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On-line ISBN 978-85-60944-08-8

An 6 Col. LEPSI IP/FE-USP 2006

 

Escrita do inconsciente: do oral às possibilidades de alfabetização

 

 

Sheila Oliveira Lima

sheilaol@uol.com.br

 

 


RESUMO

Apresenta-se um relato de caso acompanhado ao longo das pesquisas de doutorado da autora. Trata-se de uma situação de resistência à cultura escrita que parece ter fundamentos numa oralidade mal estabelecida. Assim, compreende-se que a aprendizagem da escrita está fortemente ancorada no matriciamento estabelecido pela oralidade, na sua diversidade textual. Também se deve ressaltar a relevância das relações entre inconsciente e linguagem para a compreensão dos momentos de aquisição da fala e da escrita, o que implica também as relações desses fatos com o desejo.

Palavras-chaves: Oralidade; Alfabetização; Desejo.


 

 

Ao longo das últimas décadas, a pesquisa relativa às metodologias de ensino de leitura bem como as investigações referentes aos processos de aprendizagem dentro do campo da linguagem estiveram muito marcadas por uma compreensão apoiada sobretudo na psicologia cognitivista e desenvolvimentista, o que trouxe grandes contribuições para a criação de metodologias, novos materiais e formas de se avaliar o processo de aquisição da linguagem escrita. Já na assimilação de conceitos mais amplos de leitura, que consideram registros pictográficos ou sonoros como escrita, cria-se, seguramente, uma outra noção do que deva ser a alfabetização nas escolas. Ocorre, entretanto, que, ao que parece, ainda há muito que refletir no campo da linguagem para que se esboce minimamente um discurso que possa fazer parte do cotidiano das escolas e, conseqüentemente, que possa atingir de modo mais eficaz a formação do leitor.

Nesse sentido que a pesquisa que desenvolvi ao longo do doutoramento busca encontrar, no diálogo entre a Lingüística e a Psicanálise, um novo modelo teórico que venha no contra-discurso do uso meramente classificatório que se tem feito atualmente de conceitos formulados com outras finalidades pelos cognitivista e desenvolvimentistas. O que se procura estabelecer aqui como princípio de abordagem, portanto, é a noção de que a aquisição da língua, tanto em sua expressão oral quanto na escrita, resulta de processos, de acontecimentos, absolutamente singulares, o que não permite, portanto, uma generalização absoluta, um encaixe de indivíduos em fôrmas pré-estabelecidas, conforme o que se observou ocorrer no caso relatado a seguir.

Deve-se ressaltar, entretanto, que, conforme se observou antes, os conceitos desenvolvidos por Smith, Foucambert, Ferreiro, Teberosky, entre outros que se aprofundaram no campo da aprendizagem e desenvolvimento das capacidades leitoras, não são de modo algum dispensáveis quando se procura compreender melhor fatos relativos ao uso e aquisição da língua. No entanto, deve-se colocar aqui como ponto de partida duas situações distintas envolvendo tais teorias: a primeira refere-se ao fato de que não são totalizadoras, ou seja, apesar de explicarem muitos fatos relativos à leitura, não esgotam as possibilidades de compreensão. Por outro lado, é preciso ressaltar (e talvez seja essa a questão mais relevante) a apropriação que se tem notado de tais conceitos, ou seja, parece que a escola tem se ocupado apenas de referendar os níveis de leitura estabelecidos pela pesquisa, mas ainda falta aprofundamento para ir além das classificações. Conclui-se, por exemplo, que o aluno é pré-silábico, silábico, silábico-alfabético ou alfabético, no entanto, diante de tal informação, a ação parece se esgotar e o discurso se enreda em reiterar tal fato e imobilizar a criança em uma imaginarização. Não se trata do caso aqui relatado, mas vale aqui exemplificar tal situação a partir de um breve relato de uma professora que se viu constrangida diante da fala de uma criança de primeira série que parecia resistir às estratégias motivacionais empreendidas: "Ah! Professora, não adianta, porque eu sou pré-silábico."

