6Fracasso escolar: reflexões!A presença do discurso médico na educação author indexsubject indexsearch form
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On-line ISBN 978-85-60944-08-8

An 6 Col. LEPSI IP/FE-USP 2006

 

Transmissão e estilo: o que define a singularidade na relação professor-aluno?

 

 

Odana Palhares

odana@uol.com.br

 

 


RESUMO

Ao tratar da questão da transmissão em psicanálise Lacan marcou o possível desse acontecimento salientando que o que se transmite é o estilo que, por sua vez, não tem como ser copiado, sendo que aquele que faz essa tentativa corre o risco de não passar de uma caricatura mal feita do modelo. Partindo do sentido dessa questão para a psicanálise buscaremos as relações possíveis dessa idéia para a transmissão na educação. Sabemos que há uma distância entre o que se ensina e o que se aprende, fruto das diferenças colocadas em jogo nas relações humanas. Considerando essa diferença podemos nos perguntar: o que é que se transmite no ato educativo? Como educar nessa perspectiva? Em que consiste a transmissão e o estilo? O que se desdobra para o sujeito com o predomínio de um ou de outro? Os autores que têm se ocupado da relação psicanálise e educação enfatizam a importância de se levar em conta o inconsciente no processo de ensino e aprendizagem. Isso significa entendermos que não se trata somente de respeitarmos as marcas de singularidade na produção do aluno, mas também saber que o mestre marca igualmente sua transmissão. Se transmite muito mais que o conteúdo de uma disciplina, pois os alunos observam no mestre a paixão, a postura ética, o respeito pelo outro, pela cultura, pelas opiniões divergentes, o respeito por si próprio, a seriedade, o compromisso, a dedicação, enfim... e ainda podemos nos perguntar: como isso acontece? Nosso propósito é refletir, segundo Kupfer, sobre os efeitos da transmissão da psicanálise para o educador e o desdobramento na relação professor-aluno. Aceitar essa transmissão significa endossar os pressupostos da psicanálise, dos quais nosso trabalho privilegiará aqueles diretamente implicados nesse artigo, ou seja, o inconsciente, o sujeito e a relação transferencial.

Palavras-chave: psicanálise e educação; estilo; transmissão.


 

 

Psicanálise e Educação

A conexão psicanálise e educação é quase tão antiga quanto a própria psicanálise. A construção do edifício psicanalítico se confunde com a biografia de Freud e por esta também passam as suas primeiras reflexões sobre a educação, como podemos ver em Psicologia do Colegial, texto de 1914, fruto de suas inquietações.

Nos dias atuais não mais se espera fazer uma pedagogia psicanalítica, assim como não se coloca mais como condição que todos os professores passem pelo processo de análise. Não se tem mais a ilusão de uma profilaxia das neuroses (Freud), nem o descrédito postulado por Millot e reformulado por Kupfer, Lajonquière e outros psicanalistas atuais. Igualmente não mais se desacredita que a psicanálise tenha algo a dizer para a educação, ou seja, a evolução das pesquisas têm mostrado que a psicanálise pode sim contribuir para a educação.

As opiniões convergem para a esperança, que alimenta a transferência da educação com a psicanálise, assim como a esperança que tem o analisando de que o analista pode ajudá-lo. Nesse caso alimentando a transferência do analisando com seu analista (Nasio, 2001:99).

Essa esperança a que nos referimos acima abre possibilidades para que a conexão psicanálise-educação frutifique.

A questão que se coloca é: se os professores não precisam, todos eles, passar pelo processo de análise, como podem se preparar para trabalhar nessa perspectiva?

Segundo Kupfer (2006) não se trata de fazermos formação de professores, pois o essencial não é aprendido cognitivamente. É resultado da história de vida de cada um.

Essas idéias podem dar a impressão, num primeiro momento, que então há muito pouco a ser feito, mas a produção acadêmica responde com muito trabalho e os resultados positivos dessa conexão evidenciam a importância de se continuar pesquisando, assessorando e dando suporte àqueles educadores que buscam fazer algo diante do mal-estar na educação.

 

O ato de aprender e o ato educativo

O ato de educar para a psicanálise pode ser compreendido como "...todo ato de um adulto dirigido a uma criança" (Kupfer, 2000: 35) no sentido de transmitir a demanda social e permitir à criança "filiar-se a uma tradição existencial" (Lajonquière), e com isso reconhecer-se no outro. A posição do adulto é fundamental para o ato educativo, e ainda que o adulto seja omisso já estará se posicionando, só que de uma forma prejudicial, pois há etapas da constituição psíquica que requerem um adulto forte, capaz de enfrentar as dificuldades que acontecem em todo ato educativo.

