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On-line ISBN 978-85-60944-08-8

An 6 Col. LEPSI IP/FE-USP 2006

 

As práticas educativas e os castigos: o exercício da crueldade como o lugar da inscrição da memória*

 

 

Rogério Rodrigues

rogerio@unifei.edu.br

 

 


RESUMO

Não é pouco comum nos defrontarmos na vida com situações em que temos que tomar uma determinada "decisão". Nesses momentos é que buscamos recorrer às nossas "certezas" capazes de nos direcionarem  para o "acerto", já que fomos educados a não aceitar o "erro". Portanto, diante de uma "decisão" o sujeito pode ficar rememorando suas "inscrições", às quais denominamos "memória", para que possa encontrar alguma indicação que o oriente no "julgamento" capaz de direcioná-lo à ação. Compreendemos que o "corpo" e a "alma" são fontes permanentes de  "memória" para que o sujeito possa "lembrar" a "si mesmo". Ou seja, são nesses lugares que se encontram "inscritas as marcas" do seu próprio destino. Assim, afirmamos que os nossos "paradigmas" se constituem a partir de nossas histórias de vida, principalmente, do modo como lidamos com a educação realizada pelos pais e educadores que a todo o momento instituem no corpo e na alma o lugar da "inscrição da verdade" fazendo com que não nos "esqueçamos" ou  nos "desviemos" daquilo que parece "certo". O que a Psicanálise pode nos ajudar a pensar sobre esses mecanismos da "dor" que são utilizados para que se faça memória a ponto do sujeito ter no "corpo" e na "alma" registros para  "rememorar" a sua própria vida? Qual a "dose" necessária de castigo a ser aplicada para que o sujeito possa reconhecer "verdadeiramente" o "seu erro"? A "certeza"  desse "saber" acaba por lançar os pais e os educadores no "labirinto ilusório" de que há um "eu" a  ser cultuado, ou seja, há uma "crença" na instituição do "modo civilizatório" de sujeito. Assim, acredita-se que há um "saber" como "educar" e, principalmente, o "fortalecimento" da neurose de que é possível responder às perguntas de como devemos "educar" as crianças e os adolescentes visando à constituição de um  sujeito dito "normal".

Palavras chaves: Educação; Crueldade; Psicanálise.


 

 

"Quem é severo consigo mesmo adquire o direito
de ser severo também com os outros, vingando-se
da dor cujas manifestações precisou ocultar e
reprimir". (Adorno, 1995, p.128)

 

Somos sujeitos do esquecimento. Quando afirmamos isso, somos levados a pensar sobre os diversos motivos que promovem no sujeito o mecanismo do esquecimento. Diríamos, em poucas palavras, que o esquecimento é terapêutico ou sintomático, ou seja, esquecemos o que nos causa sofrimento ou esquecemos alguma coisa que não deveríamos esquecer. Nesta circunstância, consideramos o esquecimento como remédio ou como doença. Os limites que separam esses dois "campos do esquecimento" são as circunstâncias daquilo que devemos sempre lembrar "em ser" ou podemos esquecer "em ser". Portanto, partimos do pressuposto de que é inapropriado esquecer o nosso próprio nome, mas é passível de consideração que venhamos a esquecer o nome do outro. Entretanto, mesmo o nome de que nos esquecemos, muitas vezes, sabemos que a qualquer momento dele nos lembraremos e isso provavelmente promoverá em nós uma grande satisfação em retomar o nome na consciência. Assim, nem tudo é apagado, pois as nossas lembranças são marcas que se inscrevem no corpo e na alma. Resta saber como e porque mantemos as nossas lembranças e, principalmente, se não as transformamos para encobrir o pior de nós mesmos, de como "fomos" ou "somos" feios em ser sujeito.

Tendo como referência a possibilidade do "esquecimento" terapêutico/sintoma, lançamos a seguinte questão no campo da psicanálise: como construímos as nossas lembranças de nosso "ser sujeito"?

Partimos do pressuposto de que a condição humana é invariável, apesar de desejarmos "ser" e estabelecermos um processo de identificação, portanto, vivemos a esperança de a qualquer momento encontrar o que foi perdido de nós mesmos na relação com o outro. Entretanto, temos medo de constatar o quanto se perdeu e, principalmente, o quanto deixamos de "ser".1

Quando pensamos nessa questão das "lembranças" tendo como eixo a prática educativa e a referência teórica da psicologia, acabamos por justificar esse processo como resultado de alguma coisa passível ou não de memorização em função da adequação entre os sujeitos. Para o campo do psicológico, a memória, resulta do processo de estímulo que o indivíduo recebe do meio.2 Portanto, a falta de memorização é a falta de estímulos no sistema nervoso que não são suficientes para o sujeito fazer registro. A partir dessa referência pensamos que os casos de "falta de aprendizagem", como são os casos de "problemas de educação", circunscrevem-se em assuntos que tratam da "motivação", "adaptação", "ambientação", "criatividade", entre outros modos de retratar o sujeito e o processo de escolarização no sentido de promover um correlacionamento a fim de "ajustar" ambas as partes envolvidas na relação educativa. Este ajuste tem como intuito alcançar aquilo que se denomina o "sucesso educativo".3 Portanto, podemos compreender que, de um modo geral, as "fórmulas pedagógicas" apresentam-se, basicamente, como:

construções teóricas que se baseiam na idéia de que a sociedade é espelho do homem e/ou vice-versa. Uma vez envoltas nessa ‘teoria do espelho’, essas pedagogias acreditam na educação como uma forma de correção da imagem, isso é, corrige-se o original e a cópia se ajustará automaticamente.4

Quando a relação educativa não ocorre como o planejado e, principalmente, quando o "sucesso educativo/aprendizagem" não se manifesta em sua totalidade, os educadores que se encontram de plantão, buscam identificar os motivos da "distorção da imagem", mais propriamente, a "não memorização", que por sua vez é identificada como se fosse "falta de estímulo" que desemboca em "problemas educativos". Este processo de causa e efeito em "problema educativo" ocorre em cadeia e não faltam explicações "pedagógicas" para compreender o "fracasso escolar",5 as quais se centram na tese

de uma falta de adequação, ou relação natural, entre a intervenção do adulto e o estado psicomaturacional das crianças e dos jovens. Assim, oscila-se entre afirmações do tipo ‘ainda não está maduro para uma tal atividade’ e o ‘método utilizado revelou ser pouco eficaz’ (...). Sendo essa tese da conaturalidade que funciona como algoritmo do raciocínio pedagógico, é possível escutar por aí afirmações singulares do tipo: ‘é por causa da falta de motivação’, ‘porque é filho de pais separados’, ‘porque é uma criança favelada’, ‘porque a lousa é preta e não verde’, ‘porque, no lugar de dar o intervalo no meio, o professor deu no fim da aula’, ‘porque, no lugar de fazer uma aula de uma hora, fez uma aula de uma hora e meia e as pesquisas psicológicas alertam para o fato de se produzir estafa psíquica depois de uma hora’.6

Esses discursos que sustentam os "fundamentos da educação" ou aquilo que denominamos "fundamentos das correções" podem variar, mas a metodologia empregada é quase sempre a mesma, ou seja, torna-se preciso "ajustar a relação" entre: o aluno e o professor; o professor e a classe; a classe e a escola; a escola e o aluno; enfim, estrutura-se uma ordenação de possíveis combinações em que se busca a "adequação" entre todos os elementos envolvidos no "processo educativo".7 Podemos identificar neste processo aquilo que pode ser circunscrito como o sintoma da "compulsão para educar" no sentido de se alcançar o "ajuste"; a "adequação"; a "imagem"; enfim, a "formação do sujeito" ou, preferencialmente, a "formatação do sujeito". Para tanto, não se medem esforços educativos para o alcance desse objetivo e no conjunto dessas táticas empregadas e que nos chamam a atenção são os "exercícios da crueldade" que são aplicados como a justificativa, para não dizer disfarçados, em "práticas educativas" com a finalidade de fazer memória, aprendizagem e educação. Entretanto, certo paradoxo apresenta-se nestes mirabolantes "exercícios pedagógicos", ou seja, os efeitos dessas "práticas" sobre o sujeito no âmbito da "cadeia educativa".

Falar nessas "práticas" é algo que ocorre numa relação de "poder"; "transferência"; "submissão" e, principalmente, "identificação". Assim sendo, para pensar a questão das "práticas educativas e castigos, o exercício da crueldade como o lugar da inscrição da memória", nós devemos analisar como algo que é memória é "marcado" no corpo e na alma dos sujeitos.

