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On-line ISBN 978-85-60944-08-8

An 6 Col. LEPSI IP/FE-USP 2006

 

Entre as frustrações (des)necessárias e o laissez-faire: contribuições reichianas para a educação física na escola

 

 

Sara Quenzer Matthiesen

 

 


RESUMO

Embora ainda pouco difundidas, são muitas as contribuições de Wilhelm Reich para a Educação Física. Entre outras coisas, Reich nos brinda – e aqui nos referimos ao seu "período psicanalítico" –, com questões que merecem ser explicitadas neste artigo já que nos darão sustentação para uma reflexão que, em última análise, visa apreender formas, nem sempre benignas, de educação daquele que – supostamente – educamos como profissionais dessa área. "Como se deve educar as crianças?", perguntava-se Reich em 1926. Pensando em nossa realidade de trabalho profissional tantos anos depois, perguntaríamos: o que pretende o profissional de Educação Física diante 30 ou 40 crianças na quadra esportiva? Qual sua intervenção possível? Reprodução pura e simples de gestos esportivos repletos de técnicas e ângulos precisos? Controle da turma, das crianças, de seus corpos? Qual o olhar deste professor sobre o corpo de seus alunos? Ao mesmo tempo que tais dúvidas se colocam, é comum ouvirmos no universo das aulas de Educação Física frases pretensamente educativas cujos efeitos, sobre a criança não tardam a se manifestar: "pare quieta"; "comporte-se", "endireite as costas"; "peito para fora, barriga para dentro" entre outras. Sob a égide de "frustrações desnecessárias", próprias de um verdadeiro "bombardeio educativo", a criança atende ao aclamado pelo professor. Ela pára, não se move, na verdade, fica quase congelada, imobilizando-se para o não-movimento, cujas conseqüências foram tão bem apontadas por Reich neste e em períodos posteriores de sua obra. Por outro lado, no real sentido do "laissez-faire", não é difícil observarmos a bola rolando solta, na maioria das vezes, sem qualquer intervenção por parte do professor. Com base nestas considerações, procuraremos refletir sobre a atualidade e as possibilidades do ensino da Educação Física no âmbito escolar, pautando-nos, para tanto, em contribuições reichianas do "período psicanalítico", as quais merecem ser conhecidas.

Palavras chaves: Wilhelm Reich; Psicanálise; Educação Física.


 

 

Ainda pouco conhecido pelos educadores de maneira geral, Wilhelm Reich tem muito a dizer aos professores das escolas brasileiras, talvez, em especial, aos de Educação Física.

Entre inúmeras outras coisas, ele nos brinda – e aqui nos referiremos ao seu "período psicanalítico" –, com questões que merecem ser explicitadas neste artigo já que nos darão sustentação para uma reflexão que, em última análise, visa apreender formas, nem sempre benignas, de educação daquele que educamos como profissionais dessa área.

Certamente, pela incursão na Educação Física, nos ocuparemos daquilo que em Reich se configura como um apelo sensível aos professores que lidam com o corpo e com o movimento em seu dia a dia, ou que, ao menos, assim deveriam fazê-lo.

Sem dúvida alguma, um dos primeiros alertas que deveria ser feito aos professores de Educação Física, com base nos ensinamentos reichianos, seria: é preciso olhar para o corpo que se educa e que pretende ser educado. É preciso saber ler esse corpo e as revelações que há nele acerca daquilo que o sujeito é. Afinal, foi ele, Reich (1995), quem inaugurou, no campo clínico, a importância do olhar para o corpo, revelando os benefícios terapêuticos provenientes da linguagem expressiva e da possibilidade de expressar-se emocionalmente.

Foi ele quem observou que a linguagem verbal parecia insuficiente como expressão do inconsciente humano. Era preciso tomar o corpo como expressão da revelação inconsciente; era preciso operacionalizar uma eficiente leitura corporal. Para além do que se expressa pela linguagem corporal, diz Reich, é preciso direcionar o olhar e a forma como isso ocorre, revelando à expressão do indivíduo em meio a censuras, distorções e possibilidades manifestadas no corpo e pelo corpo.

E o que têm feito o professor de Educação Física em relação a esse particular? Qual é a sua intervenção possível? Reprodução do conhecimento? Não mais. Facilitar a aprendizagem? Não apenas. Controlar... disciplinar a turma, as crianças, seus corpos? Quantos não são os educadores que ainda querem isso! Enfim, "como se deve educar as crianças?"

Por mais incrível que pareça, essa questão é tão perturbadora quanto fora quando colocada por Reich nos anos 1920. E é ele, Reich, quem nos ajuda a identificar, ao menos, aquilo que não devemos fazer, ainda que não dite passo a passo como devemos proceder ou agir diante de crianças as quais pretendemos educar.