Assim, a aproximação entre conceitos da Psicanálise e da Lingüística tem por objetivo desconstruir tal imaginário, na medida em que procura explorar os processos de formação do leitor a partir de uma conceituação de língua e de linguagem que implica o sujeito e, por conseguinte, a formação do inconsciente. Assumindo-se tal viés, tem-se como princípio o fato de que a linguagem e o pensamento se estabelecem num só momento, a partir das relações da criança com o mundo, com o seu outro, que se expressa, a partir do seu nascimento, quando da perda de uma plenitude mítica, no momento em que mãe e filho formavam um único corpo. Quando da cisão desse corpo, no momento em que já se faz sentir a necessidade – expressa pela fome, frio, dor etc. – pode-se considerar que a criança tem seus primeiros contatos com o mundo, sempre por meio da linguagem, ainda que não se trate propriamente de uma língua.

As implicações entre psiquismo e linguagem são uma preocupação constante na psicanálise. Desde Freud, em textos como O chiste e sua relação com o inconsciente, A interpretação dos sonhos, "Esquecimento dos nomes próprios", "A ocorrência em sonhos de material oriundo de contos de fadas", entre outros, que se observam relações bastante coincidentes entre procedimentos estéticos presentes na literatura ou na tradição oral e as tramas do inconsciente na criação de imagens sonoras ou visuais como forma de expressão dos desejos recalcados.

No Apêndice C – "Palavras e coisas" – de O inconsciente, apesar de se tratar de uma obra que ainda se referencia numa epistemologia mais fixada na ciência médica, Freud já observa a aproximação entre linguagem e inconsciente e sistematiza no esquema abaixo reproduzido o que estabelece como "aparelho da fala".

 

 

Numa breve interpretação do esquema, vemos que as "Associações de objeto" (a parte superior do esquema), isto é, as primeiras impressões de mundo apreendidas pela criança, não mostram um fechamento, propagando-se de forma descontrolada, como se os sentidos, ainda não recalcados por um outro que referencie seu olhar, suas sensações, se deslocassem livremente pelo mundo. Já no campo das representações (no esquema, "apresentações", na parte inferior do esquema), vê-se que os canais estão fechados, havendo um termo para cada imagem, como se a palavra cumprisse uma função castradora das sensações que passeiam livres pela instância das Associações de objeto.

A formulação realizada por Freud no esquema evidencia a palavra enquanto instauradora de sentido. Isto é, ao contrário do que algumas teorias de linguagem propõem (sobretudo aquelas apoiadas em bases desenvolvimentistas), Freud estabelece um modelo em que linguagem e pensamento são um continuum de impressões e representações que se retroalimentam constantemente. O mundo é apreendido por meio de uma linguagem que o organiza e que ao mesmo tempo propõe novos sentidos a ele. A palavra enquanto elemento simbólico contém os sentidos dispersos ao mesmo tempo em que conduz a novas impressões. Segundo tal formulação, não há uma referência temporal, não havendo condições de se considerar um antes e um depois, primeiro as sensações e depois a palavra. O que Freud propõe aproxima-se muito mais de uma idéia de concomitância e intermitência, de algo que ocorre ao longo de toda a relação do sujeito com a linguagem.

Diante de tal concepção das relações entre psiquismo e linguagem, entre as formas de expressão da língua e os efeitos do inconsciente na fala, é possível propor novas abordagens para o ensino de leitura no momento de aquisição da língua escrita, quando se intensificam as representações de objeto, na medida em que se interpõe entre o sujeito e as sensações um novo elemento: o código da escrita.

Submetido a essa nova cisão (lembrando que já passou por um distanciamento da mãe e do objeto pela palavra oral), a esse novo outro que se interpõe ao gozo do sujeito, não parece estranho que haja muitas situações de recusa, de resistência à entrada da escrita, que, por assim dizer, se estabelece como autoridade maior diante da produção oral. O fechamento para a entrada de uma cultura letrada pode ser interpretado, no caso das crianças em processo de alfabetização, como uma forma de impedir o rompimento de um último fio de vinculação com o desejo da mãe, já que as primeiras experiências estéticas da língua, em geral, se deram por meio da voz materna, nas canções de berço, nos brincos que implicam o corpo, nas parlendas etc. A língua escrita, silenciosa por excelência, estabelece então uma nova instância de representação e, por conseqüência, impõe um novo impedimento do gozo.

