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On-line ISBN 978-85-60944-08-8
On-line ISBN 978-85-60944-08-8
An 6 Col. LEPSI IP/FE-USP 2006
Memória educativa: um elo entre o passado e o presente do ser professor1
Thaís Sarmanho Paulo; Sandra Francesca Conte de Almeida
RESUMO
A pesquisa investigou as relações entre as experiências de vida pessoal/subjetiva do professor e sua identidade/prática profissional e como aquelas fornecem o suporte para que a transmissão do conhecimento aconteça por meio de um estilo singular e criativo, com conseqüentes resultados gratificantes para o processo ensinar-aprender. Considerando que a prática educativa é determinada pelas histórias de vida do professor e por suas experiências escolares, interessou-se, neste estudo, em saber como os professores vivenciaram sua trajetória de vida e qual a sua relação com a prática profissional e a possibilidade de auto-realização no exercício do magistério. Foram sujeitos da pesquisa 17 alunos e ex-alunos do PIE–UnB (Pedagogia para professores em exercício na educação básica infantil e fundamental), inseridos no curso de formação continuada Memória educativa e subjetividade docente: do imaginário ao simbólico, realizado inter-institucionalmente pela UnB e UCB. O instrumento utilizado na coleta de dados foi a memória educativa dos professores, analisada qualitativamente, e os resultados interpretados à luz da teoria psicanalítica. As conclusões do trabalho apontam que é preciso pensar o processo de formação de professores em sua complexidade histórica e particular, refletindo junto com o professor e a partir dele, sua prática e tudo que lhe escapa: seu ciclo de vida, seus sentimentos, as vivências de seu ofício e como estes se afetam mutuamente, constituindo sua história de vida. É de fundamental relevância, para introduzir qualquer mudança na práxis educativa dos professores e na reorientação das ações e dispositivos de formação, compreender e implicar a história de vida pessoal do professor na sua trajetória profissional, pois ambas constituem a dupla face do "ser" professor.
Palavras-chave: formação de professores; psicanálise; memória educativa.
Introduzindo o tema
Neste trabalho foram investigadas a relação entre o desenvolvimento pessoal, as experiências subjetivas de professores, principalmente as educativas/escolares, e as trajetórias profissionais marcadas pela criação de um estilo próprio de transmissão de saber, que acontece de maneira prazerosa, com resultados gratificantes para o processo ensinar-aprender.
Os professores que participaram da pesquisa estavam inseridos em um processo de formação continuada, pautada na consideração da subjetividade docente, e deram testemunho de que a educação é uma tarefa "possível".
A pesquisa foi realizada com 17 (dezessete) alunos e ex-alunos do PIE-UnB (Pedagogia para professores em exercício na educação básica infantil e fundamental), inseridos no curso de extensão "Memória educativa e subjetividade: do imaginário ao simbólico", desenvolvido em parceria entre a Universidade de Brasília – UNB e a Universidade Católica de Brasília – UCB. O tempo médio de experiência docente dos profissionais pesquisados era de onze anos, sendo a grande maioria de escolas públicas. Foram construídos instrumentos específicos para o curso, respondidos pelos participantes. Dentre os instrumentos usados, privilegiou-se, neste trabalho, o dispositivo das memórias educativas.
Pesquisas sobre relações estabelecidas com a escola e com o ensino, por meio de imagens construídas na memória de professores, têm sido realizadas e revelam que, ao invés de se constituírem apenas como fatos comuns da vida dos sujeitos, possuem peso relevante nos seus processos formativos posteriores. Bueno, Catani e Sousa (2003) afirmam que através da reconstrução da memória de cada indivíduo pode-se descobrir e identificar as relações que esses estabelecem consigo mesmo e com o conhecimento.
Como docentes de ensino superior, em cursos de licenciaturas, de pedagogia e de formação superior de professor de 1ª à 4ª série do ensino fundamental, as pesquisadoras têm se deparado com o mal-estar do educador/professor no exercício de sua prática educativa, ao seguir o ideal de felicidade propagado pelos anseios da modernidade. Sob a forma dos mais variados sintomas, sejam estes a busca de culpados diversos, a desistência da "árdua" tarefa educativa, o adoecimento ou as licenças médicas que os afastam da sala de aula, consecutivas vezes, o professor expõe – e se expõe – o mal-estar docente. Entretanto, no interior mesmo da "crise" educativa, no cotidiano das práticas escolares, chamam a atenção, em particular, professores que encontraram outras saídas, não trilhando a via do sintoma ou do adoecimento. Professores que seguem buscando melhores formas de transmitir o saber, implicando-se na tarefa educativa, obtendo resultados surpreendentes e, na maioria das vezes, tendo, inclusive, sua jornada de trabalho aumentada, ao receber os alunos que ninguém quis, ou os que já repetem há vários anos a mesma série ou, ainda, aqueles que, para a escola, "não têm mais jeito". Professores que, a despeito do discurso pedagógico hegemônico, recusam o "mito da infância feliz", fazendo aprender os fracassados do sistema educacional. Esse professor, apesar do mal-estar, encontra soluções que amenizam sua angústia e sofrimento, gesta a criação de um estilo singular e potencializa ações criativas em sua prática educativa: é ele o sujeito deste estudo.
