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On-line ISBN 978-85-60944-08-8

An 6 Col. LEPSI IP/FE-USP 2006

 

O pequeno infante escolar: as vicissitudes de um novo sentimento de infância fabricado pela Educação Infantil

 

 

Roberta Ecleide de Oliveira Gomes-Kelly

ecleide@gmail.com

 

 


RESUMO

Este estudo traz algumas reflexões acerca da subjetividade na Educação Infantil, advindas de uma pesquisa acerca do discurso e prática de educadores infantis. Nos relatos dos educadores infantis, observou-se a ênfase em uma criança sempre pronta a descobrir, aberta ao mundo (espaço de surpresa e novidades). Isto parece indicar o surgimento de uma nova visão de infância, específica para a criança pequena, como um outro sentimento de infância, correspondendo a uma subjetividade (pós)moderna. O pequeno infante costuma ser estimulado em casa, pelos pais e outros adultos, intentando-se um ser humano mais preparado para o mercado de trabalho, na perspectiva de uma sociedade neoliberal de seres capacitados e altamente competitivos. Na Educação Infantil, o pequeno infante aparece identificado ao escolar: o pequeno infante escolar, alguém estimulado a descobrir, na voracidade das não-informações atuais, advindas das necessidades de mercado, para chegar ao (des)conhecimento de seu consumo. A ênfase na descoberta, na novidade e na surpresa não parece vir acompanhada de uma construção, de uma produção de conhecimento engendrada pela relação e pela história. Portanto, o pequeno infante escolar, talhado para os mais avançados cuidados físicos e psíquicos, resultaria no adulto perfeito, longevo e capaz de usufruir totalmente de todos os seus dias, sem falhas, sem dores, sem angústia – suprimindo-se qualquer mal-estar. Para esta nova infância, novos servos: técnicos (psicólogos, fonoaudiólogos, fisioterapeutas, etc.) e educadores infantis. Tais educadores, fabricantes desta "nova infância", são premidos pela urgência da capacitação, assim como pela "crença" da existência de alguma teoria/prática inovadora que impeça as dificuldades ou percalços, enganados de que é o ensino que comanda o ato educativo. Compreender estas novas relações, entre a criança pequena e o educador infantil é fundamental para que se criem formas de agenciamento do desejo e não de seu tamponamento.

Palavras-chave: Educação Infantil; Educador Infantil; Psicanálise da pequena infância.


 

 

Uma pesquisa concluída é sempre uma pesquisa perdida, pois o texto coloca-se em seu lugar. Um texto é sempre uma máquina preguiçosa esperando por alguém que lhe confira sentido, esperando pela melhor pergunta para que viva e cumpra seu papel.
(Lopes, Faria Filho e Veiga, 2000)

 

A Educação Infantil tem-se tornado um espaço necessário aos cuidados da primeira infância, assim como um novo campo de atuação específica de profissionais da educação – os educadores infantis.

Este trabalho é resultado de uma pesquisa feita em período de pós-doutorado, buscando correlacionar o discurso e a prática das educadoras infantis quanto às crianças. As educadoras infantis foram entrevistadas em dois grupos: o grupo I foi apenas entrevistado, encontrando-se pessoas com formação exclusiva em Educação Infantil, bem como em Pedagogia e Magistério. O grupo II foi entrevistado e observado em sala de aula, em atividades livres e dirigidas de escolha das educadoras infantis.

Nos dois grupos, vimos a identificação da criança a aspectos positivos, tais como: diversão, pureza, potencial, abertura, encanto, aprendizagem, descoberta, sinceridade, surpresa, prazer, alegria felicidade, transformação, vivacidade, possibilidades a serem desenvolvidas, futuro, paixão, inesperado, ser especial, inocência, luz e esperança, um "serzinho".

Tais características enfatizavam, nos relatos, a criança como alguém sempre pronto a descobrir, aberto ao mundo, sendo este entendido como espaço de surpresa e novidades, em que o educador ora aparece encantado com tanto potencial a ser desenvolvido, ora aparece como intermediário e agente destas descobertas.

A certeza dos aspectos positivos presentes nas crianças indicou, em primeiro lugar, a necessidade de preservação da criança como índice de pureza e inocência perdida do adulto, a ser mantida na descoberta de cada instante, como surpresa, nostalgicamente.

Inocente, pura e surpreendente, a criança anunciada pelo grupo I apareceu como o "bom perdido", apresentado muitas vezes com um sorriso permeando as frases. Mas, quando se pensou na formação profissional e mesmo na atuação, a partir das colocações de educadoras infantis e educadoras-auxiliares de sala, vimos acréscimos de descoberta do potencial e da necessidade de estar junto.