A partir de tal reflexão sobre as relações entre sujeito e linguagem, propõe-se aqui uma nova maneira de se encaminhar a inserção do sujeito na língua escrita, tomando-se como matriz seus saberes e sabores da oralidade, deixando-se claro, entretanto, que se trata de expressões lingüísticas distintas, porém complementares, nunca excludentes. Assim, tem-se como pressuposto também que, da mesma maneira que há na formação do sujeito um percurso marcado pela singularidade, é fundamental que tal perspectiva esteja presente durante todo o processo de ensino/aprendizagem da língua escrita. Isto é, se se considera que não há "o aluno", mas "alunos", se se compreende que cada um terá um processo muito peculiar na sua aprendizagem da escrita, cada qual marcado por experiências muito próprias com a língua, então se torna fundamental partir do conhecimento de língua da criança, sabendo-se que se trata, nesse momento, de suas matrizes orais.

O relato a seguir, portanto, tem como objetivo compartilhar um pouco da experiência de aplicação dos conceitos acima relacionados, tendo-se como pressuposto o questionamento sobre as dificuldades de aprendizagem da língua materna em sua expressão escrita que ainda persistem apesar de toda difusão das pesquisas sobre letramento, estratégias de leitura, conceitos de texto etc. Desde já também adianto que os nomes utilizados para fazer referência às crianças com as quais foram aplicadas as estratégias descritas são todos fictícios como forma de não submetê-las à exposição desnecessária de alguns particulares de complexidade considerável. Vale ressaltar ainda, antes de iniciar o relato, que no entrecruzar dos conceitos e procedimentos da Psicanálise com os da Educação, algumas ações relacionadas à escuta operam-se de forma um tanto diversa do que ocorre na clínica, havendo várias situações, portanto, de intervenções mais próprias da prática do educador que da do psicanalista.

O caso aqui descrito, embora seja apenas um dos muitos exemplos de uma situação bastante comum nas escolas do Brasil (isto é, de uma criança que demora a se inserir na escrita gráfica), chama a atenção por algumas especificidades relativas a certas singularidades de um processo de imaginarização ao qual é submetida toda uma família.

Misael e seus dois irmãos, Ariel e Daniel, foram encaminhados ao projeto de alfabetização desenvolvido pelo grupo de estudos de linguagem, psicanálise e educação e orientado pelo professor Belintane, no início de 2003 pela escola municipal que freqüentavam. Misael, reconhecido como o caso mais grave entre os três irmãos, tinha, na época, onze anos e estava matriculado na quarta série do Ensino Fundamental. Os irmãos, Daniel, de oito anos e Ariel de nove, estavam na primeira e na segunda série, respectivamente. Todos os três irmãos não sabiam ler ou escrever e foram a nós encaminhados com um "diagnóstico" informal fornecido pela diretora da escola: "todos DMs, (débeis mentais), nem adianta perder tempo".

Diante de tal perspectiva discursiva, a primeira possibilidade de escuta se abriu: havia uma fala, tanto da família quanto da escola, que colocava os três irmãos num lugar de igualdade. A mãe, nas entrevistas, dizia que as crianças eram inseparáveis, que "pareciam três cachorrinhos". Além disso, levantou-se também a questão da semelhança mórfica dos nomes das crianças: todos palavras oxítonas terminadas em –el: MisaEL, AriEL e DaniEL. A escola reforçava tal discurso categorizando-os por uma mesma palavra: DM.

Assim, uma primeira ação do trabalho desenvolvido foi operar na contramão do discurso até então estabelecido e, para tanto, definiu-se como estratégia atender separadamente as crianças. Agora, diferentemente do que viviam em casa e na escola, cada criança tinha sobre si um olhar e uma relação bastante singular de aprendizagem. Em alguns momentos, revezam-se os pesquisadores com vistas a uma escuta mais qualitativa, que mexesse nas possíveis acomodações.