O interesse em estudar esse tema justifica-se pela importância de se compreender melhor os laços entre a história de vida do professor, notadamente sua história como aluno, resgatada e reinventada na escrita da memória educativa, e suas práticas profissionais, sobretudo os professores que tornam o campo pedagógico um espaço fértil, em que professor e aluno se posicionam numa relação comum com o saber, onde o desejo de saber do aluno encontra eco na experiência do aprender e no desejo de ensinar do professor.
Partindo da premissa de que a prática educativa e a "criação" de um estilo são determinadas pela trajetória de vida do professor e por suas experiências escolares, trabalhou-se aqui com a referência teórica da psicanálise, que sustenta a idéia de que os processos psíquicos, subjetivos e inconscientes, afetam o desenvolvimento pessoal e as escolhas profissionais dos sujeitos, compondo sua identidade subjetiva e profissional. Assim, procurou-se mostrar que é possível, mesmo nas complexas tramas em que se tecem as situações de ensino, encontrar e restituir zonas de trabalho vivas e de desejo de transformação constante das práticas educativas, a partir de um trabalho que considere a subjetividade do sujeito professor.
Puderam-se apreender, "escavando" a memória educativa dos professores, algumas categorias temáticas, que foram discutidas visando compreender como a vida pessoal, subjetiva, do professor imprime marcas na sua trajetória profissional e no saber-fazer de sua prática pedagógica, pelo comparecimento de um estilo singular e criativo.
A Psicanálise e o mal-estar na educação
Freud anunciou, no final dos anos 30, sob o título de Mal-Estar na Civilização, a condição trágica do sujeito no mundo moderno e empenhou-se para circunscrever o mal-estar do sujeito na modernidade. Era o estatuto do sujeito no mundo moderno que instigava Freud, sendo, portanto, a psicanálise, uma leitura da subjetividade e de seus impasses na modernidade. O mal-estar na civilização é inerente ao desenvolvimento cultural compreendido em sua acepção fundamental de humanização (Birman, 2000). Isto significa que nenhuma reforma, nenhum abrandamento dos costumes, nenhuma estratégia educacional poderia pretender, exceto por ilusão, solucionar verdadeiramente a insatisfação que caracteriza a sexualidade humana. Trata-se sempre, diz Lacan, (citado por Cifali & Imbert, 1999), de uma relação entre a lei e o desejo, castração necessária.
Mal-estar diz respeito àquilo que o sujeito vive como sofrimento ou impossibilidade de relacionamento com o mundo e com o outro, ressentido como uma dificuldade de ser, conforme Koltai (1998).
O mal-estar docente é empregado para descrever os efeitos temporários ou permanentes, de caráter negativo, que afetam a personalidade do professor como resultado das condições psicológicas e sociais em que exerce a profissão, devido à mudança social acelerada, onde, além do avanço contínuo das ciências e da conseqüente necessidade de integrar novos conteúdos, verifica-se uma "demissão social" em relação às tarefas de transmissão de saber como filiação e tradição.
Arendt (2005) assinala como a principal e verdadeira dificuldade na educação moderna o fato de que, a despeito de toda a conversa da moda acerca de um novo conservadorismo, até mesmo aquele mínimo de conservação e de atitude conservadora sem o qual a educação simplesmente não é possível se torna, em nossos dias, extraordinariamente difícil de atingir e dentre as razões, aponta, como principal, a crise da autoridade na educação, que possui íntima ligação com a crise da tradição, ou seja, a crise de nossa atitude face ao passado. Torna-se difícil para o educador arcar com esse aspecto da crise moderna, pois é de seu ofício servir como mediador entre o velho e o novo de tal modo que sua profissão lhe exige um respeito pelo passado. Portanto, para a autora, o problema da educação no mundo moderno está no fato de "por sua natureza, não poder abrir mão nem da autoridade, nem da tradição, e ser obrigada, apesar disso, a caminhar em um mundo que não está estruturado nem pela autoridade nem tampouco coeso pela tradição" (p.246).