No material do grupo II, exclusivamente no caso de educadoras infantis que estavam cursando Pedagogia ou com esta graduação concluída, as colocações se afastavam do ideal de pureza e inocência, mas mantinham a perspectiva prospectiva (do desenvolvimento) e do potencial, do futuro e do aprendizado. Ou seja, a criança se mostrava de maneira idealizada, esperando-se dela que fosse melhor que o adulto, estando o educador comprometido com o estímulo a este desenvolvimento e aprimoramento.

De acordo com Ariès (1981), Gélis (1991) e Kramer (2003), moralização e paparicação andam juntas no cuidado à criança pequena, desmerecendo o momento de estar com ela como algo importante. Ao moralizar, o educador infantil pareceria "prometer" o que nem sabe que pode ter. O adulto, educador ou não, "prometeria o devir", consolidando o discurso social de que amanhã será melhor – o próprio adulto virá a ser melhor a partir da criança (ele mesmo) que sonha cuidar.

Destacamos, no entanto, uma entrevistada, sem nenhuma formação em nível superior, educadora infantil de crianças de 03 e 04 anos. Suas respostas enfatizavam a importância de estar com a criança no momento (o "sendo"). Pode ser que isto seja resultado de uma capacitação através do aprender fazendo, através de cursos e seminários que a entrevistada freqüentou por conta própria, de acordo com sua vontade e necessidade; é em tom de lamento, porém, e de desculpas que mencionou não ter condições de cursar o terceiro grau.

Distante das colegas na graduação, paradoxalmente, é a educadora sem nível superior que conseguiu uma formulação menos contaminada pelo ideal infantil, ainda que se percebesse "de fora" de um grupo supostamente mais capaz e informado. Por outro lado, a escolha pela profissão se fez pela necessidade de se sentir completa e isto acontecia no encontro com as crianças, reforçando a idéia de "bom perdido" das outras entrevistadas. Foi somente esta entrevistada que se implicou na escolha pela profissão de educador infantil, sem cair nas armadilhas de uma proposta de auxílio à criança, de cuidado que isenta o cuidador do próprio querer naquilo que faz.

Dos educadores com experiência em níveis diferentes de escolarização, apareceu a criança "serzinho": prejudicado em sua minoridade, a ser "elevado" a partir do ensino e da ação do adulto. Diferenciando-se da criança, o adulto criaria um espaço de projeção de suas angústias e mesmo de sua forma de negá-la, pois ainda haveria tempo de transformar a criança – tanto a que ensina como a que ele mesmo foi, pois estamos falando de uma ação pautada na projeção do adulto.

A partir destes resultados, passamos a refletir sobre esta infância "menor" e já escolarizada. Tais atributos dados às crianças pequenas (principalmente os atributos de surpresa e descoberta) nos fizeram pensar no surgimento de uma nova visão de infância, específica para esta faixa etária – zero a cinco anos – como um novo sentimento de infância ou uma derivação deste (amplamente discutido nos textos que estudam o sujeito moderno), agora afim a uma subjetividade (pós)moderna – científica e tecnológica.

Para pensar esta "derivação", recorremos a Plaisance (2004), o qual destaca o desenvolvimento de uma pequena infância, como área de investigação e delimitação – através da Sociologia da Pequena Infância. O autor mostra como a escolarização precoce em países industrializados fez surgir uma categoria que encobriu a pré-escola, a educação da pequena infância (aliando educação, atenção, cuidados e guarda).

A Sociologia da Pequena Infância deve ser compreendida como "Sociologia da socialização", fundamentada tanto na escolarização como nas ações e condutas dirigidas às crianças pequenas no âmbito familiar, na interação da criança pequena com adultos ou outras crianças. Por socialização, Plaisance (2004, p. 3) entende "um processo que abrange toda a vida humana, ou seja, que constitui os seres humanos como seres sociais", a ser difundido de maneira impositiva do adulto em relação à criança, que se faria de maneira mais clara no espaço escolar, através das negociações necessárias entre as relações com os outros seres humanos.

As formas de socialização escolar e familiar, no entanto, fazem contraste. Por ser a socialização escolar imbuída de um caráter de impessoalidade e de cientificidade, tende a obscurecer ou diminuir o que se faz de educativo e socializante no âmbito familiar e mesmo cotidiano (relações adultos-crianças pequenas nas ruas, nos afazeres diários).