A partir de tal procedimento, perceberam-se claras distinções entre Misael, Ariel e Daniel. Ariel, o irmão do meio, diferentemente do que descreviam seus professores, era uma criança bastante motivada, embora bastante dispersa. Tinha um vivo interesse pelos jogos orais propostos e conseguia realizá-los de forma bastante tranqüila, mostrando sentir muito prazer nisso. A passagem da oralidade para a leitura, muito semelhante ao que ocorre com a maior parte das crianças, não se deu sem sofrimento, porém pode-se dizer que a criança se sentia desafiada à decifração primeira, finalizando, então, o período em que esteve conosco, dominando bem o sistema de escrita alfabética. Daniel, o mais novo, mostrava ainda mais facilidade com os jogos orais, mas era resistente aos rompimentos que a escrita parecia representar. Havia certa insistência em recorrer a atitudes imaturas, como choro e fuga da sala, sempre que lhe eram solicitados registros escritos ou quando lhe eram trazidos livros para leitura. Assim, considerando a idade ainda de oito anos, era possível compreender os arroubos de imaturidade e tratar a situação dando-se apenas um pouco mais de tempo para que pudesse se envolver de forma mais concentrada com a cultura letrada e vinculada à escola. Assim, Ariel e Daniel foram dispensados dos atendimentos, compreendendo-se que era possível inseri-los mais facilmente nas rotinas e exigências que a escola propunha.

Misael, o mais velho dos três irmãos, após o período de observação das três situações, passou a ser atendido apenas por mim, já que o grupo havia concluído que, de alguma forma, havia se operado uma transferência que talvez fosse produtiva para o deslocamento da posição de resistência à língua escrita que vínhamos percebendo desde a sua chegada a nós.

Diferentemente dos seus irmãos, Misael apresentava uma situação bastante complexa em relação à língua. A resistência em participar de atividades que exigiam algum tipo de registro escrito não era tão intensa conforme se observava nos irmãos. Porém, sua relação com a escrita se dava unicamente por meio da cópia. Misael, em todos os momentos em que lhe era solicitado que utilizasse a escrita – inicialmente até para se verificar suas hipóteses de escrita – buscava com o olhar alguma palavra solta pelo ambiente (um cartaz, a lombada de um livro, uma palavra esquecida no quadro-negro) e a copiava, sempre procurando fingir que se tratava de uma escrita autêntica. Já no que se refere aos jogos orais, revelou sempre grandes dificuldades, não conseguindo memorizar parlendas, fórmulas de escolha ou adivinhas de texto extremamente simples, como:

I – parlenda
Macaco foi à feira
Não tinha o que comprar
Comprou uma cadeira
Pra comadre se sentar
A comadre se sentou
A cadeira esborrachou
Coitada da comadre
Foi parar no corredor.

II – fórmula de escolha
Lá em cima do piano
Tem um copo de veneno
Quem bebeu morreu
O azar foi seu

III – adivinha
O que é, o que é? Cai em pé e corre deitado?

A parlenda, conforme se observa, não é das mais curtas nem das mais conhecidas em nossa região, no entanto, procurou-se apresentá-la em versão musical, para que Misael associasse sonoridade e melodia, facilitando assim a memorização. Misael conseguia cantarolar a melodia, mas nunca associava-lhe ao texto.

No caso da fórmula de escolha, evidentemente mais simples que a parlenda antes proposta, dada a extensão reduzida do texto, também não houve memorização. Apesar de se realizar o jogo com as mãos, indicando uma pessoa a cada sílaba emitida, Misael acompanhava o jogo sempre em sua superficialidade. Gostava da brincadeira, procurava acompanhar o texto movendo os lábios, mas sequer abria e fechava a boca no ritmo da emissão de voz.

Sobre a adivinha, a situação parece ainda mais grave. O texto, ainda mais curto que os anteriores, propõe um logro que coloca o emissor em situação de vantagem em relação ao receptor, na medida em que aquele detém um segredo expresso de forma cifrada que seu outro tem de resolver. Ocorre, no entanto, que Misael, além de não conseguir memorizar o texto, ao procurar fazer o jogo com o outro, produzia um texto que lhe destituía da posição de poder em que poderia se instalar, caso mantivesse a fórmula textual. Ao tentar fazer a brincadeira, dizia "cai a chuva e corre", parecendo não compreender também as etapas da brincadeira, estabelecidas em pergunta e resposta.