Apesar de todas as legislações democráticas assegurarem o direito à educação e o dever de educar, do ponto de vista da prática educativa não há garantias nem para quem educa nem para quem é educado, sendo, portanto, a educação, uma aposta que necessita de toda a implicação dos sujeitos para que tenha chance de ser ganha.
De acordo com Calligaris (1995), a educação é um processo cujo propósito é levar o sujeito a encontrar um lugar possível na sociedade dos adultos. Para tal, a educação precisa ser boa, o que implica em "deveres e débitos para com as instâncias simbólicas de autoridade que nos impõe os limites que abrem para nós, o caminho do desejo. Estas instâncias são constituídas de identificações simbólicas, traços ideais aos quais cada um deve o seu desejo" (p.26). Sendo assim, o laço social dependente da existência de um ideal a ser compartilhado é diferente da perspectiva moderna, que enaltece o individualismo e a independência. A promessa de felicidade que a modernidade destina à criança é a de ser feliz sem furos, sem dificuldades, sem problemas. Enfim, a promessa de um gozo sem limites.
Filloux (1999) refere que a psicanálise "aplicada" ao campo educativo possibilita uma abordagem de problemas que a pedagogia não permite. Como, por exemplo, a leitura que o professor faz de si e do campo pedagógico, podendo questionar sua prática, implicar-se, para só assim colocar-se na posição de criar, abrindo-se para um processo de mudança, de criatividade nos processos de conhecimento e das ações pedagógicas.
A relação professor-aluno está além dos conteúdos concretos do que se passa no meio escolar, sendo, ao mesmo tempo essa relação, ela própria, veículo de aprendizagem. O professor "usa-se" como instrumento para estimular a participação do aluno num processo criativo de aprendizagem. Sendo assim, sua auto-estima e auto-imagem, seu ideal de Eu, seus mecanismos de defesa assumem papel decisivo no ato educativo.
Nesta perspectiva, buscou-se, neste trabalho, dar visibilidade aos professores que produzem resultados gratificantes e inesperados, no âmbito da relação ensinar-aprender, apesar do mal-estar que o ato educativo provoca, enquanto ideal de perfeição narcísica, e da crise que assola nosso sistema educacional, e analisar, a partir da teoria psicanalítica, os suportes subjetivos que permitem o comparecimento de um estilo criativo nesses professores.
Procurou-se, também, pensar o processo de formação de professores em sua complexidade, ou seja, diante de aceleradas transformações sociais e das novas exigências demandadas a quem ensina é fundamental refletir junto com o professor e a partir dele sua prática e tudo aquilo que lhe escapa: seu ciclo de vida, seus sentimentos, as vivências de seu ofício e como estes afetam suas vidas, em resumo: sua história de vida. Para tanto, no lugar das explicações totalizantes a respeito da função do educador, este estudo buscou, nas narrativas autobiográficas de professores em formação continuada, as inscrições que a vida pessoal e as trajetórias profissionais imprimem no saber-fazer de suas práticas pedagógicas.
Memória educativa: elo entre o passado e o presente na formação docente
Como insistem Nias (1996) e Hargraves (1998) (citados por Bolívar, 2002), "cumpre reconhecer o papel fundamental que a afetividade e as emoções desempenham nas vidas, carreiras e desempenho dos professores e professoras" (p.08). É de fundamental relevância, para introduzir qualquer mudança educacional e/ou reorientação das ações formativas, compreender a trajetória profissional individual dos professores, como fazendo parte de seu desenvolvimento profissional.
Ao invés de contextualizar as escolhas profissionais partindo apenas das circunstâncias sociais e históricas que balizaram as oportunidades, interessou-nos, nesta pesquisa, conhecer como os professores vivenciam sua trajetória de vida e qual a relação com as perspectivas profissionais. Dominicé (1984) refere-se a uma perspectiva de formação onde o valor formativo de uma ação educativa aparece mais relacionado à dinâmica e à história de vida dos participantes do que à clareza das intenções do formador ou à qualidade de suas intervenções. Sendo o papel do formador, mais do que transmitir um saber externo, servir como mediador entre o professor, o objeto de aprendizagem e a análise de situações vividas. Assim, a memória educativa permite recuperar narrativamente as múltiplas experiências formativas que norteiam a história de vida de um adulto e de um saber construído ao longo do tempo.