Podemos pensar essas "práticas" como atuações sintomáticas que ocorrem pautadas em "teorias explicativas" e, no entanto, seu mecanismo de funcionamento consciente não permite transparecer os mecanismos inconscientes. Portanto, em toda ação consciente temos algo da ordem do inconsciente que não permite ao sujeito compreender a totalidade da "intersubjetividade" presente na relação educativa.

Partimos do pressuposto de que os "fundamentos da educação" estabelecem como parâmetro que educar é algo para se "estabelecer": "o bem estar do aluno"; "a satisfação do professor"; "o reconhecimento da classe" e "o sucesso da escola" e, principalmente, a "memorização do ponto".8 São essas obsessões pela a construção desses resultados que estabelecem e, principalmente, justificam o surgimento dos diversos discursos e práticas pedagógicas, como também, as diversas composições de controles punitivos (exercício da crueldade) que se instalam no aparelho escolar. A pergunta que formulamos é: como uma prática educativa que promova a dor, a humilhação, a submissão, entre outros sofrimentos, consegue manter-se plenamente na relação educativa a sujeição do educando?9

Compreendemos que estes mecanismos de "práticas educativas e os castigos" possuem, paradoxalmente, a finalidade de eliminar por completo todos os conflitos das relações humanas eliminando o "sujeito da relação". Neste caso, a "ordem" e a "disciplina" no âmbito dessas práticas educativas cruéis são impostas ao sujeito pelo medo e terror, ou seja, para se eliminar o conflito na relação entre sujeitos elimina-se o próprio sujeito. Impõe-se, através de uma situação de subordinação, o apagamento do sujeito para que este se cale e aceite o pleno controle de si. Os elementos primordiais desse aprendizado intelectual e físico são o total congelamento do pensamento e a paralisação do corpo do sujeito. Este seria o primeiro estágio a alcançar. Numa segunda etapa, o pensamento e o corpo que podem circular são aqueles que não enfureçam o "educador" e, por último, espera-se que o sujeito/criatura produza por si só "pensamentos e uso do corpo" que alegre somente o próprio "educador".

Devemos analisar o conjunto dessas "práticas educativas e os castigos: o exercício da crueldade como o lugar da inscrição da memória" como algo que deve ter o seu foco descentrado, ou seja, é preciso captar o movimento na totalidade do funcionamento do aparelho escolar que se estabelece desde a própria estrutura arquitetônica da escola; da legislação educacional; das práticas educativas; dos discursos corretivos; enfim, no conjunto de atuações que se estabelecem na dinâmica da escola.

Os pontos que sinalizam um foco a ser estudado no âmbito desta dinâmica escolar são os mecanismos de subordinação do sujeito pelo exercício da crueldade na prática educativa em que há um processo de identificação entre aluno e professor. Paradoxalmente, estes mecanismos "bizarros" em vez de promoverem o afastamento devido ao "medo" e ao "terror", acabam por muitas vezes tendo um efeito contrário, ou seja, a aproximação e a dedicação da vítima ao seu carrasco. Portanto, o efeito contrário que essas "práticas" promovem são fatores subjetivos que precisam ser detalhadamente estudados para se poder compreender o "sucesso" de tais "práticas educativas".10

Partimos do princípio de que o exercício educativo na cadeia pedagógica deveria ser algo primordialmente regido pelo princípio de prazer e, portanto, estar diretamente relacionado com a "felicidade" de todos os elos envolvidos na relação educativa, pois como poderia se sustentar uma prática que não tenha como resultado a satisfação? A partir dessa lógica poderíamos afirmar que os "fundamentos da educação" ou "pressuposto pedagógico" deveriam ser regidos única e exclusivamente pelo princípio de prazer. Entretanto, como sustentar neste quadro educativo um conjunto de práticas de imposição da força, humilhação, crueldade, enfim, em ações não condizentes com a vida? Um outro ponto a analisar é como se torna possível que estas "práticas" muitas vezes acabem por gerar orgulho por ambas as partes envolvidas, ou seja, tantos nos educandos, como também, nos educadores?

As práticas educativas tendo como base o "exercício da crueldade" resistem e mantêm um forte elo entre o educador e o educando ao ponto de que estes somente reconhecem o processo educativo quando envoltos em suas práticas que se encontram rodeadas de requintes de crueldade, as quais promovem a dor como resultado final.

Seria possível pensar que neste processo de sofrimento e dor a relação entre o educador e o educando é algo que "coisifica" a ambos? Este mecanismo de "coisificação" tem como propósito permitir aos sujeitos, como "objetos" de um para outro, encontrar um modo mais facilitado em obter a via da satisfação educacional? Para alcançar esta via que seria o "sucesso educativo" acabam por atuar como sujeitos sem vida que devem somente ocupar a cada momento o lugar da cena com o propósito de apenas satisfazer um ao outro. A esta relação educativa denominamos histeria pedagógica. Um lugar onde todos sofrem, mas todos acabam por alcançar, sintomaticamente, algum satisfatório grau de satisfação, mesmo que para esse resultado tenha-se que pagar um alto preço como pano de fundo das "práticas de crueldades".

No âmbito do princípio de prazer, contrariando o seu "próprio princípio", inserir o aluno no mundo adulto exige uma tarefa árdua por parte do professor e que em muitos casos não é nada prazerosa. O professor e o aluno devem se inserir numa rotina que em muitos casos se distancia do "desejo" de ambos. Para impor essa tarefa contra a vontade de ambos, o professor e o aluno, estabelecem um conjunto de justificativas para formular a tese de que a educação é necessária para inserir o educando na vida e, principalmente, para que este não se perca na violência. Entretanto, neste tipo de argumento não há compreensão da dinâmica das relações sociais, ou seja, temos neste tipo de explicação o modo como o senso comum busca compreender a educação, basicamente, como uma barreira psíquica para o impedimento do exercício da violência. Neste caso, a premissa é de que quanto mais educado o sujeito este necessariamente deverá ser menos violento. Mas, como justificar uma educação que tem por base a crueldade, portanto, violenta em si, e que seja a premissa para impedir o uso da violência por parte do sujeito?

Podemos justificar dizendo que nem todas as práticas educativas são pautadas em práticas de crueldade, mas o que queremos apontar é o não reconhecimento por parte dos educadores que em grande parte as motivações educativas tem como pulsão o controle do objeto "para si" e manipulá-lo a ponto de acomodá-lo no estado de ser/sujeito que se considera educado. Isso por si só não seria algo para pensar sobre a quantidade de crueldade que inserimos em nossas "práticas educativas"?

Pensar esta "correlação" entre a "educação" e a "crueldade" a partir de uma análise crítica na educação deve-se pensar que em nossa prática educativa podemos estar atuando no âmbito da violência. Isso significa reconhecer que no interior da própria prática educativa pode prevalecer a atuação e a formação do "sujeito brutamonte". Neste sentido, partimos da hipótese de que a linha de separação entre a humanização e a barbárie é muito tênue. A diferenciação de práticas educativas humanas e perversas pode, portanto, se perder numa sociedade em que a paridade entre o sadismo e o masoquismo são elementos que fazem parte dos "fundamentos da educação".

Pode-se considerar a existência dessas práticas compartilhadas de crueldade entre o aluno e o professor como certo exagero, mas não faltam materiais que possam evidenciar tais práticas. Vamos aos fatos, não é pouco comum o terrorismo ser uma "metodologia de ensino", como por exemplo, no Curso das Ciências Exatas, mais propriamente, no ensino da engenharia, em que no interior das "práticas educativas" dos cursos, os alunos enfrentam situações como a seguinte: Um professor pergunta na sala de aula: "quem aqui está prestes a jubilamento?". Alguns alunos se manifestam e ele acaba por concluir: "se dependerem de mim, vão morrer na cova".

A partir do apontamento desse caso em que a prática educativa se aproxima do exercício da crueldade, faz-se o seguinte questionamento: como interpretar o conjunto dessas atuações educativas no conjunto da formação cultural do sujeito? O resultado esperado poderia indicar o sentido de formar o sujeito para a insensibilidade perante a vida e isso é preocupante em termos de prevalência da barbárie, pois o sujeito tratado como coisa revolta-se plenamente com tudo que não lhe permite um tratamento de coisa, ou seja, desenvolve uma intolerância para a vida. Entretanto, por quais motivos essa "metodologia do ensino" é empregada no campo educativo?

