniciado na articulação entre os vários dispositivos institucionais, na parceria com a escola. Aqui, vê-se como no espaço da pluralidade, entre os vários interlocutores, permitiu-se a emergência do singular.

Agora, resta iniciar um outro caminho...

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

Revista Brasileira Internacional de Psicanálise – Opção Lacaniana

Prática Lacaniana. A "formação" do analista, n. 37 – setembro 2003