É preciso que o professor esteja atento para os seus atos, já que enquanto um frustrador em potencial, gera, sem perceber, encouraçamentos capazes de enrijecer mais e mais seus pobres e queridos alunos.

E atenção: se a disciplina se faz necessária, a forma para obtê-la é colocada em cheque por Reich. Não obstante, o professor grita, atira o apagador, esmurra a mesa chamando a atenção de todos. Se os castigos físicos já não são empregados na mesma intensidade que o foram outrora quando era comum ajoelhar-se no milho ou ser punido com uma vara de marmelo ou pela palmatória que castigava as mãos das crianças, ainda hoje o castigo físico e/ou mental circula no âmbito escolar como uma ferramenta prestes a ser utilizada pelos educadores, muitas vezes, desnecessariamente (MATTHIESEN, 2005).

A forma... é ela, novamente que fará toda a diferença. Entre um "fique quieto" e um "vamos parar um pouquinho para prestarmos atenção" há nuances que poderiam incorporar o vocabulário educacional do professor para além da imponência e arbitrariedade existente nas quase instituídas frases de efeito utilizadas pelo educador.

É por meio dessas frases, e pela expressão que as acompanha que o educador intenciona educar as crianças (MATTHIESEN, 2001). Para Reich, muitas delas não passam de "frustrações desnecessárias" que de nada adiantam. Pelo contrário, apenas comprometem o desenvolvimento infantil, congelando aquele que é – ou ao menos deveria ser – o alvo da educação.

Ao agirem assim, o que fazem os educadores? Contribuem, sobremaneira, para a formação de diferentes tipos de caráter comprometidos em sua estrutura, quer pela timidez exagerada, pela temeridade à autoridade, tornando-se neuróticos ainda em tenra idade. Afinal, como vimos, é nele, corpo, que fica registrada essa impossibilidade de expressão, essa falta de dinamicidade e pouca ação.

Esta, certamente, é uma das grandes contribuições de Reich para a Educação, mesmo que evidencie a necessidade das frustrações e, portanto, de limites. O habitual é observarmos que a grande maioria das intervenções educativas figura-se dentro daquilo que Reich (1975) classifica como frustrações "desnecessárias", gerando nada mais do que conseqüências plenamente dispensáveis. Estão vinculadas, quase sempre, àquilo que Reich denomina como uma "compulsão a educar" sustentada pelos mais diferentes motivos.

Mas, notem bem: ainda que necessárias, as frustrações devem, segundo as idéias de Reich de 1926, colocar um limite, um basta, ao "desejo primitivo" da criança, notavelmente orientado para a obtenção do prazer, lembrando que, ainda que parcialmente, a satisfação pulsional deva ocorrer.

Pelo contrário, nota-se, ainda que não seja a regra, que as frustrações próprias do ambiente educacional de maneira geral sufocam severamente, e desde o início, qualquer possibilidade de manifestação da criança ou propiciam o alcance de seu pleno e irrestrito desenvolvimento. Assim, as medidas disciplinares de que lançam mão os educadores para atingir seus objetivos provocam, tanto em um como em outro caso, conseqüências, muitas vezes irreparáveis à formação do caráter infantil. Ou seja, em função da primeira ação – ou melhor, intenção – educativa, rígida e autoritária, é nítido o aparecimento de comportamentos que expressam a paralisação, a contenção e a inibição, próprios da impossibilidade das crianças serem elas mesmas.

Ao contrário do que deveria ocorrer, diz ele, a frustração não se efetua gradualmente, progressivamente, mas é abrupta, excessiva e a criança nem ao menos entende o porquê. Essas são condições, certamente, propícias para a formação de um caráter inibido. É por isso que é tão comum recordar-se da infância como um período em que as pessoas sentiam-se vivas; movimentavam-se; e eram menos restritas ou encouraçadas. Contudo, hoje a disciplina, sobretudo corporal, que se exige da criança, ainda é um dos pilares fundantes da prática educativa, promovendo, muitas vezes, uma verdadeira técnica de encouraçamento que torna as crianças "bonecos bem educados".

É assim que a escola, os professores e, portanto, os de Educação Física, limitam a motilidade vegetativa das crianças, condicionando-as a um comportamento menos ativo, impostos por horários rígidos, inúmeras atividades divididas em aulas disso e daquilo, com a obrigação de permanecerem horas e horas sentadas, em salas, em filas com uniformes que aparentemente as tornam aparentemente iguais.