Um ponto a analisar neste uso é a possível identificação com o exercício da crueldade pedagógica como o lugar da inscrição da memória, pois o mesmo aluno que relata a ação de terrorismo do professor acabou por dizer: "esse professor é o melhor que temos".

Neste caso, referimo-nos diretamente a tais práticas educativas como condição para que pelos mecanismos da "dor" se faça memória a ponto do sujeito ter no "corpo" e na "alma" registros para  "rememorar" a sua própria vida. Contudo, devemos apontar que é possível estabelecer uma divisão básica nessas "marcas educativas". A primeira, já sinalizada anteriormente, constitui-se dos resultados de um processo de coisificação entre ambas as partes em que prevalece uma paridade sadomasoquista. Tais práticas são rememoradas com certo orgulho por aqueles que sofreram esses abusos e as guardam como relíquias para serem pronunciadas somente em ocasiões muito especiais. Para tanto, nas escolas somos educados a sentir a dor como um processo de alcance para poder resolver questões no sentido de estar corretos em nossas respostas. Em parte isso procede, pois os adultos e os educadores, embutidos da dor e da humilhação que sofreram, pensam que devem formar as crianças e os jovens a fim de suportarem "os fundamentos da cultura da dor" em que terão que ingressar a todo custo psíquico na vida adulta.

Entretanto, não seria apropriado construirmos uma educação que também permitisse poder falar sobre a "dor" e a "humilhação", ou seja, não deveríamos sofrer e ser tão determinados em nossas ações, pois a qualquer momento estaremos promovendo o "exercício da crueldade".

O que seria em detalhes aquilo que denominamos o "exercício da crueldade"? Isto levanta o questionamento sobre os momentos em que no interior das relações que estabelecemos com o outro estamos fazendo valer a "crueldade". Neste caso, abandonamos por completo a hipótese de que a "crueldade" por si só possua um estado ontológico, ou seja, que esta possa ser classificada a priori da ação do sujeito. Neste caso, podemos desde já nos identificar como cruéis e cínicos em nossas ações, pois não classificamos o "ser cruel" em coisas e sim em nossas ações no conjunto das relações que estabelecemos com o outro. Contudo, como ficar atentos com o modo com que lidamos com as nossas pulsões em relação ao outro? Como seria possível educar, ou seja, fazer com que o sujeito controle algo que é da ordem do incontrolável – as formações do inconsciente?

Não podemos deixar de apontar que junto ao trabalho de Eros está presente também a pulsão de morte.11 Portanto, de um lado, é preciso sinalizar o paradoxo que o trabalho de Eros pode estar em função da pulsão de morte, ou seja, o seu trabalho resulte em não-vinculação. Por outro lado, a pulsão de morte pode inovar em sua destruição, de modo que seu trabalho seja da pulsão de vida, de promover novos vínculos, mais propriamente, a vida. Neste caso, identificamos a educação nazista como o trabalho de Eros para a morte e a educação anarquista como o trabalho da pulsão de morte para a liberdade.

Na oposição e paradoxo entre a pulsão de vida e a pulsão de morte, deveríamos nos voltar para a análise do "exercício da crueldade no campo educativo" de cujo embate o resultado nem sempre é a vida ou a destruição.

Quando nos referimos ao campo educativo estamos pensando no aspecto mais amplo da formação do sujeito no que se refere a sua formação e inserção na cultura. Assim sendo, na questão da análise da crueldade e da educação, em trabalho anterior,12 tomamos como base um simples exemplo, vivenciado em nosso cotidiano, que serviu de ilustração desse fato, para que, a partir dele, fosse possível refletir acerca da educação. Trata-se de uma prática das crianças divertindo-se com suas brincadeiras de rua. Constatávamos que as crianças brincavam de procurar cigarras nos troncos de árvores, arbustos, paredes etc., com a finalidade de capturá-las. Ao fazerem isso, amarravam uma linha em sua cabeça e a soltavam. Assim, ficavam "empinando" a cigarra até que a força que esta fazia para se libertar da linha que a prendia acabava por decepar sua cabeça.13 Ainda hoje continuamos a refletir sobre o que levaria as crianças a terem essa atitude com um ser vivo. Qual seria o processo responsável por tornar as crianças insensíveis à dor do outro e – indo mais além – por sentirem prazer em brincar com o sofrimento,14 por meio de uma atitude cruel exercitada numa simples brincadeira infantil. No momento atual, levantamos a hipótese de que esses "jogos cruéis" fazem parte da própria a infância e que a passagem para o mundo adulto implica nas sublimações dessas pulsões. Neste caso, o abandono do exercício da crueldade é o preço que pagamos para o ingresso no "mundo adulto". O problema se mantém quando o "mundo adulto" é a instituição do próprio "exercício da crueldade". Neste caso, podemos viver em uma sociedade que estabeleça um "mundo de adultos infantilizados", pois estes não conseguem suportar as frustrações de suas pulsões. Podemos ainda retomar a questão do trabalho anterior. De que maneira o processo educativo estaria determinando nas crianças uma inclinação para a crueldade?15

* * *

Para compreendermos as relações entre a questão da educação e o "exercício da crueldade" partimos de alguns questionamentos: Como temos educado nossas crianças? Como temos contribuído para a formação de "crianças saudáveis"?

O grande esforço educativo é que fixemos o nosso estado de ser naquilo que se qualifica como o "sujeito normal".

Como essa "educação saudável" para a normalidade se materializa na prática educativa tanto no corpo e na alma? A educação saudável se apresenta em todas as instâncias de nossas vidas, mas para alguns ela se apresenta como uma profissão, como no caso dos "educadores diplomados". O que os "educadores diplomados" aprendem em seus ofícios? Eles aprendem "pedagogicamente" como se deve ensinar o aluno para que no final do ano letivo se alcance o objetivo, a normalidade. Portanto, os "educadores diplomados" sabem o que devemos ser. E os "educadores não diplomados", nossos pais, nos levam para os "educadores diplomados" na esperança de que eles façam algo com esse sujeito que precisa "ser" plenamente educado. Contudo, por quais motivos devemos "ser"?

Precisamos "ser", pois não é pouco comum nos defrontarmos na vida com situações em que temos que tomar uma determinada decisão. Nesses momentos buscamos recorrer às "certezas" que nos assegurem a direção do "acerto", pois fomos educados a não aceitar o "erro". Diante de uma decisão, o sujeito pode ficar rememorando sobre suas inscrições, às quais denominamos memória, para que se possa encontrar alguma indicação que o oriente no julgamento e, principalmente, na ação. Não podemos deixar de indicar que a nossa memória nos engana, pois é muito comum nos esquecermos de algo. Em poucas palavras, diríamos que o esquecimento é o que ocorre como parte do conteúdo manifesto que rompe com o nosso modo fixo "em ser".16 Portanto, há um "outro" que nos atravessa e destitui a nossa certeza em sermos o sujeito. Esquecemos "em ser"17 pelo fato de que ocorre um trabalho da ordem do recalcamento. Nesses momentos ficamos no pleno vazio que nos desconcerta, pois queremos lembrar e ficamos sem poder nomear com a "palavra" o pensamento. E o que fazer para não nos esquecermos "em ser"?18 Há um modo de nos iludirmos que pode evitar o esquecimento, qual seja, fazermos marcas em nossos corpos.

Compreendemos que o sujeito pode encontrar no "corpo" e na "alma" uma fonte permanente da memória e, por que não dizer, até mesmo do esquecimento, ou seja, um lugar que nos permite lembrar "em ser" e, paradoxalmente, nos esquecermos também "em ser".19 Para podermos "ser", temos que anular os nossos outros. Isso exige um trabalho educativo, pois o "outro", a todo o momento, busca apresentar-se para o sujeito "trincando" o seu modo "normal em ser". Ao fazermos memória ou esquecimento estamos constituindo os nossos paradigmas de verdade, pois estes servem de balizamento para o nosso rumo na vida.

Deixemos nesse momento a questão do esquecimento e partamos para a análise das nossas lembranças, mais propriamente, aquilo que denominamos como a nossa memória. Partirmos da hipótese de que esta é o resultado de uma educação exercida sobre o corpo e a alma no sentido de fazer marcas, o que se denomina como uma prática de "ascese". Este tipo de prática educativa é algo que "significa propriamente o exercício e originariamente indicou o treinamento dos atletas e as suas regras de vida".20 O sentido desse treinamento se aplica também à "vida moral, enquanto que a realização da virtude implica limitação dos desejos e renúncia".21 Temos assim com a prática da ascese um lugar de disputa entre tantos "outros" para "ser" o sujeito, o que acaba por instituir aquilo que denominamos "sociedade do controle".