Nóvoa (1988) assinala que um "balanço de vida", como reflexão crítica, é indispensável para compreender como cada pessoa constrói sua formação, ou seja, as vicissitudes de uma experiência de vida devem ser o ponto de partida para qualquer processo de formação, convertendo-se assim numa metodologia de formação, onde as histórias pessoais da experiência profissional permitem fazer um inventário de experiências e saberes ao mesmo tempo em que recupera o sujeito a formar.
Assim, a pesquisa foi organizada a partir de dois eixos essenciais: uma possível articulação entre a psicanálise e a educação e as perspectivas de uma formação de professores que relaciona o aperfeiçoamento profissional ao desenvolvimento pessoal do professor, ou seja, como estes pensam, sentem e atuam no cotidiano escolar.
Historicamente, psicanálise e educação vêm tentando articular-se. Encontra-se em Freud essa preocupação, assim como seu incentivo para que a psicanálise se estendesse a outras disciplinas. No entanto, nesse caminho de conexão, depara-se com algumas contradições. A educação tem como objetivo, na civilização, ensinar a criança a domar suas pulsões, motivo pelo qual é impossível permitir-lhe liberdade total, autorizá-la a obedecer sem restrições a todos os seus impulsos. A educação deve, portanto, inibir, proibir, reprimir. Para Freud, inicialmente, em 1913, a vocação repressora da educação é fator de neuroses. Qualquer "aplicação" da psicanálise à educação seria no sentido de uma profilaxia, ou seja, uma educação menos repressora teria por finalidade impedir a formação da neurose. Para tal efeito seria necessário que professores tivessem uma iniciação psicanalítica. Pensou-se em uma pedagogia psicanalítica, onde a idéia geral seria usar conhecimentos da psicanálise para criar novos métodos educativos. Entretanto, as neuroses não se evitam, ao contrário, são o fundamento de nossa subjetivação.
Assoun (1993, citado por Cifali & Imbert, 1999) aponta que o interesse de Freud pela educação se acha fundamentalmente ligado à sua teorização sobre a cultura. Se esta tem o efeito de uma inelutável "repressão", ou de "renúncia pulsional", que se mostra em parte organicamente determinada, a educação se acha numa posição estratégica determinante: ela age no próprio cerne da contradição entre a pulsão e a cultura. Disso resulta ter a educação a responsabilidade de assistir à "renúncia pulsional" que constitui o fundamento da civilização e de avaliar por inteiro os efeitos destrutivos – neurotizantes – de uma "limitação pulsional" excessiva, de ideais culturais demasiado pesados que levam as pessoas a viver "em termos psicológicos, acima de suas possibilidades", numa "espécie de hipocrisia" (p.12).
Freud (1925), ao sentenciar que educar, governar e psicanalisar são três profissões impossíveis, não falava de impraticabilidade nem de impotência. Dizer que a educação é impossível é dizer do mal-estar que ronda o sujeito permanentemente, é falar de uma construção do sujeito em torno de um furo, é admitir que o ego não é senhor da sua própria casa, ou seja, educar é tarefa incessante, sempre inacabada (Lopes, citada por Mrech, 2005).
Freud (1933) destaca, na Conferência XXXIV, que é preciso que a educação iniba, proíba, reprima, mas ela disso se tem desincumbido em todas as épocas. Aprende-se também, com a psicanálise, que é precisamente essa repressão das pulsões que envolve o perigo de levar a uma doença neurótica. Assim, diz Freud (1933), a educação tem de escolher seu caminho entre o Cila da não interferência e o Caríbdis da frustração, entre o desejo e a lei, possibilidade e limite que podem abrir ao aluno as condições do humano. Deve-se descobrir um ponto ótimo que possibilite à educação atingir o máximo com o mínimo de dano. Será, portanto, uma questão de decidir quanto proibir, em que hora e por que meios.
Millot (1987), ao retomar os textos freudianos sobre a educação, demonstra a incompatibilidade entre esta e a psicanálise, atribuindo como única possibilidade de contribuição da psicanálise à educação, a análise pessoal de pais, professores ou até mesmo das crianças. Seus escritos trazem elementos importantes e pertinentes sobre os limites desta articulação e alertam sobre o equívoco da aplicação direta da teoria psicanalítica à prática educativa.
