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On-line ISBN 978-85-60944-08-8

An 6 Col. LEPSI IP/FE-USP 2006

 

Transmissão e laço social1

 

 

Mônica Rahme

monicarahme@hotmail.com

 

 


RESUMO

A inserção de crianças que apresentam necessidades educacionais especiais na escola comum traz especificidades para pensar a educação como possibilidade de filiação simbólica, a partir dos laços sociais que se estabelecem no contexto escolar. Para refletir sobre essa questão, proponho um diálogo com o conceito de transitivismo, tal como aprofundado por Gabriel Balbo e Jean Bergès (2002). Para esses autores, a operação transitivista possibilita significar o colocar-se na posição do outro, o que remete às relações primordiais da criança com o outro materno. Articulando o conceito ao tema proposto, podemo-nos perguntar pelas posições transitivistas que uma criança, diferenciada dos semelhantes por uma deficiência ou pela necessidade de cuidados especiais, pode despertar nas crianças que não se encontram na mesma situação: aproximação, afastamento, disposição à convivência e ao cuidado com o semelhante, sofrimento? Quais seriam as particularidades da transmissão presente nesse laço social?

Palavras-chave: Educação inclusiva; laço social; transitivismo.


 

 

A presença na escola comum de crianças que apresentam "necessidades educacionais especiais" tem se tornado freqüente em vários municípios brasileiros que adotam a perspectiva da Educação Inclusiva em suas políticas educacionais, sobretudo após a circulação de documentos internacionais como a Declaração de Salamanca (1994) e a Convenção de Guatemala (1999). Nesses documentos, verificamos a tentativa de superar a segregação social historicamente imposta às pessoas com necessidades especiais, por meio de proposições de natureza igualitária.

Tornar igual o diferente, considerando nessa passagem a conquista política de direitos, não é uma operação que possa ser simplificada, do ponto de vista da psicanálise. Ao contrário, para FREUD (1913), não há pacto simbólico sem uma renúncia pulsional e sem uma partilha: a renúncia de tratar o outro como objeto e a partilha de reconhecer que a todos cabe uma parte (NAPARSTEK, 2005). Para a psicanálise, portanto, desenvolvemos nossa capacidade de acolher o outro quando ele nos traz alguma semelhança, quando nos encontramos, de certa forma, capazes de considerá-lo como semelhante (FREUD, 1921), o que é reafirmado por LACAN (1969-1970), ao dizer que a fraternidade surge de um ato de segregação.

Nesse sentido, proporcionar uma escolarização comum a todas as crianças consiste em um marco civilizatório importante, mas não suficiente, pois, como argumenta LAJONQUIÈRE (2001), "o civilizado que inventa ‘seu’ selvagem quer tanto vir a lhe conhecer quanto a ignorá-lo" (p. 51). Para o autor, toda criança é recebida pelo adulto como um estrangeiro para depois tornar-se um familiar, pois "educar é transmitir marcas simbólicas" que designam um lugar no campo da palavra e da linguagem ao infans. Essa passagem também necessita ser feita no caso da infância com problemas, repetindo-se no percurso de sua escolarização.

Referindo-se a crianças e adolescentes autistas e psicóticos, KUPFER (2000) assinala que a inserção escolar traz desdobramentos significativos para o modo desses sujeitos se relacionarem com o outro e com o conhecimento escolar. Segundo a autora, a importância do significante escola para esses sujeitos – que, muitas vezes, tinham seus cotidianos reduzidos aos tratamentos clínicos –, sua participação em uma rotina escolar e a possibilidade que ela traz de estabelecer laços sociais fora da família, estando em contato com saberes da cultura, têm uma função terapêutica para os sujeitos, contribuindo, assim, para a "retomada ou a reordenação da [sua] estruturação perdida" (idem, p. 90). Contudo, seria excessivo afirmar que todas as crianças e adolescentes, nessa mesma condição, teriam os mesmos ganhos com a entrada na escola comum.