A instauração dessa modalidade de organização social anuncia-se no momento em que o sujeito é ostensivamente submetido ao "panóptico".22 As nossas histórias de vida não mais nos pertencem, pois somos o resultado do "olhar do controle" que nos submete a "sermos" aquilo que é denominado como "sujeito normal". Neste caso, o nosso enfoque de análise volta-se para compreender o esforço educativo realizado pelos pais e educadores para manter o "balizamento" "em ser".23 Não se negam doses de "castigos" para que não nos esqueçamos do sujeito que somos, ou seja, fazemos memória no corpo e na alma – o lugar da inscrição da punição – para não nos desviarmos do "ser" e do "certo". Quanto mais se exige que o sujeito seja "em si", mais aguçamos as nossas formas de controle. Não podemos deixar de pensar o que fazemos com os nossos corpos e almas no sentido de "sermos saudáveis".

Neste aspecto, desdobramos a nossa hipótese de que as práticas de ascese educativa se instituem tendo como referência a memória como o trabalho da inscrição da punição, ou seja, utiliza-se da "educação física" e dos mecanismos da dor para que se faça memória a ponto do sujeito ter no "corpo" e na "alma" algo para buscar o sentido em "rememorar" a sua própria vida na certeza "em ser".24 Neste sentido, como lidaremos com o "desvio", mais propriamente, por quais motivos em nossos julgamentos não aceitamos o "erro"?

Para compreendermos como as "práticas educativas" e a "crueldade" tornaram-se um recurso moderno nos "fundamentos da educação" devemos de certo modo analisar como as "formas punitivas" tiveram o seu ingresso, também na nossa modernidade, como um mecanismo de eliminar a culpa do sujeito em relação ao crime.

Portanto, em relação ao "erro", inferimos que fomos educados para certa intolerância o que se consubstancia no sentimento de culpa. Para nos livrarmos do sentimento de culpa aprendemos desde criança que a forma mais apropriada de nos purificarmos é por meio do justo julgamento e da aplicação regrada do castigo que seria a determinação de uma "pena que se inflige a um culpado".25 Não é qualquer tipo de julgamento e nem a determinação de qualquer tipo de punição e, sim, a "certeza" da aplicação do "melhor castigo" que será realizada de modo estritamente regrado ao condenado. Com esse tipo de prática temos a "sociedade disciplinar"26 que aponta Foucault como já instituída na sociedade contemporânea. Entretanto, como estabelecem as condições subjetivas para que se possa instaurar a "sociedade disciplinar"? Diríamos que em última instância a "sociedade" busca evitar a presença do "tipo criminoso" ou aquilo que denominamos de "sujeito não saudável". Este tipo de sujeito seria

aquele que danifica, perturba a sociedade. O criminoso é o inimigo social. Encontramos isso muito claramente em todos esses teóricos como também em Rousseau, que afirma que o criminoso é aquele que rompeu o pacto social. Há identidade entre o crime e a ruptura do pacto social. O criminoso é um inimigo interno. Esta idéia do criminoso como inimigo interno, como indivíduo que no interior da sociedade rompeu o pacto que havia teoricamente estabelecido, é uma definição nova e capital na história da teoria do crime e da penalidade.27

Tendo como princípio que o "crime é um dano social"28 instaura-se a "lei penal" que "deve apenas permitir a reparação da perturbação causada à sociedade".29 Entretanto, qual tipo de lei que se deve prescrever com o objetivo de "permitir a reparação da perturbação causada à sociedade"?30 Sobre essa questão Foucault observa a presença de quatro tipos de projetos, quais sejam:

Primeiramente, a punição expressa na afirmação: ‘você rompeu o pacto social, você não pertence mais ao corpo social, (...) a punição ideal seria simplesmente expulsar as pessoas, exilá-las, bani-las, ou deportá-las. É a deportação.

A segunda possibilidade é uma espécie de exclusão no próprio local. Seu mecanismo não é mais a deportação material, a transferência para fora do espaço social, mas o isolamento no interior do espaço moral, psicológico, público, constituído pela opinião (...) mecanismos para provocar vergonha e humilhação.

A terceira pena é a reparação do dano social, o trabalho forçado. Ela consiste, em forçar as pessoas a uma atividade útil ao Estado ou à sociedade, de tal forma que o dano causado seja compensado. Tem-se assim uma teoria do trabalho forçado.

Enfim, em quarto lugar, a pena consiste em fazer com que o dano não possa ser novamente cometido; em fazer com que o indivíduo em questão ou os demais não possam mais ter vontade de causar à sociedade o dano anteriormente causado; em fazê-los repugnar para sempre o crime que cometeram. (...) é a pena de talião. Mata-se quem matou; tomam-se os bens de quem roubou.31

Com a execução "bem aplicada" da pena tem-se como esperança que o resultado da punição seja, basicamente, dois aspectos: primeiro, que quem cometeu o crime não o faça novamente e segundo, que quem planeja cometer não o faça. Contudo, surge um outro projeto de punição "quase sem justificação teórica"32 denominada prisão. Esta "não estava prevista no programa do século XVIII"33 e no entanto passa a constituir-se como projeto dominante e para o seu funcionamento requer

uma série de outros poderes laterais, à margem da justiça, como a polícia e toda uma rede de instituição de vigilância e de correção – a polícia para a vigilância, as instituições psicológicas, psiquiátricas, criminológicas, médicas, pedagógicas para a correção.34

Começa a tomar força a tese de que "é preciso que a justiça criminal puna em vez de se vingar".35 As formas punitivas deixam de ser o espetáculo do dilaceramento do corpo do condenado em praça pública para uma punição que se realiza em práticas mais humanizadas, que se constituam num meticuloso processo de controle sobre o corpo. O que se pode observar é que nas formas punitivas da modernidade, o condenado deixa de possuir uma vontade sobre o seu próprio corpo. "Modernamente", o controle corporal do condenado encontra-se sobre um princípio de que se deve somente aplicar "punições humanas".36 Portanto,

a lei agora deve tratar ‘humanamente’ aquele que está ‘fora da natureza’ (enquanto que a justiça de antigamente tratava de maneira desumana o ‘fora-da-lei’), a razão não se encontra numa humanidade profunda que o criminoso esconda-se em si, mas no controle necessário dos efeitos de poder. Essa racionalidade ‘econômica’ é que deve medir a pena e prescrever as técnicas ajustadas. ‘Humanidade’ é o nome respeitoso dado a essa economia e a seus cálculos minuciosos. ‘Em matéria de pena o mínimo é ordenado pela humanidade e aconselhado pela política’.37

O que Foucault observa é que esse projeto de formas punitivas da modernidade que trata humanamente os condenados realiza-se nas prisões. Nesses lugares, os corpos encontram-se sob uma série de normas e constante observação. Nas prisões, tudo passa a ser regrado, controlado e observado. O prisioneiro é controlado a todo instante sobre o que pode ou não fazer com o seu próprio corpo. É abandonada toda uma anatomia da punição realizada no cadafalso, onde o corpo do condenado era meticulosamente esquartejado. O que temos agora é uma outra forma de punição, na qual se preserva o corpo do condenado, mas em troca realiza-se um ostensivo controle sobre a sua vontade, sobre o uso do seu próprio corpo.38 Parece surgir uma nova era, em que agora os castigos parecem ser de caráter totalmente incorpóreo.39 Dadas essas duas situações punitivas a questão que se faz é: "como o modelo coercitivo, corporal, solitário, secreto, do poder de punir substitui o modelo representativo, cênico, significante, público, coletivo?"40 Para respondermos a essa pergunta nos interrogamos por quais motivos uma pessoa é presa. Para corrigi-la pelo crime que ela cometeu? Para pagar pelo que fez? Michel Foucault indica algumas hipóteses para explicar como esse projeto de punição que prende uma pessoa para corrigi-la tornou-se predominante. Para ele,

a prisão, que vai se tornar a grande punição do século XIX, tem sua origem precisamente nesta prática para-judiciária da lettre-de-cachet, utilização do poder real pelo controle espontâneo dos grupos. Quando uma lettre-de-cachet era enviada contra alguém, esse alguém não era enforcado, nem marcado, nem tinha de pagar uma multa. Era colocado na prisão e nela devia permanecer por um tempo não fixado previamente. Raramente a lettre-de-cachet dizia que alguém deveria ficar preso por seis meses ou um ano, por exemplo. Em geral ele [sic.] determinava que alguém deveria ficar retido até nova ordem, e a nova ordem só intervinha quando a pessoa que requisitara a lettre-de-cachet afirmasse que o indivíduo aprisionado tinha se corrigido. Esta idéia de aprisionar para corrigir, de conservar a pessoa presa até que se corrija, essa idéia paradoxal, bizarra, sem fundamento ou justificação alguma ao nível do comportamento humano tem origem precisamente nesta prática.41