Para demonstrar tal impossibilidade de conexão entre psicanálise e educação, Legnani e Almeida (2002) referem que Millot (1987) apóia-se em três pilares: os ideais megalomaníacos das metas preventivas que, na tentativa de eliminar os conflitos psíquicos para conciliar o desenvolvimento da criança em direção à civilização com a manutenção de sua capacidade de ser feliz, mostram-se distantes da realidade da condição humana, marcada pela falta e pela angústia; o ideal de controle, que determina as ações educativas e o cotidiano escolar, no qual o inconsciente aparece como um intruso, por deslocar do registro do egóico a relação professor-aluno; e, por último, o ideal narcísico que percorre o objetivo educativo, com o qual o conceito de pulsão de morte esbarra de maneira inelutável. Psicanálise e educação divergem em concepção sobre o sujeito humano, ou seja, se opõem em estrutura. As metas pedagógicas ignoram a realidade da condição humana, de falta estrutural, nunca completa, e a psicanálise se constrói como um campo do conhecimento que estabelece uma ruptura epistemológica por apontar essa realidade.
A negação daquilo que marca o humano, aponta Almeida (2000, 2002), e que está presente nas metas educativas, repercute sob a forma de sintomas no cotidiano das salas de aula. Pode-se afirmar, junto com Millot, que não se pode conceber a criação de "pedagogias psicanalíticas." A psicanálise, na qual o sujeito é radicalmente dividido, não pode assimilar a proposta de uma inteligência emocional integradora e apaziguada, ou seja, o mal-estar na civilização não se resolve por meio de nenhuma prática educativa. Entretanto, o educador pode assumir a posição de um mestre não-todo, matizado, de certo modo, pela posição do analista.
Na educação, o conceito de ensino é associado ao que se sabe e se transmite de uma forma estruturada, ao aluno. Para a psicanálise, o conceito de ensino encontra-se associado àquilo que não se sabe e que não se pode saber, ou seja, o ensino em psicanálise se refere ao inconsciente e não se trata de uma proibição em relação ao saber e sim porque há um limite em relação a um tudo saber, introduzido pelo registro do real. Ensinar, portanto, se aproxima ao próprio circuito da análise, lidando sempre com as resistências. Em Lacan (1985) encontra-se a clara diferença entre ensino e teoria, sendo o ensino aquele que se abre e apresenta um furo diante do real, e a teoria tende a se fechar nela mesma. Lacan revela, então, que não há um saber completo, este sempre apresenta faltas, impasses, limites.
Aquilo que se transmite de maneira estruturada, o saber referencial, do Outro, é de fundamental importância, porém não se deve tomar esse saber do Outro como o saber do sujeito, é necessário que o sujeito faça uma elaboração do seu saber textual, ou seja, do seu saber singular (Mrech, 2005).
Alguns professores perdem a clareza da função que o saber ocupa em seu processo de transmissão, passando a fazê-lo de maneira mecânica, estereotipada, ocupando semblantes que lhes são atribuídos socialmente, ao invés de se interrogarem sobre seus próprios semblantes, encontrados a partir do ser da fala, do saber de si, da dúvida, das incertezas e das recusas diante do saber. Ao tornar mais evidentes os momentos de impasses, é possível reformular o saber, tomando-o como um saber com limites, um saber que não se sabe todo, de modo a que o sujeito possa ir além dos entraves colocados por seu saber consciente. O saber referencial – do Outro, necessita sempre do saber textual – do sujeito, do inconsciente. Daí a menor importância das técnicas de ensino, dos novos métodos, não bastando dominar os instrumentos. Lacan (1988) aponta que existem verdades sempre parciais, convicções culturalmente aceitas e compartilhadas e não a verdade. Assim, a educação escapa sempre do ideal de completude do Mestre-todo e do tudo-saber, não podendo nunca ser capturada pelas teorias e métodos pedagógicos e pelos ideais educativos.