Devem-se ressaltar aqui, nesse sentido, alguns aspectos da escolha de textos oriundos da tradição oral como matéria inicial de um trabalho de aproximação da língua escrita. Conforme se esboçou anteriormente, as demarcações estéticas dos textos lúdico-literários da tradição oral em muito coincidem com aquelas que reencontramos na produção poética da escrita. O uso de rimas, aliterações, anáforas, catáforas, metáforas, metonímias, antíteses etc. bastante comum na poesia e também em alguma prosa pode ser facilmente encontrado nos textos da tradição oral. Nos exemplos acima registrados vemos, na parlenda, por exemplo, alguns recursos bastante comuns à poesia mais tradicional, como versos de métrica regular, rimas em ABABCCDC, havendo inclusive algumas ousadias mais complexas, como na evidenciação de proximidade sonora entre quebrou /esborrachou e corredor, apesar de suas escritas revelarem distinção morfológica (verbo x substantivo).

Por outro lado, deve-se ter em vista o que a psicanálise vem observando desde Freud em O chiste e sua relação com o inconsciente ou no artigo "Esquecimento dos nomes próprios". Isto é, o inconsciente, uma vez que se estabelece como uma linguagem, parece operar a partir de mecanismos bastante semelhantes aos que encontramos no trabalho estético com a língua. O percurso seguido pelo inconsciente na produção de um chiste que parece fazer uso das possibilidades de combinação e seleção do sistema da língua para expor um desejo recalcado se assemelha aos recursos encontrados pelo poeta para ressignificar a palavra e valorizar o instante que quer eternizar com sua poesia. Da mesma forma, na tradição oral, os recursos presentes na poesia e nas situações cotidianas de exposição do desejo pela linguagem assumem efeito de composição de uma memória fortemente marcada pelo afeto, já que cultivada em situações de prazer, seja no âmbito da família, seja na rua, já inserido em outras relações de afeto.

Por essa razão que se tem aqui como pressuposto o resgate de uma memória oral capaz de, conforme Belintane, matriciar a entrada na escrita, seja pelo efeito prazeroso que produz ao se retomar tais textos, seja pela evocação do sistema de combinação e seleção já dinamizado e experimentado de diversas formas na oralidade.

Misael, porém, não se mostrava motivado por tais tentativas de evocar a oralidade. Inicialmente, vimos a grande dificuldade em fazer uso de uma memória ancorada em planos estéticos. Depois, procurando observar seu repertório pessoal de textos orais, procurou-se provocar a memória a partir da reprodução sonora de um cd de canções de roda e de ninar. Misael ouvia atentamente canções como "Ciranda, cirandinha", "O cravo e a rosa", "Boi da cara preta". Por vezes, procurava cantá-las. Sentia imenso prazer ao reconhecer as canções e, sorrindo, dizia "Essa eu sei!". No entanto, quando se interrompia a execução do cd, Misael parava de sorrir, baixava os olhos, sinalizava negativamente com a cabeça, calava-se. Parecia, assim, haver um repertório bastante investido de desejo, mas que, por alguma razão, Misael não encontrava o fio da meada que trouxesse à tona toda a carga simbólica ali guardada.

Nesse sentido, fazia-se necessário um amplo e profundo trabalho que colocasse Misael no confronto com um passado sobre o qual imprimia um provável esquecimento patológico. Sua história pessoal, por exemplo, era sempre narrada de forma confusa, não sabendo precisar marcos como sua idade, a ordem de nascimento dos três irmãos, a data de seu aniversário. Entendeu-se, assim, necessário explorar o campo das relações parentais, sobretudo com o pai e a mãe, entretanto, não cabe aqui aprofundar tais considerações.