Existe algo no interior das prisões que as fazem um lugar próprio para análise da punição. Pode-se dizer que o sujeito encontra-se privado da sua liberdade e isso constitui "em si" o projeto da punição. Mas, como vimos anteriormente, prender para punir é algo bizarro. A prisão nada possui que a justifique com projeto punitivo/corretivo que a sustente como uma "prática educativa". Para Foucault, a forma punitiva das prisões ocorre no ostensivo controle sobre o sujeito, que é realizada no "aparelho" prisão, escola, enfim, em territórios que prevalecem discursos que sustentam a verdade em "ser sujeito". A máquina paradigmática, identificada por Foucault, já citado anteriormente, que faz funcionar todo esse mecanismo educativo/corretivo é denominado panóptico, ou seja, a invenção de uma máquina de vigiar e punir.42 Portanto, foi nas prisões que Foucault pôde constatar o nosso projeto moderno de controle no seu pleno funcionamento e na sua forma pura. Nas prisões/escola, não há nada a esconder. Tudo é vigiado e controlado. Em outras palavras, vivemos na sociedade do controle, mais precisamente na sociedade do panóptico.

Podemos ampliar a vontade de controle exercida nas prisões/escola para a nossa sociedade que insiste em "ser saudável", mas com um agravante, o de que não sejam mais necessárias grades para nos manter presos, quer dizer, nós somos as nossas próprias grades. Portanto, a inscrição da memória, com o exercício do castigo, não é aleatória e sim, meticulosamente calculada, ou seja, numa educação pautada no paradigma da "correção calculada" forjamos as nossas grades no corpo e na alma.

O nosso esforço educativo fica traduzido no pedagógico que delimita para cada tipo de "erro" cometido pelo sujeito uma adequada "dose adequada" de punição.43 Diríamos que "somos" e "fomos" constituídos no "desejo" em querer "julgar" e "punir" o outro. Somos "obstinados" naquilo que denominamos "formação cultural" que direciona o sujeito para a vida em sociedade. Entretanto, não queremos revelar que, em nossa "educação", temos presente a "obsessão em ser", mais propriamente, a presença de que somos intolerantes para com o outroa diferença ou aquilo que denominamos anormal.

Para defendermos a nossa fixação em nossas verdades "em ser sujeito" acabamos por nos tornar intolerantes para com a diferença e isso resulta na construção da "medida exata do castigo" para ser aplicada como punição a todos aqueles que, por algum motivo, encontram-se em "desvio".

Os "métodos educativos" são aplicados tanto para constituir o sujeito "em ser" como também para punir o sujeito que "não é".44 Portanto, somos sempre julgados e punidos não importa o lado em que nos encontremos, ou seja, compreendemos os castigos como práticas que são produtoras e destruidoras de sujeitos. Entretanto, o que mais chama atenção na relação entre o "carrasco" e a "vitima" é que eles são inseparáveis e precisam um do outro para manter ativas as suas "práticas", mais propriamente, devemos ficar atentos sobre os aspectos produtivos dessas formas repressivas.

Sobre os "castigos" estabelecemos, basicamente, duas linhas de conduta, ou seja, aqueles que são aplicados diretamente no corpo e promovem a "dor física" e os outros que são direcionados para um ostensivo "controle das paixões"45 e promovem a "dor psíquica". Temos assim: os "castigos corporais" que são aplicados diretamente no corpo, aos quais denominamos "formas de suplícios"; e os "castigos da alma" que estabelecem o controle sobre o sujeito. São as "formas de controle".46 Entretanto, por quais motivos aceitamos a aplicação do castigo, ou seja por que não nos revoltamos contra aquilo que nos pune e, principalmente, com as grades que nos prendem?

Aceitamos os castigos pelo fato de que somos "animais" que precisam de memória para se constituir em sujeito "para si"47 e, principalmente, queremos nos distanciar do "animais que somos" e para tanto exigimos que sejamos "adestrados" naquilo que denominamos como "ser humano saudável".48 Portanto, em nosso "processo civilizatório" desenvolvemos apropriadas e amenizadas (humanizadas) técnicas de punições, pois fomos educados a aceitar o castigo como um modo de redimir os nossos "erros" e encontrar o "modo certo em ser". Isso significa estar "ajustado" e, principalmente "adaptado" com a sociedade em que se vive, mesmo que esta esteja enlouquecida pelo modo capitalista de produção.

Tendo como referência o "corpo" e a "alma" como lugar de inscrição da punição, estabelecemos como questão de estudo o fato de investigarmos o que seria "a boa educação" aplicada sobre o sujeito para o seu próprio "bem". Isso seria responder por quais motivos os pais e educadores são tão compulsivos em querer educar.

Para Foucault as formas de punições que se encontram no "corpo" ou na "alma" são expressas, respectivamente, nas formas de "suplício" e nas "prisões".49 São esses os modelos básicos de castigos que a modernidade instaurou como formas de controle para subordinar e adestrar as "paixões" e "apetites" dos sujeitos na constituição do "processo civilizatório dos costumes".50

Perante uma criança, os pais e educadores julgam a sua ação e aprovam ou reprovam sua conduta. Diante da aprovação recebemos a recompensa, como por exemplo, o amor, e pela reprovação somos castigados pelas mais diversas e calculadas formas de contenção do nosso "desvio". Aceitamos o castigo por nosso estado de demanda do "amor do adulto", pois buscamos incondicionalmente o seu reconhecimento e queremos "ser amados". A não aprovação pelo adulto significa a condenação da criança à "perda do amor". A única coisa que resta é "saber" qual é a punição que deve ser exercitada para que se possa restabelecer a conquista do "amor perdido". A criança, com o seu sentimento de culpa, deseja receber prontamente o castigo, ou seja, passa a organizar a sua vida em função das "práticas punitivas" no sentido de poder abandonar os seus "erros" e obter novamente a condição de "ser" um "sujeito pleno" e, principalmente, reconhecido e amado e, por que não dizer, reconhecido como alguém que ingressa no mundo adulto.

De modo geral cabe aos adultos a tarefa de "educar" as crianças e adolescentes, principalmente, quando estes não correspondem a situações de "controle". Vivemos numa sociedade que instituiu para as crianças e os adolescentes o "modo" que eles devem "ser". Entre tantas atividades educativas, citamos a educação do corpo, a qual se encontra centrada na aplicação de "métodos" e "artifícios" que buscam instaurar um modo de "ser sujeito" que tenha modos. Neste caso, reconhecemos que, na condição de educador, somos implicantes com aqueles que "não possuem modos em ser" e isso resulta numa prática educativa delirante no sentido de "recuperá-los" para a nossa fantasia de que seja possível uma "vida saudável".

Na relação educativa tanto da criança como do adolescente, temos como pressuposto que o adulto é que deve determinar a condição do castigo, pois somente para este se pressupõe o domínio de um "saber" sobre o modo "certo em ser". Portanto, na busca da "educação" os pais e educadores não medem esforços de aplicarem determinadas técnicas para se manter o sujeito num estado de permanente "controle de si". Entretanto, o "adulto" também "erra" e como este poderá manter o castigo ajustado ao julgamento, ou seja, quem garante a "educação" ou em última instância quem educa os pais e educadores?

Podemos analisar que na relação educativa, as crianças e os adolescentes buscam amenizar ao máximo a atuação da "prática educativa" dos "adultos" na instituição das formas de controle que imprimem em seus corpos e na alma a "vontade civilizatória". Neste aspecto, estamos num "campo de força" em que os castigos são a "aplicação tática" de uma força no sujeito no sentido de direcioná-lo ou redirecioná-lo para um determinado "estado de ser". Neste caso, a aplicação do "sentimento da dor" foi um recurso utilizado para essa finalidade, pois se parte da hipótese de que "imprime-se algo a fogo, para que permaneça na memória: somente o que não cessa de fazer mal permanece na memória".51 Assim, recebemos de nossos pais e educadores a terrível tarefa, para alguns prazerosa, de marcar em nossos "corpos" e "almas" a passagem de um "estado sem modo" para a constituição da "memória" de um sujeito "aceito socialmente" ou a "lembrança de que algum dia fomos felizes ‘em ser’ ".