Não aprendemos sozinhos. Mesmo o ato mais solitário de aprendizagem supõe aquilo que está disponível na Cultura. Querendo, ou não, sempre há um outro nesse processo. Podem ser os pais, os professores, os pares ou a Cultura. Segundo Kupfer (1992) o ato de aprender sempre pressupõe uma relação com outra pessoa, a que ensina.

Para aquele que aprende, seus mestres serão aqueles a quem, por sua vez, o sujeito reconhece, respeita e "concede" o poder de influenciá-lo. Os melhores mestres não são garantia da melhor formação, pois a relação acima citada não é garantida pela erudição do mestre e, além disso, estes não podem fazer pelo sujeito aquilo que lhe cabe. Podem ensinar, mas não podem percorrer o caminho daquele que aprende.

Por sua vez, este último pode "fazer tudo o que o seu mestre mandar", mas só será realmente sujeito da sua aprendizagem quando puder encontrar a sua maneira, singular, de aprender. Isso supõe que este sujeito se coloque na condição de implicar-se e responsabilizar-se por sua formação.

Os autores que têm se ocupado da relação psicanálise e educação enfatizam a importância de se levar em conta o inconsciente no processo de ensino e aprendizagem. Isso significa entendermos que não se trata somente de respeitarmos as marcas de singularidade na produção do aluno, mas também saber que o mestre marca igualmente sua transmissão.

Essa condição de um sujeito implicado em sua formação tem uma relação direta com a relação estabelecida com o mestre. Conjugando nossas idéias com as de Lajonquière quando afirma que "Educar é transmitir marcas simbólicas" destacamos a transmissão como tendo uma importância especial nesse processo, pois no ato educativo o professor transmite muito mais que o conteúdo de uma disciplina. Transmite o respeito pelo outro, pela Cultura e por si próprio, a postura ética, a paixão pela vida, pelo estudo, a seriedade, o compromisso, mas também pode transmitir o reverso destes itens. O lugar do mestre, para a psicanálise, será o de sustentar o lugar de referência da Cultura e falar em nome do Outro. Ao mesmo tempo, deixar um espaço para que o sujeito possa emergir nesse processo.

Sabemos que há uma distância entre o que se ensina e o que se aprende, fruto das diferenças colocadas em jogo nas relações humanas. Considerando essa diferença podemos nos perguntar: o que é que se transmite no ato educativo? Como educar nessa perspectiva? Em que consiste a transmissão e o estilo? O que se desdobra para o sujeito com o predomínio de um ou de outro?

 

A singularidade na aprendizagem

A noção de estilo utilizada por Kupfer (1999) para interrogar o estatuto dos chamados problemas de aprendizagem provoca uma revisão dos conceitos envolvidos. Para aquele que endossa os pressupostos da psicanálise, trata-se de redimensionar os problemas de aprendizagem, ou melhor, os sintomas que são nomeados dessa forma.

Os conceitos de transmissão e estilo não são privilégio da psicanálise. Esta se destaca no tratamento singular dado a estas noções, até porque sua transmissão não segue os modelos acadêmicos, a psicanálise é uma práxis.

Ao tratar da questão da transmissão em psicanálise Lacan marcou o possível desse acontecimento salientando que o que se transmite é o estilo que, por sua vez, não tem como ser copiado, sendo que aquele que faz essa tentativa corre o risco de não passar de uma caricatura mal feita do modelo. Além disso, faz referência a essa noção para dizer que, para além do referencial teórico, cada psicanalista terá a sua própria maneira de lidar com o analisando. Partindo do sentido dessa questão para a psicanálise buscaremos as relações possíveis dessa idéia para a transmissão na educação.

Nossas criações são expressões das influências sofridas em nossa vida e na nossa formação. O desafio será encontrarmos o nosso jeito de fazermos alguma coisa, pois embora tributários daqueles que nos ensinaram e nos respeitaram, não podemos nos constituir numa cópia destes. O risco é duplo: copiar bem e reproduzir bem não tem brilho próprio e tentar reproduzir o brilho do outro, ou seja, o estilo do outro, é um risco ainda maior porque pode-se tornar uma caricatura do primeiro e o fracasso é inevitável.

Riolfi (2001) usa a metáfora dos mortos-vivos em "007 Viva e deixe morrer" para falar daqueles que correspondem muito bem ao desejo do Outro mas estão mortos em sua singularidade. Lembrando a música de Paul McCartney - Live and let die, ela propõe uma mudança na ordem sintática e diz "deixemos morrer o Outro ao qual nos alienamos (...) para que, no nosso lado, algo de vivo compareça, e talvez, se formos sensíveis, nos surpreenda e nos comova."

Se a formação analítica supõe tamanho rigor e preconiza o estilo como aquilo que marca a singularidade de cada um, ainda que transmitido, como disse Lacan "A única coisa que se pode transmitir é o estilo", mas essa transmissão talvez possa ser melhor entendida como um saber testemunhado por um outro (Riolfi, 2006).

Não procede falar de estilo se não for acompanhado da ação, do fazer. Estilo não é uma palavra a ser usada como subterfúgio para a falta de compromisso. É uma palavra para ser usada no ato responsável.

Admitimos que a falta de compromisso possa ser um sintoma, mas nesse caso, estilo não é a melhor palavra para tratar a não aprendizagem. Há que se distinguir modos de aprender e não-aprendizagem. Nos modos de aprender temos um sujeito comprometido com o saber, e o que está em questão é o ritmo, o tempo, a forma, enfim...

Na não-aprendizagem a questão passa pelo sintoma, pela inibição ou pelo fracasso escolar, e as causas são as mais diversas. Os dois primeiros ligados à história do sujeito e este último, ligado às questões sociais, institucionais.

 

Os efeitos de nossos atos

O trabalho com crianças nos coloca, como bem pontuou Jerusalinsky em seu texto "A infância sem fim", no lugar do suposto saber uma vez que todo o arcabouço teórico do qual nos servimos para esse trabalho, não é capaz de garantir o que ele chamou de "um bom destino". Os efeitos de nossos atos são conhecidos somente a posteriori, até porque a infância no ser humano é longa e uma das considerações da psicanálise sobre esta nos diz que "aquilo que se inscreve na criança atuará como um texto cifrado no adulto".

Essa condição só faz aumentar o nosso desamparo e não são raras as condutas pretensamente assertivas a respeito da adaptação que, se conduzida a partir de um bom planejamento, levará ao resultado esperado. Essa visão positivista ignora a complexidade da linguagem e seus desdobramentos no psiquismo humano.

A utilização dos saberes sobre a infância pela psicologização escolar é questionada, pois ao serem convocadas a responder a performance padronizada, as crianças e seus pais vivem em constante estado de angústia.

Nosso propósito é refletir sobre o ato de escrever. As marcas de singularidade de um sujeito no processo de escrita e suas vicissitudes serão vistas nesse trabalho como desdobramentos da articulação entre escrito e escrita.

Segundo Kupfer (2006) escrito é esse sistema de marcas inconscientes, que rege o funcionamento do aparelho psíquico inconsciente, inicial, fundamental. (...) O escrito mostra-se no sonho, dá-se a ver na escrita, no rébus. A escrita alfabética não é uma representação da fala e guarda relações com o escrito inconsciente, que está na base de ambos.

A autora faz referência a Pommier (1996) e seu livro Naissance et renaissance de l’écriture, bem como à noção de inconsciente estruturado como escrito, sendo esta uma idéia revolucionária que, de certa forma, já se encontrava na Interpretação dos Sonhos (Freud, 1900). Portanto, não deixa de ser um retorno a Freud.

A noção de estilo no tratamento dos problemas de aprendizagem na leitura e na escrita coloca o olhar na singularidade do sujeito nesse processo e retira o enfoque médico que tem tratado como distúrbio aquilo que não é um problema funcional, aquilo que revela e marca a persistência e a insistência do sujeito em se preservar. Bem como retira o olhar psicologizante sobre as diferentes formas de aprender.

Nos propomos a falar de estilo no meio da estrutura da linguagem, ou melhor por meio da produção daquele que escreve. Nossa questão é estabelecermos a relação entre a constituição subjetiva e a produção objetiva com as marcas do escritor, ou seja, com o que surge na escrita como revelador da singularidade do sujeito que escreve. Para a leitura do escrito a metodologia utilizada será a transliteração levando em conta a tradução e a transcrição, sendo respectivamente facetas do simbólico, imaginário e real, instâncias psíquicas.

 

Um modo de educar segundo a psicanálise

Na articulação dos conceitos aqui apresentados com a educação, concordamos com Kupfer (2006) sobre "um modo de educar orientado pela psicanálise" em que a noção de estilo possa ser mais uma contribuição nesse diálogo.

Articular os conceitos de transmissão e estilo com uma educação psicanaliticamente orientada mantém aquilo que a psicanálise preconiza para a educação, ou seja, o respeito pelo que é de ordem inconsciente, pela subjetividade, pela singularidade e pela relação transferencial. E vai além...convoca o mestre para além do compromisso com a sua formação. Requer deste a responsabilidade pelo ato de ensinar e educar. Essa responsabilidade significa responsabilizar-se pelo outro, o aluno, implicando-se no ato educativo. Em O Professor no divã (2004) Lajonquière já se referia àquilo que cabe a nós adultos na educação de uma criança, ou seja, dar testemunho da posição que ocupamos e fazermos a nossa parte.

Ainda com Kupfer (no prelo), o educador orientado psicanaliticamente saberá acolher o que a criança fala, escutando-a, e interrompendo-a no sentido de dar vazão ao simbólico, mas sempre fazer a ponte com o Real.

A responsabilidade nessa perspectiva não deixa de ser um ato de amor e a singularidade na relação professor-aluno pode ser definida pela dimensão do compromisso, no ato educativo. Conjugando nossas idéias com as de Lajonquière (1997) quando diz "Ensina-se por dever, aprende-se por amor", bem como com as de Riolfi (2006) que afirma "ensina-se por amor", talvez possamos dizer que o dever concretizado no ato responsável, não deixa de ser amor. Responsabilizar-se, implicar-se no ato educativo pode ser ligado ao respeito pelo outro e é interessante pensarmos no sentido da palavra respeito, ou seja, relativo ao peito, bem próximo do coração. Podemos entender que do ponto de vista etimológico o respeito está próximo do amor.

"Fazer a nossa parte".

 

Diferença entre ensinar e educar

Penso que cabe aqui lembrarmos de uma história, que já recebi duas vezes pela Internet, sobre marcas de batom no banheiro:

"Numa escola pública estava ocorrendo uma situação inusitada: uma turma de meninas, de 12 anos, que usaba batom todos os dias, removia o excesso beijando o espelho do banheiro. O diretor andava bastante aborrecido, porque o zelador tinha um trabalho enorme para limpar o espelho ao final do dia. Mas, como sempre, na tarde seguinte, lá estavam as mesmas marcas de batom. Chegou a chamar a atenção delas por quase dois meses, e nada mudou, todos os dias acontecia a mesma coisa. Um dia, o diretor juntou o bando de meninas e o zelador no banheiro, explicou pacientemente que era muito complicado limpar o espelho com todas aquelas marcas que elas faziam. Depois de uma hora falando, e elas com cara de deboche, o diretor pediu ao zelador "para demonstrar a dificuldade do trabalho". O zelador imediatamente pegou um pano, molhou no VASO SANITÁRIO e passou no espelho. Nunca mais apareceram marcas no espelho!!! E o texto conclui "Há professores e há educadores".

A responsabilidade pelo ato de ensinar implica em correr riscos, não é uma tarefa fácil e não há modelos que garantam os resultados. Mas, se o diretor só podia produzir significantes e mais significantes nas suas explicações, o zelador através do horror do seu ato interrompeu a cadeia do gozo, o que gerou consequências.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

KUPFER, M.C. Freud e a Educação: o mestre do impossível. São Paulo: Editora Scipione, 1992.

KUPFER, M.C. Pequeno Hans: uma educação psicanaliticamente orientada. Seminário LEPSI/USP, 2006.

KUPFER, M.C. Texto recebido por e-mail, intitulado "Inconsciente e Escrita".

LAJONQUIERE, L. Dos "erros" e em especial daquele de renunciar a educação. Estilos da Clinica, 1997, ano II, numero 2, pp. 27-43.

LAJONQUIÈRE, L. O Professor no divã. Entrevista concedida ao Caderno Educação do Jornal Folha Dirigida, 2004.

NASIO, J.D. O valor da transmissão. In: Percurso: Revista de Psicanálise. Ano XIV, nº26, 1ºsem.2001, pp.93-101.

RIOLFI, C. Formacriação. Seminário de Leitura e Produção no Ensino Superior. 12º COLE. Unicamp, 1999 e Revista Línguas e Letras, Unioeste, vol.2, 1ºsem.2001, pp.13-18.

RIOLFI, C. Anotações de aula. 2006.