Tendo como princípio, portanto, a consideração de que educar é transmitir marcas simbólicas, proponho discutir a dimensão de transmissão que pode estar presente na relação entre as crianças na escola, quando um certo coleguismo permite a aproximação entre elas, possibilitando a produção de hipóteses sobre o corpo do outro em situações nas quais se ausentam a fala, os movimentos motores ou simplesmente os movimentos de endereçamento ao outro. De certo modo, é como se as crianças que já estivessem inseridas no dispositivo escolar – e, portanto, no simbólico desse dispositivo – tivessem uma participação bastante peculiar na introdução de seus colegas a esse funcionamento.

A noção de transitivismo me pareceu apropriada para investigar essas vivências, pois remete à dimensão da hipótese e da suposição em relação ao corpo do outro. Na vivência transitivista, de uma forma geral, o sujeito prova como sendo dele ações ou sentimentos supostamente vividos pelo outro, situando no seu próprio corpo um objeto exterior, ou fazendo um movimento de significar vivências do outro, a partir do que supõe lhe afetar (BALBO; BERGÈS, 1997, 2002).

O termo transitivismo é originário dos estudos sobre a psicose (final do século XIX), sendo retomado e discutido por WALLON na sua obra As origens do caráter na criança (1934). WALLON realiza uma releitura do conceito, diferenciando o transitivismo dito psicótico de um transitivismo próprio à vivência da criança com o outro. Para o autor, o transitivismo diz respeito a um momento que precede "o instante em que a criança irá distribuir, sem erro, entre ela e o outro, os estados ou atos percebidos" (WALLON, 1971, p. 242). Nesse sentido, indica uma não-divisão entre o sentimento e o gesto, evidenciando a dificuldade da criança em fazer coincidir sua imagem extereoceptiva com a intuição proprioceptiva de seu corpo e de sua atividade.

LACAN faz alusão ao conceito de transitivismo em produções dos anos trinta e quarenta, não retomando a noção posteriormente2, o que será feito pelos psicanalistas BALBO e BERGÈS (2002), que articularão esse conceito às formulações lacanianas em torno do real e do gozo3.

De acordo com esses autores, o transitivismo remete às relações primordiais da criança com o outro materno, quando a mãe, marcada pela lei simbólica, demanda ao filho que se identifique ao que ela diz. Partindo da suposição "de que, já que ele sabe, há então um sujeito", a mãe demanda à criança "apropriar-se, começar seu tesouro de significantes" (BALBO, BERGÈS, 2003, p. 22). A mãe atribui, assim, um saber ao filho, que funciona como um golpe de força que impele a criança ao enodamento borromeano.

O transitivismo é, portanto, um processo pelo qual a criança acede ao afeto – um jogo de afetação – porque a mãe, a partir de uma vivência julgada dolorosa, atribui tanto um corpo a seu filho, quanto a possibilidade de experimentar corporalmente um afeto. Os autores (2003) discutem que por meio do transitivismo a criança pode libertar seu corpo do imaginário para inscrevê-lo no simbólico, o que traz desdobramentos, também, para o corpo materno. O transitivismo aciona dimensões de temor e de satisfação na criança, ligadas ao masoquismo e ao gozo que ela não pode conter. Desse modo, limita ou cria o sofrimento no outro, como uma forma de apaziguar a própria agressividade.

A presença de operações transitivistas entre as crianças, no contexto de escolas inclusivas, tem sido assinalada por alguns educadores, e nesses relatos observamos que algumas crianças parecem mais interessadas nesse jogo do que outras, como se elas se disponibilizassem mais à experiência transitivista. Esses educadores dizem, por exemplo, que "os colegas perceberam que ele queria ir ao banheiro e o acompanharam", "levaram o fulano para a sala quando ele estava meio perdido", "resolveram se revezar para ficar perto dele na hora das atividades". As operações transitivistas manifestam-se, ainda, quando as crianças sinalizam que o colega está com fome, se está gostando ou não da atividade, e isso, em muitos casos, parece permitir o desenho de uma borda para a permanência dessa criança, por vezes tão diferente, na escola. Alguns educadores chegam a dizer que em determinadas atividades são os colegas que dão pistas de como lidar com o colega, ou mesmo serem eles a se encarregar de certas funções, como se dominassem melhor as entradas na relação com essa criança do que o adulto professor.