Diante de tais desafios que o caso propunha em relação ao resgate fundamental de uma oralidade e notando-se a prevalência de uma percepção de mundo visual em detrimento da sonora, ao lado da insistência no resgate da oralidade de Misael, investiu-se na construção de uma escrita que pudesse se ancorar em imagens, conforme ocorre com os rébus da escrita egípcia e das formulações oníricas descritas e analisadas por Freud em A interpretação dos sonhos. Como base fundamental desse aspecto do trabalho com Misael, recorreu-se ao estudo realizado por Gérard Pommier em Nacimiento y renacimiento de la escritura, onde estabelece relações intrínsecas entre o processo de formulação da escrita alfabética e os tempos do Édipo, sistematizados no Seminário 5 de Lacan.

A síntese da formulação de Pommier pode ser visualizada no quadro abaixo, proposto por ele no citado livro:

 

 

A idéia expressa por Pommier refere-se ao fato de que, tal qual ocorre na formação do sujeito, a escrita parece ter seguido um percurso de distanciamento de um imaginário, partindo dos pictogramas e ideogramas, os quais representavam de forma quase que direta o objeto a que se referiam, até chegar numa escrita consonantal, em que não há como supor o objeto se não houver uma assunção da lei do código da escrita. Ao primeiro tempo, que na formação do sujeito é demarcado por uma relação de absoluta proximidade entre mãe e filho, sendo este o falo da mãe, Pommier relaciona a escrita baseada na imagem direta do objeto representado. Já o segundo tempo, quando da entrada do outro, estabelecendo um corte na relação simbiótica entre mãe e filho, tem-se as escritas mais sofisticadas, em que ocorre um distanciamento entre imagem e referente – no caso dos hieróglifos –, bem como na entrada da representação da sonoridade da palavra nos ideofonogramas, rébus e silabismos. Isto é, no segundo tempo, apesar de a escrita ser grafada por imagens, o referencial é a palavra e não mais o objeto. Na repressão secundária, ocorreria a efetiva entrada da lei paterna, do código dado pela escrita consonantal, a qual apresenta um rigor em seu código e a desvinculação total entre o registro e a imagem do referente. Ao final, na instauração das escritas alfabéticas, quando da entrada das vogais, tem-se a retomada da sonoridade da língua oral agora também inscrita nos registros visuais. Talvez, segundo o que interpretamos da obra de Pommier, se trate das possibilidades de exposição dos sintomas como efeito da castração.

Interessa aqui expor de que forma a sistematização acima se inseriu no trabalho realizado com Misael. Conforme foi dito anteriormente, Misael não dominava minimamente o código alfabético, muito menos o sistema de seleção e combinação para a efetivação da escrita. Os poucos registros que realizava eram cópias de palavras que visualizava em seu entorno ou a cópia de uma imagem mental que tinha de seu próprio nome.

Assim, após inúmeras tentativas de se explorar alfabetos, silabários e tabelas de combinações de letras, e entendendo-se que Misael parecia extremamente fixado na imagem das letras, não estabelecendo a relação entre o código alfabético e os fonemas da língua, iniciou-se um trabalho com rébus produzidos por mim, como o que se visualiza abaixo:

 

 

Misael tinha de tentar efetuar uma leitura a partir da relação produzida entre imagem e som. Para tanto, deveria passar por etapas de construção bastante complexas para ele. Primeiramente, era necessário ver a imagem e interpretá-la como uma representação de algum objeto presente em sua realidade. Depois, era necessário transpor a imagem em palavra, trazendo então a sonoridade. Em seguida, deveria segmentar as silabas que compunham a palavra, isolando e memorizando a primeira. Tendo feito isto, deveria repetir o mesmo procedimento com a imagem seguinte. Finalmente, deveria combinar as sílabas memorizadas e escutar a palavra dali resultante. Tratava-se, assim, de um processo de transição da imaginarização para a simbolização.

Evidentemente que tais etapas foram sendo vencidas muito lentamente, ao longo de alguns meses de trabalho, paralelamente aos investimentos em sua oralidade, já que não seria possível realizar tais procedimentos sem o apoio de alguns mecanismos próprios de uma matriz oral, como a silabação, a memorização, a combinação final das sílabas formando a nova palavra.

