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On-line ISBN 978-85-60944-08-8

An 6 Col. LEPSI IP/FE-USP 2006

 

O que a psicanálise nos ensina, como transmiti-lo aos educadores?

 

 

William Amorim

William-amorim@uol.com.br

 

 


RESUMO

O artigo visa estabelecer, através da psicanálise, a diferença entre Ensino e Transmissão para discutir a formação do professor, um dos impasses da educação atual, a partir de uma outra lógica que não a do discurso pedagógico vigente.

Palavras-chave: Psicanálise; Educação; Transmissão.


 

 

Uma educação possível será aquela sem iluminados, sem
profetas, sem missão a cumprir. Quem estiver disponível
à sua prática, também deverá estar disposto a sair do
lugar da onipotência, para ocupar o lugar do claudicante.

Eliane Marta Teixeira Lopes

 

Atualmente a questão da formação do professor é praticamente uma obsessão no campo do discurso pedagógico que, de tão impotente frente à suas tarefas de educar e governar, credita grande responsabilidade do fracasso escolar à falta de consistência teórica do professor tanto em sua disciplina como, ou principalmente, em relação às teorias da aprendizagem. Assim, são ofertadas incessantemente aos professores desde teorias da aprendizagem e do desenvolvimento até tecnologias educacionais de ponta; uma enxurrada de informações teórico-didáticas que se crêem necessárias, imprescindíveis para ensinar o professor a ensinar. (Re)Vivemos um momento de grande furor em torno do educar o educador. Isso se estende também aos pais. Quem ainda não viu, na TV, a tal da Super Nanny dando "instruções precisas" de como pais devem educar seus filhos. Quem de nós ainda não se deparou com estratégicos outdoors, de escolas da Rede Privada de Ensino, anunciando em letras gigantes: "Escola é também lugar para os pais aprenderem a educar seus filhos"? Coisa típica de um mercado expert em produzir demandas, certamente. Mas também não haveria aí nessa oferta, um certo resquício ou saudosismo higienista?

Fala-se exaustivamente hoje em formação continuada de professores, mas não é infreqüente escutarmos também outras designações bastante significativas aos ouvidos atentos de um psicanalista: capacitação para professores ou reciclagem de professores. Ora, capacitar remete imediatamente a algo ou alguém incapaz de e reciclar está semanticamente muito ligado à idéia de lixo. A própria denominação formação continuada já é bastante curiosa. As palavras traem o sujeito: sempre dizem muito mais do que se quis ou se pretendeu dizer. Talvez tudo isso diga muito dos semblantes mais corriqueiros destinados ao professor na contemporaneidade. Se o ato falho é um ato bem sucedido porque revela a verdade do sujeito, o mesmo vale para o chiste que, como aquele, também é uma das formações do inconsciente. Assim, parece-nos oportuno recorrer a uma situação espirituosa que nos foi contada pelo Psicanalista e Professor Dr. Rinaldo Voltolini, do Instituto de Educação da USP: a de ter encontrado um professor que logo após uma onda de seqüestros relâmpagos, em São Paulo, portava na camisa a seguinte inscrição: "Não me seqüestre, sou professor".

Tomado do lugar de desprestígio e de ignorância crassa, é daí que o professor parece responder, ao demandar insistentemente aos pedagogos, psicopedagogos, psicólogos etc, como ensinar, como exercer seu ofício. Alienado aos significantes dos especialistas/mestres, o professor encontra-se despossuído de seu ato, não pode falar em nome próprio. Sem saber, segue reproduzindo essa relação alienante com seus alunos tomados como objeto tanto quanto ele.

As teorias não são inocentes, principalmente quando seu objeto de trabalho é o ser humano. Os conceitos com que trabalhamos são nossas ferramentas teóricas para transformarmos a realidade. Nesse sentido, os nossos posicionamentos e intervenções frente a uma determinada situação ou determinado fato, vão depender das idéias e concepções teóricas que fundamentam nossa prática. Afinal, é impossível falar de um lugar não ideológico, não é mesmo?

A psicanálise e os psicanalistas têm sido convocados, com freqüência, a explicar, ao lado da sociologia, da psicologia e de outras ciências, as razões do fracasso escolar, da indisciplina e dos impasses vividos na inclusão escolar. Mas, a essa demanda o campo analítico não responde senão interpelando, colocando novas questões, interpretando – como, de fato, é sua função – as conseqüências ou os efeitos do modo cientificista de enfrentamento destes e de outros impasses do mundo contemporâneo.