As crianças podem, ainda, mostrarem-se solidárias com a dor que supõem no colega, embora ele não a manifeste, desempenhando um movimento de forçagem em direção ao corpo desse outro, no sentido de inscrever uma experiência dolorosa em um corpo que não responde do mesmo modo, ou que parece não ser marcado pelas mesmas hipóteses. É claro que essas hipóteses nem sempre se mostram procedentes, podendo contar com recusas por parte do colega, ou mesmo se tornarem invasivas e insuportáveis, levando a outros desdobramentos, como a agressividade.

Os efeitos dessas operações para as crianças com necessidades especiais costumam ser evidenciados pelos profissionais que as acompanham no âmbito do tratamento e da escolarização, quando ressaltam que muitas crianças, após sua entrada na escola comum, apresentam-se mais organizadas, começam a se interessar por outros objetos, com maior abertura para a relação com o outro.

Refletindo sobre os colegas, podemos perguntar: o que as crianças dizem dessa interação? O que é, para elas, estar com esse outro? Como formulam suas hipóteses e se dirigem a esse colega? Enfim, quais são os efeitos dessa convivência para elas? Essas são algumas das questões que pretendo investigar no trabalho de pesquisa em curso, esperando, com isso, trazer contribuições para o campo da Psicanálise e Educação inclusiva, sobretudo na questão do laço social e transmissão simbólica.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BALBO, Gabriel, BERGÈS, Jean. A criança e a Psicanálise. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997.

_____________________________. Jogo de posições da mãe e da criança: ensaio sobre o transitivismo. Porto Alegre: CMC editora, 2002.

___________________________. Psicose, autismo e falha cognitiva na criança. Porto Alegre: CMC editora, 2003.

FREUD, S. Totem e tabu. In: Edição Standart Brasileira das Obras Completas, vol. XIII [1913-1914], Rio de Janeiro: Imago, 1976. p. 13-193.

________. Psicologia de grupo e a análise do ego. In: Edição Standart Brasileira das Obras Completas, vol. XVIII [1921], Rio de Janeiro: Imago, 1976. p. 89-179.

KUPFER, Ma. C. M. Educação para o futuro: psicanálise e educação. São Paulo: Escuta, 2000.

LACAN, J. O Seminário: Livro 17, O avesso da Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992 [1969-1970].

LAJONQUIÉRE, L. de. Duas notas psicanalíticas sobre as crianças "com necessidades educativas especiais". Pro-posições, Campinas, v. 12, n. 2-3 (35-36), jul.-nov. 2001.

NAPARSTEK, F. Do pai universal ao pai singular. In: Curinga. Escola Brasileira de Psicanálise – Seção Minas Gerais, n. 21, p. 41-54, jun. 2005.

WALLON, Henri. As origens do caráter na criança. SP: Difusão européia do livro, 1971 [1934].

 

 

1 As elaborações apresentadas neste texto se relacionam ao tema de minha pesquisa de doutorado, em curso, na Faculdade de Educação/USP, e puderam ser aprofundadas a partir da experiência de estágio no Grupo Ponte/Lugar de Vida/IPUSP. À equipe do Grupo Ponte, agradeço a abertura institucional e a interlocução de trabalho.
2 Para aprofundamento, conferir: JALLEY, É. Freud, Wallon, Lacan: l’enfant au miroir. France: EPEL, 1999.
3 Os autores consagram capítulos à investigação em torno do transitivismo nos livros: A criança e a psicanálise (publicado em 1994) e Psychotherapies d’enfants: enfant en analyse (publicado em 2004), no conjunto da publicação Psicose, autismo e falha cognitiva na criança (publicado em 2001), além do já citado Jogo de posições da mãe e da criança (originalmente publicado em 1998).