6Professores sob pressão: sofrimento e mal-estar na educaçãoEntre as frustrações (des)necessárias e o laissez-faire: contribuições reichianas para a educação física na escola author indexsubject indexsearch form
Home Pagealphabetic event listing  




On-line ISBN 978-85-60944-08-8

An 6 Col. LEPSI IP/FE-USP 2006

 

Psicomotricidade e aquisição de leitura e escrita

 

 

Letícia VasconcelosI; Sara FiguerêdoII

Ileticiavasconcelos@bemviverclin.com.br
IIsarajcf@yahoo.com.br

 

 


RESUMO

Este trabalho trata de uma articulação entre o saber da Clínica Psicomotora em Transferência, referenciado essencialmente nos trabalhos de Esteban Levin, e a aquisição da leitura e escrita. Toma-se como eixo a análise de algumas condições como o órgão mão, o eixo corporal, o ritmo, a lateralidade, a tonicidade muscular e o reconhecimento no ato da escrita. A partir de uma análise da construção da habilidade e destreza psicomotoras necessárias à escrita, depara-se com a constatação da absoluta necessidade de compreensão da construção do simbólico do corpo. Também desta análise apreende-se, entre outras coisas, a dependência radical do Outro e seu "trabalho" de estruturação subjetiva da criança, resultando na possibilidade de representação.

Palavras-chave: Psicomotricidade; Aquisição de leitura e escrita; Estruturação subjetiva.


 

 

O período de alfabetização de uma criança é sempre acompanhado de muita expectativa e também muita ansiedade. Afinal de contas, no mundo em que vivemos a escrita é um meio privilegiado de registro e acesso a informações e ao acervo cultural e histórico da humanidade. Dessa forma, a aquisição da leitura e escrita se coloca como marco na vida escolar, uma vez que traz consigo a possibilidade de acesso ao mundo dos adultos.

Não é de se estranhar que justamente nesse período dificuldades que vinham fragilmente equilibradas eclodam, culminando com um grande número de encaminhamentos para psicólogos e psicopedagogos. A questão tema deste trabalho surge da análise dos casos desses pacientes e segue no sentido de uma tentativa de responder a alguns interrogantes sobre a aquisição da leitura e escrita, desde o referencial da Clínica Psicomotora em Transferência. A denominação Clínica Psicomotora em Transferência vem demarcar um terceiro corte epistemológico no campo da psicomotricidade. Tendo sido sistematizado especialmente por Esteban Levin, se caracteriza, fundamentalmente por tomar a psicanálise como referencial de compreensão do sujeito.

Um ponto de partida possível para se pensar sobre a dificuldade é a partir do desenvolvimento normal. Buscando identificar as condições necessárias para que a leitura e a escrita possam se desenvolver, em Levin (2002: 161), encontra-se:

[...] o que escreve é um sujeito-criança, mas, para fazê-lo, necessita de sua mão, de sua orientação espacial (lateralidade), de um ritmo motor (relaxamento-contração), de sua postura (eixo postural), de sua tonicidade muscular (preensão fina e precisa) e de seu reconhecimento no referido ato (função imaginária).

Quando fala da mão como condição primeira para que o sujeito-criança escreva, Esteban Levin se remete, sem dúvida, ao aparelho biológico como condição mesma da existência humana do sujeito, uma vez que é onde tudo começa e se torna possível. No entanto, "a mão" não é vista apenas como órgão físico, mas como possibilidade de inscrição do simbólico; com o que parecem concordar Coriat e Jerusalinsky (2001: 7):

O aparelho biológico não só possibilita a existência, pois através do sistema nervoso central, condiciona, limita, mas ao mesmo tempo amplia, em seu funcionamento, o campo dos intercâmbios. Desde a restrição biológica limitada ao intercâmbio e às transformações materiais, o sistema nervoso central oferece sua abertura à inscrição dos processos simbólicos e virtuais.

Não é à toa que Esteban Levin fale da mão não como possibilidade de existência apenas, mas de ex-sistência, destacando sua condição não só de órgão, mas da mão tornada lugar/instrumento de inscrição simbólica. Ex, prefixo que significa movimento para fora, existir fora, existir no Outro. De fato, é só pelo Outro que essa passagem da mão órgão para a mão de um sujeito do desejo se faz possível.

Se o órgão fala da dimensão carne, o eixo corporal é o que situa o corpo para além da substância, sendo ponto de partida para o movimento. O papel do eixo corporal na orientação e no equilíbrio do corpo no espaço caracteriza o que Levin chama de "função do eixo". Função esta que opera desde o lugar de receptáculo – posto que se origina na imagem alienada ao Outro e no Seu toque.