A clínica com crianças e adolescentes coloca o analista em freqüente contato com o campo educacional. No caso de crianças autistas e psicóticas, por exemplo, esse contato é ainda mais estreito, posto que a parceria do professor é salutar para a direção do tratamento com estes sujeitos.

Assim, nosso contato profissional com o professor iniciou-se pela clínica e, posteriormente, pelas demandas de palestras, seminários em eventos universitários, semanas pedagógicas, bem como cursos sobre autismo e psicoses infantis para educadores de escolas públicas e APAES.

É somente ouvindo as demandas que se pode saber o que realmente está sendo endereçado e, no caso do psicanalista, responder de outro lugar que não aquele esperado. Normalmente, a demanda é de que sejamos mais uma teoria da aprendizagem, que produzamos significantes capazes de tamponar a falta de saber o que fazer com os alunos que teimam em se distinguir daqueles difundidos pelo discurso (psico) pedagógico, ou que aplaquemos sua angústia frente aos sujeitos neuróticos com inibição intelectual ou que lhe forneçamos a chave de como funcionam as crianças autistas e psicóticas, para que se encaixem ou se adaptem aos ideais sociais. Se respondermos desse lugar sedutor, de mestre absoluto, identificados com o saber que transmitimos, isto é, colocando-nos como detendo ou sendo o saber, condenamos o outro, o aluno/professor a nada criar, a não subjetivar o aprendido e, portanto, a não se discriminar, se diferenciar do mestre não-barrado. Claro que, para causar desejo de aprender no outro é preciso fazer semblante de mestre, de ideal-do-eu para o aluno, mas sabendo-nos um mestre castrado, faltoso, mestre não-todo. Tal postura depende de uma posição subjetiva de quem está ocupando o lugar de ensinante. Parece-nos que o difícil mesmo não é ser mestre, mas sim resistir à tentação de encarná-lo.

Advertidos pela psicanálise, inclusive de que a transmissão somente ocorre mediada pela transferência, o que nos propomos nesse lugar de ensino para os professores é ser justamente um mestre regulado pelo discurso analítico, apostando que o efeito da transmissão da falta, de um enigma, produza efeito de formação no professor e que, assim, ele possa, por sua vez, seguir ensinando um saber vivo e não letra morta, condição para que seus alunos tenham o que transmitir aos que vierem ao mundo depois deles, quer filhos ou alunos.

Podemos então afirmar que ensino para a psicanálise tem uma dimensão de transmissão para além de um mero "ato de oferecer saber teórico . (...) não é pura demonstração do saber formal e dos conhecimentos acumulados pelo professor" (GUZIERRA: 2003, p.85). Pelo contrário, trata-se de um ensino que não se sustenta na ilusão de elidir o abismo existente entre saber e verdade.

Em um texto de 1914, A história do movimento psicanalítico, fazendo referência a seus mestres, diz Freud: "Eles me transmitiram um conhecimento que, a rigor, não possuíam" (p. 23). Temos aí uma bela e clara demonstração do modo como o pai da psicanálise pensava o ensino, as sutis nuances em torno da relação professor/aluno e suas implicações na produção ou não de conhecimentos pelo aluno. Tudo isso porque a transmissão, para ele, "não é de um conhecimento: é de algo que toca o sujeito e o compele a produzir um saber segundo a forma pela qual é sustentado o ato de ensinar" (FERREIRA, 2001, p. 138). Nesse sentido, podemos dizer que a transmissão comporta um não-saber, pois nunca sabemos o que transmitimos ao outro. Dito de um outro modo, sempre transmitimos algo que não sabemos que sabemos, afinal o inconsciente opera tanto no professor como no aluno.

Acreditando nisso, recorremos à poeta mineira Adélia Prado (Poesia Reunida, 1999, p. 118) para, melhor do que qualquer teoria, nos ilustrar a sutil e essencial diferença entre ensino e transmissão. Diz ela em seu belo Ensinamento:

Minha mãe achava estudo
a coisa mais fina do mundo.
Não é.
A coisa mais fina do mundo é o sentimento.
Aquele dia de noite, o pai fazia serão,
ela falou comigo:
‘Coitado, até essa hora no serviço pesado’.
Arrumou pão e café, deixou tacho no fogo
com água quente.
Não me falou em amor.
Essa palavra de luxo.

O que, sem saber, transmite essa mãe? Entre outras coisas, que a parentalidade é efeito da conjugalidade; que não é toda-mãe; transmite o que é ser mulher para um homem; o que é o bem querer do outro amado. Enfim, transmite o fundamental: a lei do desejo para sua prole (SOUSA, 2005, p. 5-6).