Se fosse apenas isso: crianças tornando-se adultas antes do tempo, mas não. Paralisam-se quase que integralmente, tornando-se acanhadas e paradas, já que começam a se encouraçar contra o mundo exterior. No caso dos professores de Educação Física, isso mais parece um contra-senso, já que ao mesmo tempo em que trabalham com a educação do corpo, do movimento, orientam-se por princípios ditos educacionais que cerceiam esse movimento, em prol da formação de alunos bem educados (MATTHIESEN, 2005).

Enfim, o corpo está aí para ser visto; o corpo está ali para ser movimentado. Cabe ao professor de Educação Física conhecer e reconhecer a necessidade de expressão por parte da criança, sem, contudo, restringir-lhe os movimentos impondo-lhes normas e situações que apenas apontam para insucessos educacionais.

Do outro lado, o extremo oposto. Educadores que sob a égide do laissez-faire, deixam as crianças ao léu, negligenciando seu papel de educador – leia-se, frustrador – em prol de um mimo excessivo que abomina toda e qualquer possibilidade de frustração. O resultado não poderia ser outro: a bola rolando solta durante aulas de Educação Física; crianças ao léu e, no limite, sem limites! A permissividade, necessária até certo ponto, torna-se, neste caso nociva, com resultados incontroláveis levando, fatalmente, a uma intervenção desesperada por parte dos educadores. Talvez ainda mais drástico do que no primeiro caso, os educadores mudam da "água para o vinho" e sem mais, nem menos, agem brutalmente com base em "processos corretivos" e manuais de auto-ajuda de como lidar com crianças mal-educadas (MATTHIESEN, 2005). Tarde demais, mas não para a formação de crianças com dificuldades de autocontenção, próprias da formação de um caráter impulsivo.

Com base nas contribuições reichianas diríamos: nem tanto uma, nem tanto outra! Isto é, nem a total inibição pulsional, nem uma brutal frustração tardia, já que nem uma, nem outra demonstram, por parte dos educadores, a menor compreensão do significado de educar (MATTHIESEN, 2004).

Pois bem, mas que limiar é esse? Como dosar o que é ou não necessário quando o assunto é a frustração?

Assentado em princípios da Psicanálise, Reich (1975) é claro ao dizer que as frustrações necessárias são aquelas cujos objetivos não são outros que não controlar e canalizar os instintos da criança capazes de comprometer sua adaptação na sociedade. Servem, portanto, não apenas aos interesses da sociedade como também aos da própria criança, já que se permanecesse tal como quando nasceu, "primitiva", "egoísta", "preocupada apenas com a obtenção do prazer", certamente, mais tarde, sucumbiria "na luta pela vida". Saber que os limites existem, que as dificuldades fazem parte da vida, que a relação entre os pares é condição para a vida, apenas contribuiria para o seu "autodomínio" rapidamente revertido em seu próprio bem, diz ele (REICH, 1975, p. 60).

Com base nesse registro Albertini (1994) ressalta que uma "boa" ou "má" educação na visão reichiana está diretamente vinculada ao grau de frustração e satisfação pulsionais existentes. Ou seja, é como se houvesse uma "medida certa", uma "dosagem ótima", por mais que pareça estranha – ou impossível? – tal quantificação. Assim, tanto o excesso quanto a falta de frustração trariam conseqüências desastrosas à formação do caráter infantil.

Apesar das dificuldades existentes nessa relação, só nos resta, enquanto educadores, prosseguirmos educando, talvez, minimizando, a cada nova experiência, as probabilidades de incorrer em erros educativos os quais, muitas vezes, parecem ser inevitáveis.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

ALBERTINI, P. (1992) Reich: história das idéias e formulações para a educação. São Paulo, SP: Agora.

MATTHIESEN, S. Q. (2001). Criança, corpo e educação: fragmentos da obra de Wilhelm Reich. Revista Brasileira de Ciências do Esporte, 22 (2), 133-41.

______.(2004). Educação de educadores: pressuposto freudiano ou utopia reichiana? In: P. Albertini (org.). Reich em diálogo com Freud: estudos sobre Psicoterapia, Educação e Cultura (pp. 89-106). São Paulo, SP: Casa do Psicólogo.

______. (2005). A educação em Wilhelm Reich: da psicanálise à pedagogia econômico-sexual. São Paulo: UNESP, 2005.

REICH, W. (1975). Os pais como educadores: a compulsão a educar e suas causas. In: Conselho Central dos Jardins de Infância Socialistas de Berlim; SCHMIDT, V. & REICH, W. Elementos para uma pedagogia anti-autoritária . (J. C. Dias, Antônio Sousa, Antônio Ribeiro e Maria C. Torres, trad.). Porto, Portugal: Escorpião.

______. (1995) Análise do caráter. Tradução de Maria Lizette Branco e Maria Manuela Pecegueiro. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes.