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On-line ISBN 978-85-60944-08-8

An 6 Col. LEPSI IP/FE-USP 2006

 

Uma proposta de transmissão da psicanálise no campo educacional

 

 

Silvana Souza Pessoa

silvanapessoa@uol.com.br

 

 


RESUMO

O presente trabalho trata de uma experiência de um Serviço de Orientação Psicopedagógica1 de transmissão de uma cultura de escuta e implicação dos professores nos processos de ensino e de aprendizagem, visando evitar a atual síndrome de encaminhamento que tem sustentado a cultura escolar. Para tratar do assunto, foi necessário circunscrever o conceito de transmissão no campo educacional – de forma geral – e no campo psicanalítico – de forma específica – para em seguida apresentar uma proposta de acompanhamento aos professores de alguns alunos com "fraturas no aprender" como uma forma possível de transmissão da psicanálise no campo educacional e assim evitar a síndrome de encaminhamento.

Palavras-chave: Psicanálise; educação; transmissão.


 

 

Introdução

O modelo de educação contemporâneo vive novos desafios. Novas síndromes surgem vinculadas ao comportamento e ao desempenho de alunos e professores, e algumas escolas se questionam sobre sua responsabilidade e suas possibilidades frente ao que não funciona. O desafio do "ensinar-aprender" demanda habilidades e atitudes cada vez mais específicas dos atores da cena pedagógica. Contudo, diante da demanda para que reflitam e atuem sobre os entraves na aprendizagem de alguns alunos, o professor, desabafa: "Mas não sou psicólogo...".

Oferecer uma escuta diferenciada, diagnosticar a dificuldade e prescrever intervenções pedagógicas adequadas são procedimentos que cabem, inicialmente, ao professor e não ao psicólogo escolar ou ao psicanalista na escola. No entanto, muitos não se implicam no processo de aprendizagem dos seus alunos. Acreditam que, apenas apresentando o conteúdo através de uma metodologia adequada, podem fazer com que seus alunos aprendam. Quando algo imprevisto acontece, crêem que devem levá-los para o Orientador ou Coordenador Pedagógico, que cuidarão desses alunos ou irão encaminhá-los para tratamento psicopedagógico.

Em analogia ao médico, especialista na área de saúde, o professor, especialista no processo de ensino-aprendizagem, é quem deve lidar com as "fraturas do aprender". Para realizar este intento, é preciso compreender o contexto escolar de modo amplo, bem como diagnosticar, prescrever e acompanhar o tratamento pedagógico e a evolução desse processo. O psicólogo escolar torna-se relevante para a capacitação dos professores, para que estes possam atuar sobre as dificuldades enfrentadas pelos alunos sem simplesmente direcioná-las para terceiros, gesto que estimula a atual síndrome de encaminhamento, muito presente na cultura escolar.

 

O que se transmite – e como – nos distintos campos.

O conceito de transmissão na física e na mecânica é muito claro. Transmissão, ou seja, a passagem de um ponto ao outro, se dá quando a propagação de uma parcela de energia não é absorvida nem refletida. Essa transmissão, na física, pode se dar por fios, cabos, fibras óticas, freqüências de rádio, satélite e até mesmo pelo ar, e, na mecânica, por engrenagens, correias e polias. Na educação, e muito menos na psicanálise, o que se transmite e a forma pela qual se transmite não são facilmente circunscritos e nem sempre são imediatamente verificáveis tal como no outro campo citado.

No campo educacional, entende-se transmissão por "influência intencional e sistemática sobre o ser juvenil, com o propósito de formá-lo e desenvolvê-lo" ou "(...) uma ação genérica, ampla, de uma sociedade sobre as gerações jovens, com o fim de conservar e transmitir a existência coletiva".2 Esses conhecimentos e experiências da existência coletiva podem ser transmitidos de forma sistemática na escola, no lar, na igreja – instituições que têm a intenção prévia de educar – ou de forma assistemática pelos meios de comunicação, tais como rádio, televisão, teatro, que não tem a intenção, ordenação ou método previamente preparados para tal fim.

Nesse campo, existe uma prática freqüente de transmissão de conteúdos curriculares por aulas expositivas. No campo psicanalítico, a transmissão também muitas vezes é entendida em algumas instituições como ensinar os conceitos fundamentais, tais como pulsão, inconsciente, transferência, fantasia para aqueles que dela se aproximam. Esse tipo de transmissão geralmente é realizado através de seminários teóricos, cursos mais ou menos estruturados ou grupos de pesquisa. Ao nosso ver, não é isso ainda a transmissão possível da psicanálise no campo educacional.