Nesta lógica são os "castigos", mais propriamente, aqueles que se conhecem por "castigos exemplares", que permitem e proporcionam a realização da "tarefa educativa" e que nos concedem a condição de sermos transportados do "modo selvagem" para o "modo civilizatório". Para tanto, não se medem esforços na "aplicação da educação" e somos maleáveis como plásticos a ponto de sermos modelados conforme as exigências sociais.

Passamos nossas vidas recebendo e aplicando diversas "técnicas de adestramentos", pois não podemos nos esquecer que vivemos numa sociedade que tem como objetivo adestrar, silenciar e imobilizar os corpos, sob "olhares calculadores". Por mais difícil que seja essa tarefa, chegamos à conclusão de que nada mais fazemos do que tratar os homens como verdadeiros animais adestráveis. Marcel Mauss afirma que

os processos que aplicamos aos animais foram aplicados pelos homens voluntariamente a si mesmos e a seus filhos. Estes foram provavelmente os primeiros seres que foram assim treinados, que foi preciso primeiro domesticar, antes de todos os animais.52

Com o objetivo de alcançar essa prática ou "eficiente adestramento" desenvolvemos possíveis estágios a serem alcançados naquilo que denominamos como o "método educativo". Assim, a respeito das "técnicas educativas" aplicadas nos sujeitos, não podemos deixar de reconhecer que as "formas de castigos" e as recompensas são as "táticas do poder produtivas" as quais empregamos no sentido de, o mais rápido possível, se obter o necessário reconhecimento do "erro cometido". Entretanto, qual a "dose" necessária de castigo para ser aplicado para que o sujeito possa reconhecer "verdadeiramente" o "seu erro"? Portanto, na instituição do "modo civilizatório" o ponto crucial a ser respondido é quando e como devemos aplicar os "castigos" para constituir o "sujeito normal"? Para Freud,

a criança deve aprender a dominar seus instintos. (...) Assim, a educação tem forçosamente que inibir, proibir e subjugar e assim o tem feito amplamente em todos os tempos. Mas a análise nos tem demonstrado que precisamente este subjugamento dos instintos traz consigo o perigo da enfermidade neurótica. Recordareis quão detalhadamente temos investigado os caminhos pelos quais isso assim sucede. Em conseqüência, a educação tem que buscar seu caminho entre a escolha de deixar fazer ou a escolha da proibição. Este problema não é insolúvel, será possível achar para a educação um caminho ótimo, segundo o qual possa procurar a criança um máximo de benefício causando um mínimo de danos. Se tratará, pois de decidir quanto se pode proibir, em que épocas e com que meios.53

Uma possível saída do sujeito diante o "delírio" em "saber" como educar é o de simplesmente reconhecer que "não sabe". Para tanto, deve abandonar toda sua lógica argumentativa de como se deve proceder com o objetivo de garantir o êxito e evitar a "falha em educar". Tal procedimento teria como conseqüência o abandono por completo do seu desejo de controle "em ser"54 o "mestre explicador"55 e a destituição da materialização da construção do seu "modelo educativo corporal" que busca imprimir no corpo a educação em "ser saudável". Neste caso, lembremo-nos de que nas escolas, em muitas aulas, presenciamos as "manias" dos "educadores diplomados" ao afirmarem objetivamente: "quem não fizer o exercício corretamente vai ficar de castigo". Nesta situação o aluno sente na pele e na carne que a educação é o resultado da ameaça de um castigo que, muitas vezes, sem sentido algum, a qualquer momento, pode materializar-se em "práticas educativas".

Nas práticas educativas há a presença de um tipo de obsessão de uma sociedade enlouquecida, qual seja, o exercício tem que ser feito corretamente, portanto, uma necessidade de um constante "vigiar" e quem não faz "paga", ou seja, a quantificação exata do "punir". Quem aceita viver e reproduzir essas práticas tem a denominação de "sujeito normal". Neste caso, pensamos a educação como "máquina de máquina"56 que aplica nos corpos e na alma a pena que cada um de nós deve suportar para viver numa sociedade na qual devemos "ser".

Podemos encontrar esse modelo educativo de corpo e alma na invenção de Kafka da "máquina punitiva". Este projeto de "máquina punitiva" encontra-se exposto no texto intitulado "Na colônia penal",57 no qual encontramos a metáfora moderna de como o "castigo" deverá ser aplicado sobre o "corpo do condenado". Para que a "pena" possa ser executada tem-se um aparelho que se divide em três partes que

com o correr do tempo surgiram denominações populares para cada uma delas. A parte de baixo tem o nome de cama, a de cima de desenhador e a do meio, que oscila entre as duas, se chama rastelo.58

O funcionamento da máquina é simples, isto é, o "rastelo" é composto de um conjunto de agulhas que vai de encontro às costas do condenado que se encontra amarrado na "cama". O que será feito nas costas do condenado está definido por aquilo que se encontra no desenhador, portanto,

O condenado é posto de bruços sobre o algodão, naturalmente nu; aqui estão, para as mãos, aqui para os pés e aqui para o pescoço, as correias para segurá-lo firme. Aqui na cabeceira da cama, existe um pequeno tampão de feltro, que pode ser regulado com a maior facilidade, a ponto de entrar bem na boca da pessoa. Seu objetivo é impedir que ela grite ou morda a língua. Evidentemente o homem é obrigado a admitir o feltro na boca, pois caso contrário, as correias do pescoço quebram sua nuca. (...) O rastelo começa a escrever; quando o primeiro esboço de inscrição nas costas está pronto, a camada de algodão rola, fazendo o corpo virar de lado lentamente, a fim de dar mais espaço para o rastelo. Nesse ínterim as partes feridas pela escrita entram em contato com o algodão, o qual, por ser um produto de tipo especial, estanca instantaneamente o sangramento e prepara o corpo para o novo aprofundamento da escrita.59

Em nossa modernidade essa "máquina punitiva" aplicada diretamente na educação do sujeito materializa desde ações sutis, como por exemplo, na instituição rigorosa do "modo certo" de sentar até ações de castigos corporais, como naquelas de aula de educação física em que se tem que "pagar em exercício físico".

Sobre os castigos corporais educativos há a possibilidade de uma outra inspiração de modelo como aquele que é apresentado no filme intitulado "Laranja Mecânica".60 Neste filme, observamos o "sonho neurótico" de todo "educador" – uma máquina de educar. Esta máquina funciona tendo como princípio o "automatismo" de nossas ações, ou seja, todo sujeito tende a abandonar as situações que promovam um determinado desprazer. Portanto, diríamos que a "máquina de castigo" tem como pressuposto "educativo" o vetor negativo. Assim, a educação de um modo geral é positiva, pois reforça um traço premiando o sujeito, promovendo a satisfação. O castigo pune o traço com intuito de que o sujeito em virtude do sofrimento abandone esse "modo de ser". Isto é usado pedagogicamente com o objetivo de conter os seus desejos destrutivos. No filme, o delinqüente que deve ser reeducado é amarrado numa cadeira e com as pálpebras dos olhos impedidas de se fechar, é obrigado a assistir às cenas de violência projetadas numa tela à sua frente. Ele não pode desviar os olhos por um instante sequer, da projeção do filme e, simultaneamente, toca-se uma música clássica. Nesta situação, de cenas "bárbaras" e o som "erudito", ele é induzido a "passar mal". Com essa "reeducação" os "educadores" "acreditam" poder "sensibilizar" o educando e que isso seria uma garantia de que os "delitos" do rapaz não pudessem mais ocorrer. Toda vez que este tentar fazer algo que seja "violento", dado o automatismo incorporado ao assistir ao filme de violência, será induzido a passar "mal". Será o "freio" que, "pedagogicamente", o impossibilitará de atuar em conformidade com seus desejos destrutivos.

Podemos identificar um outro tipo de modelo educativo que não mais opera como uma "máquina punitiva corporal" e sim como uma atuação direta no controle das paixões do sujeito. Entretanto, essa passagem não pode ocorrer sem que tenha como base o "corpo do sujeito". Partimos da tese de que toda ação educativa tem como pressuposto o corpo, ou seja, na sociedade do controle tem-se que pensar diretamente em teorias educativas corporais.