É exatamente por desconsiderar os efeitos do inconsciente na prática educativa, porque ancorada em pressupostos psicológicos, que a educação tem tomado, cada vez mais, os problemas de aprendizagem como patológicos e não como algo próprio à estrutura do sujeito, ou seja, ao seu modo ambivalente de relacionar-se com o saber. Com Freud, aprendemos "que há uma (in) ‘disposição’ estrutural que impede o sujeito de relacionar-se com determinados conteúdos (...) Há lugar para uma certa recusa de saber que muitas vezes se dá à revelia do sujeito e isso não constitui seu fracasso, mas um recurso frente ao insuportável de saber. Há um saber que trabalha no sujeito e que o sujeito nada sabe desse saber. No intimismo da relação do sujeito ao saber, algo pode escapar-lhe. Algo que toca o desejo, o objeto do desejo e surge como proibição de saber. (...) Assim, o acesso ao saber, a apropriação, a invenção, os investimentos são entendidos como particulares" (FERREIRA,op.cit., p.141).

Dito isto, voltemos então a tal formação continuada dos professores. A presença da psicanálise no mundo, desde sempre, nos obriga a redefinirmos nossa relação com o saber. Parece-nos legítimo, então, afirmar, pelo que dissemos até aqui, que todo ensino que não leve em consideração a dupla face do saber, de prazer e de horror, para o sujeito, estará fadado ao fracasso. Esses projetos de formação continuada, do modo como são concebidos, isto é, baseados num processo de transmissão regido exclusivamente pela teoria da comunicação ou da informação, longe de promoverem efeitos formativos, produzem apenas efeitos informativos, uma vez que a primazia de informações teóricas de ponta mata a possibilidade do professor falar de seu savoir-faire, daquilo que sua experiência lhe confere. Talvez isso nos ajude a compreender melhor aquilo que, não raro, temos encontrado no trabalho com professores, a saber, uma certa indisponibilidade para o novo, para aquilo que pode abalar as consistências imaginárias ou clichês no campo da educação. Se nenhum saber é anódino para o sujeito, o que dizer então de uma teoria, a psicanalítica, que nos remete imediatamente às questões do ser? No caso dos professores, percebemos uma angústia com inúmeros matizes.

Entretanto, se puderem admitir pensar o ensino pela via de um saber que não se sabe, concluiriam, sobre o que se passa no ato de ensinar, "primeiro, que a constituição do saber por um aluno tem vicissitudes que aquele que ensina ignora. Depois, a de que a transmissão pode acontecer sem uma mediação do saber e na presença-ausência, por assim dizer, daquele que ensina, no vazio que ele deixa, para que o desejo de saber se instaure no outro. Na possibilidade do aluno operar uma dessuposição de saber naquele que ensina. O efeito produzido por aquele que ensina escapa-lhe, posto que existe um saber do qual o sujeito nada sabe e, mesmo sendo desconhecido e estranho ao sujeito, pode sustentar o desejo tanto de saber quanto de ensinar. A transmissão vai acontecer se o desejo daquele que ensina suporta o desejo de saber do aprendiz, deixando-se guiar pelo seu próprio desejo de saber" (idem, p. 144).

Parece-nos, por fim, que tentar transmitir aos educadores o que a psicanálise nos ensina, menos que uma questão de instrumentalizá-los com conceitos psicanalíticos, talvez seja um modo de devolver-lhes a autoridade e a crença no seu savoir-faire conforme nos atesta a tradição.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BACHA, Márcia Neder. Psicanálise & educação: laços refeitos. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2003.

FERREIRA, Tânia. Freud e o ato do ensino, in LOPES, Eliane Marta Teixeira (org.) A psicanálise escuta a educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2001, p. 107 – 149.

FREUD, Sigmund. A história do movimento psicanalítico (1914), in Obras completas, v.XIV, Rio de Janeiro: Imago,1996.

LAJONQUIÈRE, Leandro et KUPFER, Cristina (orgs.). A psicanálise, a educação e os impasses da subjetivação no mundo moderno. Anais do II colóquio do lugar de vida/lepsi. São Paulo: USP, 2000.

LOPES, Eliane Marta Teixeira (org.) A psicanálise escuta a educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2001.

MACHADO, Adriana Marcondes et SOUZA, Marilene Proença Rebello de (orgs). Psicologia escolar: em busca de novos rumos. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004.

MRECH, Leny Magalhães (org.) O impacto da psicanálise na educação. São Paulo: Avercamp, 2005.

PRADO, Adélia. Poesia reunida. São Paulo: Siciliano, 1999.

SOUSA, William Amorim de. Pode a educação ser terapêutica? São Luís, 2005 (mimeo).