Também pelas presenças e ausências do Outro primordial, o eixo vai ganhando ritmo, compassado pelo "está, não está" do toque do Outro. Daí que eixo e ritmo só existam em relação – eixo se fazendo lugar de existência do ritmo, ritmo dando existência ao eixo. O eixo como receptáculo e o ritmo como anima. É justamente essa relação entre o eixo postural e o ritmo motor que situa o corpo em uma relação espaço-tempo. Relação esta que se sustenta/entrelaça pela lateralidade.

A lateralidade é o que dá conta da orientação do corpo no espaço. Mais precisamente, trata da orientação entre corpo e espaço, já que também o espaço se orienta a partir do corpo. Nesta relação, centrada no eixo e viabilizada pelo ritmo, corpo e espaço ganham mais uma dimensão. Por conta disso, Levin relaciona a "passagem pela lateralidade" ao jogo do Fort-Da e ao estágio do espelho.

Juntamente com outros jogos de ausência e presença, o Fort-Da é a porta de entrada à dimensão do Simbólico, ao passo que a lateralidade permite a experiência de profundidade, ou seja, nos dois casos trata-se de apropriação da terceira dimensão, do espaço virtual. Dessa forma, um no nível simbólico, outra no nível corporal, inauguram a dimensão especular, dimensão do não visível, aí onde o sujeito pode existir.

Enquanto o Fort-Da permite o surgimento da palavra como significante do ausente, a apreensão da lateralidade representa essa vivência na própria carne, garantindo a existência do corpo, mesmo na ausência do olhar, lançando o corpo à dimensão do simbólico pelo seu encontro com a palavra.

Não é à toa que a lateralidade tenha papel fundamental na escrita. Por um lado, a escrita põe à prova a orientação espacial, na medida em que a lança para fora do sujeito, o papel demandando uma inversão dos conceitos de direita e esquerda. Tal inversão só é possível atendendo-se a duas condições: que esses conceitos já tenham sido apropriados pelo sujeito em seu corpo e que o sujeito já possa sustentar a ruptura entre sua imagem e a imagem do Outro. Daí a relação já citada entre a lateralidade e o estágio do espelho.

Por outro lado, a orientação espacial da escrita, que se impõe na qualidade de lei, vem fazer barra à reprodução ilimitada da imagem – a posição no espaço se colocando como condição de significância, reforçando a sujeição ao discurso.

O movimento tônico-muscular se estabelece como uma das primeiras formas de relação entre o bebê e o mundo. Do lado do bebê, a ação muscular permite que ele vá diferenciando entre o mundo externo e o interno. Como explica Levin (2002: 187), "A criança pequena registra estímulos que desaparecem com o movimento muscular e os atribui ao mundo exterior; e registra outros que, apesar da sua mobilidade muscular, se mantêm constante."

Do lado do adulto, as alterações tônicas são tomadas como produções e traduzidas como linguagem. Dessa forma, o movimento tônico-muscular, que começa como sensações experimentadas no próprio corpo, vai passando a incluir também o corpo do Outro e os objetos, ao mesmo tempo em que passa a ser dotado de intencionalidade.

Por fim, mesmo que todas as condições anteriores estejam em ordem, a leitura e escrita só poderão se desenvolver plenamente se foram tomadas pela criança como suas, ou seja, se ela puder se reconhecer ali como sujeito. Esta última condição fala justamente do encontro entre o psico e o motor, entre corpo e desejo. Paradoxalmente, antes de poder de fato ler e escrever, e mesmo para que isso seja possível, essas já devem ser atividades nas quais a criança se reconheça. Essa construção só é possível pelo Outro e fala da própria constituição do sujeito.

De fato, a escrita primordial é a escrita no próprio corpo da criança, escrita feita com as tintas do inconsciente materno. Só assim, o corpo pode ser sacado de um lugar (fictício) de puro real, e inscrito pelo Outro com suas marcas. Antes ainda, parece possível se pensar que a escrita surge primeiro como leitura, leitura que um Outro faz, traduzindo reflexos e alterações tônicas em apelos e desejos. Tomando o corpo do bebê como página.

Por isso, o corpo de que fala a Clínica Psicomotora é um corpo simbólico, um corpo receptáculo, como denomina Jean Bergès (1997a). A idéia de receptáculo remete a um objeto ou lugar no qual coisas podem ser depositadas. Quando se fala em corpo receptáculo isso significa dizer que o corpo não é maciço, senão que é preenchido pelo Outro. Preenchido de olhar, de palavras, de toques, de desejo – de significância. Sobre isso, Bergès afirma que "o corpo é antes de mais nada um receptáculo, um lugar de inscrição, uma trama implacavelmente destinada a imprimir-se com os cenários, as cores de outrem, a começar pela servil cópia do motivo." (1997: 51)

Curioso pensar que, sendo o corpo condição para a escrita, é preciso que ele desapareça para que o escrever seja possível. Só quando se perde o sobre-peso do corpo é que esta pode se tornar a mão de um escritor. Como afirma Levin (2002, p.165) "... quando o corpo, situado na qualidade de ausente (simbolicamente), der passagem ao fluir do movimento que, através de sua mão (praxias), delineia o traço das letras." Tal como a escrita implica a queda da letra, o escrever implica a queda do corpo puro orgânico, deixando espaço para o advento de um sujeito que se faz representar por suas marcas.