Observa-se em nosso cotidiano a implantação desses projetos de castigo, tais como: a máquina de dor de Kafka; a máquina do desgosto da "laranja mecânica"; a máquina de vigiar e punir do panóptico ou a mistura de todos esses mecanismos. Constata-se então que o elemento central é a dor e o sofrimento que estabelecem as marcas que atingem tanto o "corpo" como a "alma". A pergunta a ser lançada é como procedemos em nossas práticas educativas, ou seja, como inventamos e reinventamos todas as nossas táticas de controle corporal, essas máquinas punitivas? Principalmente, o que falar dessas "formas de punição/controle" que buscam instituir o "sujeito dito normal"?

Depois de Auschwitz e, principalmente, depois de conhecermos o empenho do "bem educado" Eichmann, um cidadão alemão que trabalhou justamente no cumprimento do seu "dever",61 não seria mais sensato desacreditarmos na "educação" como uma crença para a pacificação do homem ou da constituição do "sujeito normal"?

Neste caso, em nossa modernidade, tendo como preocupação a relação entre a "memória/lembrança", mais propriamente, o "esquecimento" na formação do "sujeito normal", não seria nada fora de sentido, centrarmos as nossas preocupações em torno do corpo, ou seja, como através do corpo buscamos atingir diretamente a nossa alma.

Uma educação que expresse o desejo de pacificar o homem deveria ficar atenta a como se está procedendo com as "coisas do corpo". Para analisar a questão do castigo, para não dizer da crueldade é preciso que nos debrucemos criticamente sobre as nossas "práticas educativas" ou, melhor, as práticas educativas corporais normativas. Neste caso, "ser crítico" tem o sentido de se estar em permanente "crise" com o "suposto saber", ou seja, uma relação de "não certeza" sobre a "verdade", mais propriamente, aquilo que denominamos como o "saber científico". Assim sendo, não poderemos deixar de enfocar nas relações entre o corpo e a alma uma imprescindível análise das práticas numa perspectiva da história – uma história corporal do castigo. Devemos pensar o sujeito como uma resultante que se apresenta inscrita no interior das práticas punitivas educativas.

Como poder falar em saída para "educação" sem cair na armadilha de estabelecer um novo receituário que torne os sujeitos na relação em "coisas"? Não sabemos como educar. Entretanto, paradoxalmente, o exercício da "teoria crítica" no campo educativo seria o de estabelecer uma detalhada observação de como as marcas educativas encontram-se presentes nos "processos de aprendizagem". Partimos do pressuposto de que a constatação dessas "práticas" seria um primeiro passo para a indicação de uma educação que não coisifica a relação entre o professor e o aluno. Portanto, para suportar a condição educativa o professor apenas se posicionaria no lugar do "dever" e o aluno, na condição transferencial para estabelecer algum tipo de vínculo que o permita caminhar no "processo educativo".62 Isto "em si" já estabelece uma diferenciação fenomênica entre o processo educativo para a "repressão" e o que se estabelece no princípio da "emancipação".

Seria bom que todos nós pudéssemos assumir desde já que não sabemos ser. Esta condição responsável em admitir o "não saber" poderia amenizar as nossas "manias educativas" e, portanto, amenizar nossa compulsão para educar. Portanto, em vez de mandar as crianças e os adolescentes "pagarem" por aquilo que "fizeram" ou "não fizeram" poderíamos desviar a nossa atenção para outra coisa mais oportuna. Entretanto, aqueles "educadores diplomados" que, apesar de tudo, ainda insistem em castigar o outro, não é por acaso que se tornaram educadores, pois encontraram neste modo de trabalho uma maneira aceitável socialmente "em ser" e fazer sintoma, portanto, poder mandar seus alunos "pagarem", com os corpos e com a alma, o preço por "não serem"63 – saudáveis e normais. Isso já não seria importante para refletirmos sobre a relação entre as práticas educativas e os castigos, mais propriamente, o exercício da crueldade como lugar da inscrição da memória?

 