Freqüentar uma instituição psicanalítica, para um "simpatizante" da psicanálise que quer aprender um pouco mais sobre o que trata esta prática ou para um jovem analista que busca uma formação, pode ser a forma – a mais segura – de se manter protegido enquanto verifica se é esse mesmo o lugar onde quer fazer a sua filiação, mas certamente não é a melhor forma de construir um saber, ou melhor, um conhecimento sobre um determinado tema. O que a experiência tem revelado na maioria das vezes é que o maior beneficiário dessa prática é o analista veterano que ministra os seminários, pois, sabemos do campo vizinho – o educacional – que é "ensinando que se aprende".

Entretanto, não é de segurança, nem de ensino que trata o campo da psicanálise, muito pelo contrário. Não funcionamos numa estrutura hierarquizada, piramidal, na qual existem conhecimentos básicos e elementares que precisam ser ensinados pelos mais experientes e assimilados pelos mais jovens, de forma a garantir o acesso ao estágio seguinte. Afinal, estamos todos em formação, que deve, e só pode, ser permanente. Isso é uma vantagem, pois nos deixa mais jovens, ou melhor, menos velhos.

Aprendemos com a psicanálise que não existe uma verdade a ser atingida, um saber único e totalitário. Estamos todos – sempre – dando voltas a redor do furo, titilando a verdade, nas nossas análises e na psicanálise em extensão. Por conta disso, não podemos entender uma transmissão que gire em torno de cursos, nos quais alguém estuda um tema e apresenta aquilo que aprendeu. Nisto estamos afinadas com Freud, com sua escrita constante e reflexiva e com a aposta de Lacan para a transmissão na sua Escola: o trabalho em cartel, que além da transmissão, trata também da formação do analista.

Uma aposta interessante, de fato, na qual quatro pessoas se agrupam em torno de um tema de interesse comum, mas cada um com a sua questão particular, e convidam mais uma pessoa que fará esse dispositivo funcionar através da transferência de trabalho e com a finalidade de emergir um texto, um produto próprio de cada um, ao final de um ou dois anos aproximadamente. Esse modo de funcionar denuncia o saber "pré-digerido", habitualmente fornecido nas outras instituições psicanalíticas; uma proposta dentro da lógica lacaniana do não-todo, onde o impacto da destituição de um saber se faz sentir e o conceito de implicação emerge como condição necessária para a produção.

O ensino da psicanálise só pode ser transmitido de um sujeito ao outro pelas vias de uma transferência de trabalho. (...) No método tradicional de ensino (cursos ou seminários) o que efetivamente se transmite não é tanto aquilo que está em posição de ensinante sabe, mas sim o que ele deseja saber. Pode se lembrar aqui da famosa frase de Freud fazendo referência aos seus mestres (Breuer e Charcot): "Eles me transmitiram um conhecimento que a rigor, não possuíam". No cartel, esse fato é levado a sua radicalidade absoluta, já que é o instrumento, ou seja, à transferência de trabalho que se dá o poder de agente. (...) Não seria um saber o que se transmitiria, mas um desejo de saber, que leva necessariamente a leitura dos textos de Freud e Lacan, não para aprender o que eles sabiam mas para "a"- preender a impossibilidade absoluta do abismo com o qual eles se enfrentaram".3

Não-há-relação-sexual é uma outra forma que Lacan encontrou para expressar essa impossibilidade absoluta, ou seja, a impossibilidade da relação sexual, a inexistência de um Outro consistente, o não-todo. Diante disso, os programas de transmissão da psicanálise têm que ser estruturados – dentro dessa lógica, a do não-todo, da não-completude, mas de implicação. É nela que devemos analisar o que fazemos quando transmitimos a psicanálise no campo educacional e se ela pode contribuir para um melhor-fazer pedagógico, sem causar tanto ruído, que é o que geralmente acontece quando se aplica diretamente o saber de um campo ao outro, sem as devidas mediações.

 

Uma Proposta de Transmissão da Psicanálise no Campo Educacional

É importante que o professor-educador, não importando a matéria que ministre, compreenda a importância e a abrangência do seu papel na formação do aluno e assuma pleno controle da situação. Não vale dizer "meu aluno não está aprendendo", "não presta atenção" sem se implicar nesta relação de ensino e aprendizagem, que é recíproca, e não sem efeitos para ambos os atores da cena. Ele tem um papel ativo enquanto agente transformador, mediador do conhecimento e da cultura, é, portanto, um especialista da educação, no processo de ensino e aprendizagem.

Essa "não-omissão" do ato educativo é o que pode ser, ao nosso ver, a transmissão possível da psicanálise nesse campo. É uma aposta. Gostamos de estabelecer uma analogia com o ato médico, que verifica os sinais clínicos (aquilo que se dá a ver, que não é preciso ser falado), escuta a descrição do sintoma (o que não é visto, mas sim descrito pelo paciente), investiga as possíveis causas no contexto (a metodologia, o grupo, o momento, entre outros.), fazendo, em seguida, uma prescrição e um acompanhamento da sua intervenção.