Encontra-se em Lajonquière (1999) a interrogação sobre o impossível da educação: "de que impossibilidade se trata?" O autor afirma que "a impossibilidade apontada por Freud trata daquela embutida em todo ato que faz laço ou discurso, é certo que os resultados sempre serão insatisfatórios, carregando consigo sempre uma certa impossibilidade" (p.26). O saber todo é uma ilusão que a pedagogia propaga e na busca desse ideário assiste-se ao que Lajonquière define "como um inflacionamento das criações pedagógicas" (p.27), dos métodos, das teses preocupadas com a educação, enfim uma preocupação com todo o acessório que permeia o campo educativo, encobrindo o que de essencial deveria ser tratado. Para a psicanálise, aponta Lajonquière, educar é possibilitar uma filiação simbólica humanizante. A pedagogia moderna demitiu-se desta tarefa ao justificar suas ações educativas no naturalismo, ou seja, a relação adulto-criança passa a ser apenas parte de um processo de estimulação de capacidades maturacionais ou administração de cuidados, reduzindo assim sua oferta a um estímulo, renunciando em deixar marcas que fazem com que cada um se reconheça no outro, demitindo-se, assim, de transmitir a sabedoria das culturas através da filiação a uma tradição, negando aos pequenos a possibilidade de que venham a usufruir do desejo que os humaniza. O desejo, comenta Lajonquière, apenas se articula nos destinos da existência, uma vez que saber sobre o desejo – não possível – é o saber da impossibilidade, de saber não-sabido do desejo. Sendo assim, a transmissão acontece se o desejo de quem ensina suportar o desejo de saber daquele que aprende, deixando-se guiar pelo seu próprio desejo de saber. O ensino, então, pode ser pensado pela via de um saber que não se sabe.
Almeida (1998), interessada na leitura psicanalítica do campo pedagógico e educativo, assinala a possibilidade de relação entre a psicanálise e a educação, tomando como referência o assujeitamento de ambas às leis de funcionamento da ordem simbólica, enquanto condição de produção do sujeito e sua introdução no campo do desejo e da cultura.
Para Almeida (1999), a psicanálise pode ainda contribuir com o campo da educação apontando para a necessidade de reflexão sobre o ato educativo, de modo a levar a uma re-significação, a ser feita pelo professor, de sua atuação junto aos alunos. "Ao professor caberia refletir sobre os efeitos das metas idealizantes que permeiam o ato de educar, pois elas assim como negam a realidade do desejo, negam a criança como sujeito. O professor passa a ser reconhecido como o mediador principal entre o aluno e o objeto do conhecimento e assinala junto a este que esta mediação passa pela via da linguagem e da fala que é sempre endereçada a um Outro" (p.64).
O professor terá que se confrontar com a angústia de castração, que determina as suas modalidades discursivas e produzem diferentes efeitos no processo relacional de transmissão e aquisição do conhecimento. Para Almeida (1999, 2000), embora a divisão subjetiva do sujeito e o mal-estar na cultura apontem para o impossível da educação, enquanto ideal de perfeição narcísica, o ato educativo permite modificar o sujeito frente à castração, uma vez que educar implica em se deparar permanentemente com a alteridade e, portanto, com a diferença entre o aluno ideal e o aluno real, assim como entre o professor ideal, que consegue tudo ensinar, sem perdas, e o adulto concreto incapaz de atender às exigências que a imagem ideal lhe impõe.
Desidealizar os saberes, ou seja, dirigir-se ao saber como um Saber-não-Todo, permite o acesso do sujeito ao saber e a usufruí-lo em benefício próprio e do outro, como um verdadeiro prazer, ao invés do sintoma e do gozo.
Em Kupfer (2001), educar é a prática social discursiva responsável pela imersão da criança na linguagem, o que a torna capaz de produzir discurso, de dirigir-se ao outro, fazendo laço social. Portanto, o ato de educar é aquele através do qual o Outro primordial aparece para a criança, transformando-a em linguagem.
Quando o professor, em seu ofício, considera o sujeito, lhe oferece os objetos do mundo, aposta numa aprendizagem não garantida e saberá que as marcas deixadas por sua inscrição primária irão sempre modelar suas indagações. Portanto, afirma Kupfer (2001), "a psicanálise é útil para o educador e para o aluno" (p.126), permitindo ao educador, em contato com a teoria psicanalítica, levar em conta o sujeito, o que significa considerar a história singular de seu aluno, determinada pelo efeito de seu encontro com a linguagem, o que lhe fornece um estilo peculiar de aprender.
Estilo é um modo próprio de escrever, de falar, de se posicionar, "será a marca de um sujeito em sua singular maneira de enfrentar a impossibilidade de ser (Kupfer, 2001, p.129)". Estilo, portanto, é uma outra forma de falar sobre a luta infindável do sujeito para negar a falta, que ele faz com estilo próprio, carregando a marca de seu desejo.
Assim, ressalta Kupfer (2001), "um estilo cognitivo é a peculiar relação de um sujeito com um particular objeto, o conhecimento" (p.129). Essa relação sempre trará as marcas de seu estilo, como sujeito, na relação com o Outro.