Assim, para que essa criança possa assumir para si a possibilidade e o desejo da leitura e escrita é preciso que ela construa a possibilidade de representação, de deslizamento de significância, instaurando o "saber como significação fálica possível" (Francesca, 1999). É importante se ater um pouco ao surgimento do desejo, que se confunde com o surgimento do próprio sujeito.

A relação entre o sujeito e seu desejo, ainda que o último venha antecedido de pronome possessivo, não é de posse, mas de punção. Em sua fórmula do fantasma Lacan expressa que, em relação ao objeto a, ou seja, ao objeto causa do desejo, o sujeito barrado, isto é, cindido pelo recalque, se encontra em uma posição concomitante de conter e estar contido. O que significa dizer que a existência do objeto a depende do sujeito, tanto quanto a existência do sujeito depende do objeto, logo o sujeito causa o objeto assim como é causado por ele.

Para ser mais preciso, não é o objeto, mas sim sua falta que possibilita o advento do desejo. O objeto a representa um objeto para sempre perdido, lançando o sujeito em sua busca contínua, salvo em casos patológicos. Nessa busca, o objeto vai sendo substituído por outros, seja o saber, a pessoa amada, um livro, um esporte... É esta cisão entre o sujeito e o objeto de satisfação plena de seu desejo que estabelece uma outra cisão, a saber, a separação do sujeito em inconsciente e consciente. Esta separação primordial vem na forma de uma interdição, a qual é operada pela linguagem e é graças a ela que o bebê começa sua ascensão ao lugar de sujeito, visto que aí está posto o início de sua capacidade de representação, de simbolização.

 

Considerações

Esse trabalho começou com a ilusão de que se poderiam encontrar respostas para os caminhos e descaminhos da aquisição da leitura e escrita na "simples" análise da construção da habilidade e destreza psicomotoras; mas, por todos os lados, esbarrava-se com a necessidade de compreensão da construção do simbólico do corpo. Percorrendo caminho semelhante ao da criança que aprende a escrever, foi preciso livrar-se do corpo e seu sobre-peso, para enfim reencontrá-lo enquanto lugar de existência simbólica do sujeito.

Fundamental reforçar a importância, ou antes, a absoluta dependência do Outro e seu "trabalho" de estruturação subjetiva da criança, preparando desde sempre a folha para a produção escrita; o desejo materno lhe ofertando consistência, a metáfora paterna lhe traçando as margens.

Também a "função estruturante do prazer" (Bergès, 1997b) que de fato opera justamente aí onde ele (o prazer) não está, deve ser reforçada como condição de construção da possibilidade de representação. É na alternância, entre está e não está, entre visível e invisível, entre prazer e desprazer, que o sujeito força passagem e vai abrindo caminhos para que uma outra coisa, aqui a escrita, venha aí se inscrever enquanto representante dessa falta, ou, antes, de si mesmo.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BERGÈS, J., O Corpo e o Olhar do Outro, in Escritos da Criança No. 2. Porto Alegre: Centro Lydia Coriat, 1997a, 2ª. Edição

BERGÈS, J., Função Estruturante do Prazer, in Escritos da Criança No. 2. Porto Alegre: Centro Lydia Coriat, 1997b, 2ª. Edição

BLEICHMAR, E. D. Fase Del Espejo. Universidad Pontificia de Comillas, Valência, España. Cátedra de Psicodiagnóstico y Psicoterapia Infantil (Polígrafo)

CORIAT, L. F., E JERUSALINSKY, A., Aspectos Estruturais e Instrumentais do Desenvolvimento, in Escritos da Criança No. 4. Porto Alegre: Centro Lydia Coriat, 2001, 2ª. Edição

FRANCESCA, S. C. de A., Desejo e Aprendizagem na Criança: O Conhecimento como uma Significação Fálica Possível, in: Estilos da Clínica,n.05 Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo – Vol. 4 n.07, São Paulo: Usp –IP, 1999.

JERUSALINSKY, A. e Col. Psicanálise e Desenvolvimento Infantil. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1999, 2ª. Edição.

LEVIN, E., A Infância em Cena. Petrópolis: Ed. Vozes, 2002