Ao trazer uma queixa a um Serviço de Orientação, ao invés do destinatário desta tomá-la como sua, ele deve ajudar o professor a levantar hipóteses, identificando as possíveis causas para o entrave pedagógico apontado e as intervenções necessárias. Nesse sentido, oferece-se ao professor um lugar de escuta onde há possibilidade de pensar sobre os aspectos relevantes ao caso, sendo eles: a dinâmica utilizada em sala; o relacionamento dos alunos no grupo e do aluno específico com o professor, seus colegas e escola; a abordagem metodológica, o histórico de situações prévias, dentre outros.

Essas informações podem ser registradas e arquivadas em uma ficha de acompanhamento e, sempre que necessário, essa pode ser alimentada com novas informações sobre "a situação, as intervenções e os resultados". Entretanto, acreditamos que ela deve ser atualizada a cada final de ciclo ou ano. Assim, os alunos podem ser acompanhados por outros professores a partir do ponto até onde foram trabalhados, não sendo mais necessário retornar ao ponto inicial da observação para atuação do novo educador.

Esse sistema de acompanhamento individualizado, no qual o histórico das ações está ao acesso do docente, viabiliza, por um lado, um olhar mais cuidadoso do professor que tem a possibilidade de conhecer o percurso de seus alunos e as intervenções pedagógicas dos seus colegas, por outro, registra-se a tentação iminente de utilizar-se dos dados como rótulos e predições para o fracasso escolar que poderiam estigmatizar o aluno ou ainda "engessá-lo" em determinada posição. A principal vantagem sobretudo é a implicação do professor no processo de aprendizagem do seu aluno.

Entretanto, cabe ao psicanalista, ao psicólogo ou ao orientador psicanaliticamente orientado estarem advertidos deste risco na implementação do procedimento. Não se pode descartar a necessidade da conscientização dos professores acerca do rigor com que tem que tratar cada caso, tomar cada um deles na sua singularidade e acreditar na constante possibilidade de mudança, ou seja, na plasticidade inerente a todo processo de aprendizagem.

 

Considerações Finais

Acreditamos que a tarefa possível de um psicanalista inserido em um contexto escolar é a de fazer o professor passar da queixa à implicação, ou seja, responsabilizar-se e não se culpar "por aquilo que é da ordem do ato"4. Além disso, ele deve inserir um espaço sistemático e regular de discussão de experiências vividas em sala de aula, leitura de textos de diversos autores, não só os clássicos e os contemporâneos da psicanálise, mas qualquer literatura que favoreça a reflexão da sua prática pedagógica e da suas questões, cuidando para que as demandas terapêuticas ou analíticas, sem exagero, sejam direcionadas aos locais adequados.

Com essa "metodologia", o psicólogo escolar orientado pelo discurso psicanalítico, sua posição diante da queixa, pode fazer o professor produzir um saber sobre a sua verdade, instaurando uma transferência de trabalho e quebrando as possíveis resistências, sem querer fazer clínica com os professores ou alunos, favorecendo a atual síndrome de encaminhamento, ou querer atender a demanda de muitos de receber "receitas e fórmulas" para lidar com as "fraturas do aprender".

Certamente alguns conceitos da psicanálise – tais como sujeito, estruturas, inconsciente, identificação e transferência – podem ser introduzidos não para que os professores tenham um domínio teórico e prático ou para que se tornem psicólogos, terapeutas ou psicanalistas e apliquem seus conhecimentos adquiridos com os seus alunos, mas para que saibam que também eles – professores, orientadores e psicanalistas –, na escola ou não, estão sujeitos ao inconsciente e que isso determina em grande parte a maneira com que estabelecem uma relação com o outro e com o mundo. Essa é ao nosso ver a transmissão possível da psicanálise no campo educacional.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

COTRIM, G. E PARISI, M. Fundamentos da Educação: história e filosofia da educação. São Paulo: Saraiva, 1981, p. 14

JIMENEZ, S., PAZ, P. E AUTRAN, A.L., Cartel: do trabalho de transferência à transferência de trabalho. In: O Cartel: conceito e o funcionamento na escola de Lacan. Stella Jimenez (org.). Rio de Janeiro: Campus, 1994, p. 139.

VOLTOLINI, R. Do contrato pedagógico ao ato analítico: contribuições à discussão da questão do mal-estar na educação. Estilos da Clínica: Revista sobre a Infância com Problemas. 6(10), São Paulo, USP-IP, 2001, p.106.

 

 

1. Essa experiência foi desenvolvida na ACBEU, de 1998 a 2003, em uma escola de inglês localizada em Salvador, Bahia, e contou com a colaboração das colegas Adriana Rupp e Vera Edington.
2. COTRIM, G. E PARISI, M. 1981, p. 14
3. JIMENEZ, S., PAZ, P. E AUTRAN, A.L. 1994, p. 139.
4. VOLTOLINI, R. 2001, p.106.