O professor, então, oferecerá aos seus alunos o seu estilo de se relacionar com o objeto de conhecimento, ou seja, como esse conhecimento "distrai" a sua falta. O aluno o receberá e trabalhará, com seu estilo, marcado pelo estilo do professor. Para que isso ocorra é necessário que o professor não ocupe a posição de quem tudo sabe. Para que o aluno se constitua como sujeito pensante, o professor deve reconhecer-se castrado, um ser de falta, porém sem deixar sua posição de representante do conhecimento para que o aluno lhe suporte o saber, condição para que ocorra a ação educativa.
O professor, se for capaz de reconhecer aquilo que marca o humano, ou seja, a angústia, a falta, abandonará os pretendidos controles e os métodos eficientes que garantem tudo saber, e redimensionará seus métodos ponderando sobre a ilusão do controle na aprendizagem, sendo essas as condições para voltar o foco para a cultura e obtenção de qualquer satisfação pedagógica (Monteiro, 1999).
Para tanto, é necessário pensar em uma formação do educador onde mais do que técnicas e métodos pedagógicos lhe seja possibilitada a reflexão e a significação de sua ação educativa e de seus efeitos no desenvolvimento social, cultural e subjetivo de seus alunos (Legnani & Almeida, 2002).
Novos dispositivos na formação docente: desenvolvimento pessoal e profissional
A respeito de novas modalidades de formação de professores, Almeida (2003) aponta que "alguns dispositivos de ação têm se mostrado eficazes como ferramentas de mediação entre as teorias, os saberes oriundos das experiências do cotidiano, as indagações, inquietações e angústias que tomam os sujeitos implicados em uma parceria a ser construída no campo das práticas educativas" (p. 189).
Assim, os relatos escritos, em diversas modalidades, através de memórias educativas, diários de bordo, estudos de caso, histórias de vida, colocam em movimento o sujeito envolvido na formação docente, na medida em que esse assume o risco de se expor, de se convocar como sujeito, mobilizando uma parte obscura de sua história. "Como demonstrou Freud, o sujeito se constrói a partir de fragmentos de sua história, sendo assim, pode-se pensar que o relato contribui para a construção e consolidação da identidade profissional tanto quanto da identidade pessoal" (Almeida, 2003, p.191).
As histórias pessoais das experiências profissionais permitem fazer um inventário de experiências, saberes e competências profissionais, ao mesmo tempo em que recupera o sujeito a formar, a partir de suas experiências e lembranças do passado no presente, convertendo-se, portanto, em uma metodologia de formação. Não se trata de um enfoque individualista de formação, uma vez que a história de cada professor encontra-se sempre inserida em seus lugares de trabalho, sendo fértil que professores troquem conhecimentos entre si a bem da organização, onde a própria história da organização se constitua em um recurso da formação.
A elaboração de biografias de professores torna-se um exercício privilegiado de reflexão, com a intenção de, para além da pesquisa, contribuir para melhorar a própria prática, através de um processo de reflexão/introspecção, o que sempre pressupõe uma interpretação conjunta, entre formador e narrador, e uma posterior reconstrução dos modos de ser/fazer (Jobert, 1984, citado por Bolívar, 2002).
Procurou-se, então, no desenvolvimento desta pesquisa, discutir questões e aspectos considerados relevantes à prática docente e que pudessem ser incorporados à formação profissional de professores, de modo a possibilitar/facilitar uma relação ensino aprendizagem criativa e prazerosa.
A análise e a discussão das Memórias Educativas revelaram os efeitos das experiências de vida dos professores, incluindo as escolares, na sua prática pedagógica e evidenciaram a importância de uma formação apoiada no reconhecimento da subjetividade, no processo de reflexão sobre a práxis, na implicação dos professores na transmissão do conhecimento e no engajamento ético do sujeito no campo educativo. Temas como a relação transferencial professor-aluno, as identificações às figuras parentais e aos professores, como seus substitutos, os ideais parentais e suas "marcas" nos sujeitos, o ciclo de vida profissional e, ainda, o reconhecimento da subjetividade do professor na construção de sua identidade profissional e sua inclusão como dispositivo privilegiado de formação, compareceram de forma significativa na produção discursiva dos professores.