Nesta nova forma de valorização da criança pequena, um bebê, desde sua gestação é percebido como uma pessoa. Isto é bastante influenciado pelos saberes científicos; os quais chegam às escolas através da psicologia do desenvolvimento, das propostas pedagógicas específicas para os pequenos e das várias formas do aprender ludicamente.

Com tais avanços, a Educação Infantil influencia o surgimento do pequeno infante. Na escola, o pequeno infante também se revela, identificado ao escolar. Na instituição de Educação Infantil, o pequeno infante escolar seria alguém estimulado a descobrir, na voracidade das não-informações de nossos dias, mas de acordo com as necessidades de mercado, que exigem um sujeito útil, dócil, consumidor e desconhecido das razões de seu consumo, de sua utilidade e docilidade.

O lugar do pequeno infante escolar é confirmado pelos programas de prevenção e promoção de saúde, mental e física, nas crianças bem pequenas, com vistas ao adulto perfeito, o qual tem a expectativa de vida aumentada e busca a fruição total da tecnologia e de todos os seus dias, sem falhas, sem dores, sem angústia.

No ambiente familiar, cotidiano e escolar, alguém a ser estimulado em todos os ambientes pelos adultos de seu convívio, intentando-se um ser humano mais preparado... Para quê? Para o mercado de trabalho, na perspectiva de uma sociedade neoliberal de seres capacitados e altamente competitivos. Sob isto, porém, esconder-se-ia a tentativa do adulto de apagar na criança a existência do sofrimento e da dor de não saber o que virá: seria uma nova face do recalque.

A ênfase na descoberta, na novidade e na surpresa, não parece vir acompanhada de uma construção, de uma produção de conhecimento que leve em conta tanto as informações constituídas e construídas pela humanidade ao longo de sua história, assim como de cada "aprendente".

Para esta nova infância, novos servos: psicólogos, fonoaudiólogos, fisioterapeutas e os educadores infantis, premidos pela urgência da capacitação, assim como pela "crença", subjetiva, da existência de alguma teoria ou prática inovadora que poderá impedir as dificuldades ou percalços, no engano de que é o ensino que comanda o ato educativo.

Estas mudanças, que podem ser interpretadas como algo novo, parecem-se mais com uma especificidade do individualismo crescente, que chegou, enfim, àqueles que ainda não se colocam, não consomem (diretamente) e parecem não se posicionar: as crianças pequenas. Este aparente não posicionamento se efetiva na ansiedade dos pais de sanarem a culpa (de não estarem em casa, de trabalharem demais) e a nostalgia daquilo que (não) foram e jamais serão.

No discurso das educadoras infantis, observamos os traços de uma prática que se afirma, se conduz e retroage sobre o discurso em torno do recalque e da busca de alívio para a angústia dele decorrente. Pela via da pedagogização, a alienação em torno das questões humanas fundamentais – castração, morte, sexualidade e agressividade – se torna uma estratégia que incrementa sua existência, aumentando a angústia e criando situações de gozo.

A saída – ou encaminhamento de outras possibilidades não gozosas e alienantes estaria no cuidado à subjetividade do educador infantil, o qual conseguiria dar acesso à subjetividade da criança pequena; para além das urgências escolares e mercadológicas.

Pela via da subjetividade do educador infantil e da criança pequena – não transformada em pequeno infante escolar – não há garantias de sucesso ou de ausência de problemas – mas há a chance de agenciamento do desejo, através da linguagem e de práticas menos sintomáticas. O desafio estará em nos colocarmos (enquanto adultos) de frente à dura escolha de ter uma infelicidade neurótica ou uma infelicidade comum, de todo dia.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARIÈS, P. História Social da Criança e da Família. Rio de Janeiro. Guanabara, 1981.

GÉLIS, J. A individualização da criança. In: ARIÈS, P. & DUBY, G. História da Vida Privada. Da Renascença ao Século das Luzes. São Paulo. Companhia das Letras, 1991. Vol. 3.

KRAMER, S. A política do pré-escolar no Brasil. A arte do disfarce. São Paulo. Cortez, 2003. 7ª. Ed.

PLAISANCE, Eric. For an early childhood sociology. Educação & Sociedade. [online]. Apr. 2004, vol.25, no.86 [cited 03 February 2006], p.221-241. Available from World Wide Web: <http://www.scielo.br/ scielo.php?script=sci_arttext &pid=S0101-73302004000100011&lng=en&nrm=iso>.