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* Esse trabalho é uma reelaboração do artigo intitulado "As práticas educativas e o exercício da crueldade" que foi apresentado no "5º Congresso Mundial do Lazer" (SESC) no período de 26 a 30 de outubro de 1998 em São Paulo.
1 Não podemos deixar de lembrar do filme O Resgate do Soldado Ryan que tem uma cena em que o ator principal do filme, qual seja, o soldado Ryan faz a pergunta a si mesmo "se valeu a pena". Isso se deve ao fato de que o seu resgate do campo de batalha custou a vida de todos do grupo que foi buscá-lo. Portanto, esse mesmo soldado, muitos anos depois, faz essa mesma pergunta no final do filme, com a mesma indagação, ou seja: "vale a pena mesmo viver?" Cf. SPIELBERG, Steven. O Resgate do Soldado Ryan (Saving Private Ryan). USA: Paramount, 1998. 169 minutos.
2 Podemos compreender a memória como "a possibilidade de dispor dos conhecimentos passados. Por conhecimentos passados é preciso entender aqueles que já foram, de um modo qualquer, disponíveis (...)". ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. Trad. Alfredo Bosi. São Paulo: Mestre Jou, 1982. p. 629.
3 Cf. LAJONQUIÈRE, Leandro de. Infância e Ilusão (Psico) Pedagógicas: escritos de psicanálise e educação. Petrópolis: Vozes, 1999.
4 GHIRALDELLI, Paulo. O que é pedagogia. 3. ed.rev. e atual. São Paulo: Ed. brasiliense, 1994. p. 60 (grifo do autor).
5 Na educação o "processo educativo" é compreendido como algo que ocorre em cadeia. Isso permite, em grande parte, compreender a "formação cultural" como algo associado diretamente com a composição curricular como a montagem de uma pirâmide. Neste paradigma que está presente em algumas Universidades, os alunos ingressos no primeiro ano do curso devem primeiramente cursar o "básico" ou aquilo que denominam com sendo as disciplinas que são "pré-requisitos" para depois cursarem outras específicas da formação profissional.
6 LAJONQUIÈRE, Leandro de. Infância e Ilusão (Psico) Pedagógicas: escritos de psicanálise e educação. Op. cit., p. 28.
7 Cf. LAJONQUIÈRE, Leandro de. Infância e Ilusão (Psico) Pedagógicas: escritos de psicanálise e educação. Op. cit.
8 Cf. idem.
9 O caso de requisição da dor como mecanismo para educar pode ser observado na China, em que, uma instituição particular: "criada para disciplinar meninos faz sucesso castigando mau comportamento". NI, Ching-Ching. ‘Revolução cultural’ chicotadas. O Estado de S. Paulo, 3 de setembro de 2006, p. A 22.
10 Estes processos identificatórios entre professor e aluno em práticas educativas que tenham como base o exercício da crueldade levam-nos a pensar nos processos de identificação entre o carrasco e a vítima em outras situações, como por exemplo, no campos de extermínios na ocupação da Alemanha nazista. Nestes lugares, podia-se observar uma obediência de prontidão por parte dos prisioneiros, ou seja, "os prisioneiros antigos sentiam grande satisfação se, durante a dupla contagem diária dos prisioneiros, eles se tivessem mantido em sentido corretamente ou se houvessem feito uma saudação enérgica. Orgulhavam-se de ser tão inflexíveis ou mais do que a SS. Em sua identificação chegavam ao ponto de imitar as atividades de lazer da SS. Um dos jogos a que os guardas se dedicavam era descobrir quem agüentava apanhar mais tempo sem gemer. Este jogo era imitado pelos presos antigos, como se eles já não apanhassem bastante sem repetir a experiência da brincadeira. Era comum que um homem da SS impusesse, durante algum tempo, uma regra absurda, fruto de um capricho momentâneo. Geralmente era logo esquecida, mas sempre havia alguns presos antigos que continuavam a observá-la e tentavam obrigar os outros a obedecê-la muito depois da SS ter se desinteressado dela". BETTELHEIM, Bruno. O coração informado: autonomia na era da massificação. Trad. Celina Cardim Cavalcanti. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985. p. 137-8.
11 Cf. FREUD, Sigmund. El malestar en la cultura. 1929 [1930]. In: ________. Obras Completas Sigmund Freud. v. III. Trad. Luis López-Ballesteros y de Torres. Madrid: Biblioteca Nueva, 1996.
12 Cf. RODRIGUES, Rogério & MATTHIESEN, Sara Quenzer. Estórias e Jogos Infantis na Educação Pré-Escolar: o exercício da crueldade. Anais do 5º Congresso Mundial do Lazer — lazer em uma sociedade globalizada: inclusão ou exclusão?, São Paulo. 1998. p. 142
13 Cf. idem.
14 O filme "Crash: estranhos prazeres" é um exemplo extremo de como é possível sentir prazer com a dor, com o sofrimento, provenientes de acidentes automobilísticos planejados para esse fim, numa espécie de jogo envolvendo adultos. Cf. CRONENBERG, David. Crash: estranhos prazeres. Columbia Pictures, 1996, 100 minutos.
15 A escola, como um dos aparelhos responsáveis pela transmissão do conhecimento e, como diria Adorno, determinante na formação de uma "auto-reflexão crítica", tem, na organização e transmissão dos conteúdos — entre os quais estão os jogos e as histórias infantis —, um papel fundamental na constituição da subjetividade da criança, valorizando ações e conceitos, reforçando e instigando determinados hábitos e sentimentos — tais como a crueldade —, moldando, se é que podemos dizer assim, o desenvolvimento da criança. Analisando o processo de formação de sujeitos insensíveis à dor alheia e cruéis para com a humanidade, Adorno afirma que para "atuar contrariamente à repetição de Auschwitz" é "fundamental produzir inicialmente uma certa clareza acerca do modo de constituição do caráter manipulador, para em seguida poder impedir da melhor maneira possível a sua formação". ADORNO, Theodor W. Educação e emancipação. Trad. Wolfgang Leo Maar. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995. p. 130-1.
16 Cf. SARTRE, Jean-Paul. O ser e o nada. Trad. Paulo Perdigão. Petrópolis: Editora Vozes, 1997.
17 Cf. idem.
18 Cf. idem.
19 Cf. idem.
20 ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. Op. cit., p. 78.
21 Idem.
22 Para Foucault, o "panóptico" é uma máquina de eficiente resultado no objetivo de querer vigiar e controlar o outro. Esse "aparelho" possui um funcionamento bem simples: "na periferia uma construção em anel; no centro, uma torre; esta é vazada de largas janelas que se abrem sobre a face interna do anel; a construção periférica é dividida em celas, cada uma atravessando toda a espessura da construção; elas têm duas janelas, uma para o interior, correspondendo às janelas da torre; outra, que dá para o exterior, permite que a luz atravesse a cela de lado a lado. Basta então colocar um vigia na torre central, e em cada cela trancar um louco, um doente, um condenado, um operário ou um escolar. Pelo efeito da contraluz, pode-se perceber da torre, recortando-se exatamente sobre a claridade, as pequenas silhuetas cativas nas celas da periferia. Tantas jaulas, tantos pequenos teatros, em que cada ator está sozinho, perfeitamente individualizado e constantemente visível. O dispositivo panópticoorganiza unidades espaciais que permitem ver sem parar e reconhecer imediatamente. Em suma, o princípio da masmorra é invertido; ou antes, de suas três funções — trancar, privar de luz e esconder — só se conserva a primeira e suprimem-se as outras duas. A plena luz e o olhar de um vigia captam melhor que a sombra, que finalmente protegia. A visibilidade é uma armadilha". Cf. FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: o nascimento da prisão. Trad. Ligia M. Ponde Vassallo. Petrópolis: Vozes, 1991. p. 177 (grifo nosso).
23 Cf. SARTRE, Jean-Paul. O ser e o nada. Op. cit.
24 Cf. idem.
25 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Aurélio Século XXI: o dicionário da Língua Portuguesa. 3ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. p. 425.
26 Cf. FOUCAULT, Michel. A Verdade e as Formas Jurídicas. Trad. Roberto Cabral de Melo Machado e Eduardo Jardim Morais. Rio de Janeiro: Nau, 1996. p. 79.
27 Idem, p. 81.
28 Idem.
29 Idem.
30 Idem.
31 Idem, p. 82-3 (grifo nosso).
32 Idem, p. 84 (grifo nosso).
33 Idem.
34 Idem, p. 86 (grifo nosso).
35 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: o nascimento da prisão. Op. cit., p. 69.
36 Cf. idem, p. 84.
37 Idem.
38 Podemos pensar que o controle sobre o uso do corpo é uma forma de submissão da vontade do condenado, pois o objetivo de tais práticas de punição é o de torná-los "ao mesmo tempo dóceis e capazes: controlam as nove ou dez horas de trabalho cotidiano (artesanal ou agrícola); dirigem as paradas, os exercícios físicos, a escola de pelotão, as alvoradas, o recolher, as marchas com corneta e apito; mandam fazer ginástica; verificam a limpeza, presidem aos banhos". Idem, p. 258.
39 Cf. idem. p. 92.
40 Idem, p. 116.
41 FOUCAULT, Michel. A Verdade e as Formas Jurídicas. Op. cit., p. 98.
42 Cf. FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: o nascimento da prisão. Op. cit. Não é por acaso que Vigiar e punir é o título que Foucault dá à sua análise sobre como a modernidade organiza sua forma de punição. Nós modernos, não sabemos fazer outra coisa a não ser realizar formas meticulosas de controle. As formas de suplício são mais verdadeiras, pois ao cortar o corpo do condenado em pedaços, realizam sem nenhuma "hipocrisia", seu objetivo punitivo. A modernidade mascara sua "ferocidade" em querer destruir o corpo do condenado com um discurso humanista. Coloca-se em operação uma estratégia de dilaceramento do corpo sem sangue e dor, mas muito mais penetrante e mortífera.
43 Sobre o calculo da punição a ser aplicada indicamos como leitura o texto de Kafka intitulado "na colônia penal". Cf. KAFKA, Franz. Na colônia penal. Trad. Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 27-70.
44 Cf. SARTRE, Jean-Paul. O ser e o nada. Op. cit.
45 Cf. DESCARTES, René. As paixões da alma. Trad. J. Guinsburg e Bento Prado Júnior. São Paulo: Abril Cultural, 1974. (Os Pensadores).
46 Cf. FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: o nascimento da prisão. Op. cit.
47 Cf. SARTRE, Jean-Paul. O ser e o nada. Op. cit.
48 Compreendemos que a relação entre a "educação" e o "adestramento" é ambígua, pois pode-se desta obter, basicamente, dois resultados: a "repetição compulsiva" — o "embrutecimento" — ou a "automatização" para o "estado do livre pensamento" — a "liberdade". Tudo indica que a nossa "sociedade do castigo" busca impedir qualquer "liberdade", e restringir o sujeito a determinadas "verdades". Vivemos numa "sociedade da norma" e do "controle".
49 Cf. FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: o nascimento da prisão. Op. cit.
50 Cf. ELIAS, Norbert. O processo civilizador: uma história dos costumes. Trad. Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Zahar, 1990. 1 v.
51 NIETZSCHE, Friedrich. Para a genealogia da moral. In: ________. Obras Incompletas. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Abril Cultural, 1974. p. 312 (grifo do autor) (Os Pensadores).
52 MAUSS, Marcel. As técnicas corporais. In: ________. Sociologia e antropologia. Trad. Mauro W. B. de Almeida. São Paulo: EPU/EDUSP, 1974. 2 v. p. 220.
53 FREUD, Sigmund. Lección XXXIV – Aclaraciones, Aplicaciones y Observaciones. Nuevas lecciones introductorias psicoanalisis. 1932 [1933]. In: ________. Obras Completas Sigmund Freud. v. III. Trad. Luis López-Ballesteros y de Torres. Madrid: Biblioteca Nueva, 1996. p. 3186 (tradução livre).
54 Cf. SARTRE, Jean-Paul. O ser e o nada. Op. cit.
55 O termo "mestre explicador" é da obra de Rancière intitulada "O mestre ignorante". Cf. RANCIÈRE, Jacques. O mestre ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. Trad. Lílian do Valle. Belo Horizonte: Autêntica, 2002.
56 Cf. DELEUZE, Gilles. & GUATTARI, Félix. O anti-édipo: capitalismo e esquizofrenia. Trad. Georges Lamazière Rio de Janeiro: Imago Editora, 1976.
57 Cf. KAFKA, Franz. Na colônia penal. Op. cit.
58 Idem, p. 32.
59 Idem, p. 33-44.
60 Cf. KUBRICK, Stanley. Laranja mecânica (A clockwork orange). Ing: Warner, 1971. 138 minutos.
61 Cf. ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. Trad. José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
62 Cf. idem.
63 Cf. SARTRE, Jean-Paul. O ser e o nada. Op. cit.