Até o final dos atendimentos, interrompidos pela falta de disponibilidade da família para conduzi-lo ao local de encontro, Misael mostrou avanços muito significativos. Seu anterior desinteresse por materiais oriundos de uma cultura letrada, seu apego à cópia, sua vinculação extremada com um discurso que o punha em situação de igualdade em relação aos irmãos, até mesmo a resistência em lidar com suas dificuldades foram sendo paulatinamente desconstruídos. Não se obteve, infelizmente, o resultado desejado, ou seja, de que conseguisse se alfabetizar, que atingisse minimamente o segundo nível de leitura proposto pelo MEC, conseguindo ao menos decodificar textos escritos. Paramos ainda no que Pommier associa ao primeiro tempo do Édipo, o que, de algum modo, coincide com o que víamos ocorrer nas relações com os discursos presentes na família e na escola. Misael, aos poucos, deslocava-se desse imaginário imposto pela manutenção de discursos que espelhavam culpas e descartavam responsabilidades.

Vale ressaltar dessa parcela da experiência vivenciada na pesquisa de doutorado três aspectos que me parecem fundamentais de serem considerados no trabalho realizado dentro da escola, sem o risco de torná-la uma clínica impossível. O primeiro deles refere-se à relevância da compreensão de uma concepção de língua que considere escrita e oralidade enquanto aspectos indissociáveis. Nesse sentido, é necessário compreender o conceito de oralidade, extrapolando-o da fala espontânea, em geral muito bem articulada pelos alunos. Trata-se aqui de se cultivar textos orais associados a jogos, brincadeiras, logros etc., sobretudo nas séries iniciais. O segundo aspecto que me parece relevante é o da necessidade de se observarem as singularidades, sem que para isso seja preciso criar um currículo para cada aluno. É fundamental pensar que, de um modo geral, as estratégias que usamos para motivar e criar percursos de aprendizagem são de algum modo aceitas e encampadas pelos alunos em sua maioria. Entretanto, há situações em que se faz necessário uma escuta capaz de repensar e adequar propostas de ensino. No caso aqui descrito, Daniel e Ariel corresponderam satisfatoriamente aos investimentos do campo da oralidade, já Misael, em sua singularidade e complexidade, exigiu outros esforços, outros percursos, sem que, no entanto, fosse preciso abandonar o projeto inicial. O terceiro ponto, na esteira do anterior, aponta para a relevância de se estar atento aos discursos que a escola impõe, estabelecendo assim situações de imobilidade resultantes da criação de imaginários de fácil composição. Casos complexos como os de Misael (diferentemente do que ocorria com Ariel e Daniel) não são assim tão freqüentes, trata-se, certamente, de uma exceção. Entretanto, não é raro ver os discursos apoiados em categorizações comporem um universo de situações cuja solução se fixa na palavra, na adjetivação do aluno, seja ela mais ou menos referenciada em teorias. No caso de Misael, bastava dizer que era DM e tudo parecia solucionado.

Nesse sentido, o que se propõe aqui, no cruzamento das teorias de linguagem, psicanálise e educação, é a possibilidade de uma escola que proceda numa escuta dos discursos que envolvem o aluno e sua aprendizagem, que saiba, enfim, se contrapor a um status quo capaz apenas de produzir silêncio e esquecimento.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BELINTANE, Claudemir. Matrizes e matizes do oral. Revista Doxa – Revista Paulista de Psicologia e Educação, Vol 9.: Araraquara: SP, 2005 (pp. 23-45)

FERREIRO, Emilia; TEBEROSKY, Ana. Psicogênese da língua escrita. Tradução de Diana Myriam Lichtenstein, Liana Di Marco e Mário Corso. Porto Alegre: Artmed, 1999.

FREUD, Sigmund. Além do princípio do prazer. Tradução de Christiano Monteiro Oiticia. Rio de Janeiro: Imago, 2003.

_______________. A interpretação dos sonhos. Tradução de Walderedo Ismael de Oliveira. Rio de Janeiro: Imago, 2001.

_______________. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira. Tradução de Jaime Brandão. Rio de Janeiro: Imago, 1998.

LACAN, Jacques. O seminário, livro 5: as formações do inconsciente. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.

POMMIER, Gérad. Nacimiento y renacimiento de la escritura. Tradução de Irene Agoff. Buenos Aires, 1996.