Neste sentido, o próprio processo de educação continuada, viabilizada no curso de extensão intitulado "Memória educativa e subjetividade: do imaginário ao simbólico", realizado em parceria UCB-UNB, do qual se retiraram os dados desta pesquisa, apontou para a necessidade e a importância da constituição de fóruns de formação onde o professor seja escutado e se escute, para que, implicado no seu processo de formação, possa refletir sobre sua prática, re-significá-la e transformá-la. Durante o curso, os alunos-professores tiveram a oportunidade de resgatar, pela memória, suas histórias de vida, suas experiências escolares, e de registrá-las endereçando-as a si mesmos e a um Outro, tornando o exercício da escrita um verdadeiro ato de formação. Ao longo do curso, seminários e encontros presenciais atuaram como facilitadores da reflexão e da elaboração dos relatos escritos. Dentre os dispositivos de formação utilizados no curso, as memórias educativas e os diários de bordo da prática pedagógica foram os de maior significado para os professores, que relataram sua "surpresa" face ao uso desses recursos na formação continuada, pois, na grande maioria das vezes, esta se configurava como "enxurradas de textos e palestras que buscam nos ensinar a ser professores, sem sequer saber o que já sabemos sobre nossa tarefa" (relato de uma das participantes do curso).
A surpresa relatada pelos alunos-professores talvez se deva a uma exigência de objetividade, de instrumentalização que tem orientado os cursos de formação docente, onde o que "ensina-se" ao professor é que ele deve buscar respostas profissionais às questões que aparecem no exercício de seu ofício, o que significa, nos aponta Blanchard-Laville (2005), "erradicar toda uma parte de si mesmos, e principalmente as emoções e os movimentos psíquicos internos que as situações profissionais fazem surgir" (p. 134). Reprimir tudo o que for subjetivo na relação com os alunos está relacionado às exigências de uma sociedade moderna que teme o diferente e seu potencial transformador.
Os alunos-professores que participaram desta pesquisa eram diferenciados no que se refere à formação inicial, pois eram alunos ou egressos do PIE (Curso de pedagogia para professores em exercício no início de escolarização), que tinha como princípio a "unidade dialógica entre prática e teoria, criando espaços de investigação sobre a vida complexa na sala de aula, com ênfase sobre o trabalho pedagógico do professor, o conhecimento, as relações sociais, a reflexão e a formação continuada do professor-aluno. (...) O PIE opta pela construção do porta-fólio com o objetivo de permitir a expressão das construções e das transformações que o professor-aluno vive na realização das ações previstas, com a vantagem de conter as reflexões e os registros materiais que se organizaram ao longo da própria experiência formativa" (UNB- PIE, 2003, p.15).
Ressalta-se a diferenciação dos participantes desta pesquisa porque durante o curso de extensão, do qual foram retirados os dados deste trabalho, pôde-se constatar a maneira como esses professores, reconhecendo o mal-estar inerente à tarefa educativa, assim mesmo e apesar das dificuldades, eram mobilizados a encontrar soluções que amenizassem o sofrimento e potencializassem as ações criativas. Fazia parte dessa busca o engajamento e a implicação em processos de formação continuada, a exemplo do curso de extensão que deu origem a este trabalho.
Cabe ressaltar, ainda, que se faz necessário que os fiadores desse dispositivo de formação possam, como afirma Blanchard-Laville (2005), ultrapassando o conforto narcísico de base, aceitar, escutar e entender o que dizem os professores, sem saber a priori o que irão dizer, escutando-os e entendendo-os sem nenhum juízo de valor e, portanto, sem complacência.
A esse respeito, Almeida (2002) refere como imprescindível o uso do dispositivo da escuta na formação de professores para que lhes seja possibilitada a criação ou (re)criação de um elenco próprio de significação acerca do ato educativo, ou seja, para que o professor possa atribuir novos sentidos à transmissão e à mediação do conhecimento, assim como se interrogar sobre os efeitos de sua prática no aprendizado dos seus alunos.
Conclui-se com uma citação de Almeida (1999) que se refere ao desafio do educador: "para que ele se preste ao exercício dessa função, será então, o de criação, no que esta comporta de atividade sublimatória, de uma nova estrutura discursiva, uma posição subjetiva que lhe permita dirigir-se ao Saber como um Saber-não-Todo, como um saber furado, tomando de empréstimo a posição do analista no que concerne ao Sujeito-suposto-saber. A transferência que se estabelece na relação professor-aluno coloca o professor na suposição de saber e faculta surgir no aluno o discurso histérico, único capaz de produzir saber e de revelar a verdade da castração do Mestre" (p.68).
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1. Este trabalho é uma versão, resumida e simplificada, da Dissertação de Mestrado em Psicologia, intitulada Histórias de Vida de professores e as marcas de um estilo: “educar – uma tarefa possível”, de autoria da primeira autora, sob a orientação da segunda, apresentada em 2006, na Universidade Católica de Brasília, com financiamento parcial da CAPES/UCB.