6O que a psicanálise nos ensina, como transmiti-lo aos educadores?Reflexões acerca do tratamento e escolarização de crianças psicóticas author indexsubject indexsearch form
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On-line ISBN 978-85-60944-08-8

An 6 Col. LEPSI IP/FE-USP 2006

 

Entre os sons e os sentidos: quando o simbólico falta

 

 

Ângela Vorcaro; Camila Gama; Júnia Penido Monteiro; Thalita Amado Oliveira

 

 


RESUMO

Este trabalho surge a partir do atendimento de uma criança de cinco anos com traços autísticos que não se envolve no laço social1. Objetiva-se aqui reunir conceitos sobre a origem da socialização infantil mediante o impacto dos ambientes familiar e cultural e os acarretamentos da inconsistência destes. Para isso, problematiza-se o caso à luz das formulações de autores de referência psicanalítica, a saber, Winnicott e Bergès-Balbo.

Palavras-chave: identificação, holding, transitivismo


 

 

A clínica

A criança, Pépi, não era capaz de responder a expectativas sociais mais simples. A transposição da criança ao quadro diagnóstico de autismo pareceu uma tradução insuficiente. Optamos por distingui-la como uma criança única, considerando sua história de vida e suas peculiaridades na relação com o outro.

É suposto que Pépi tenha vivido de modo desastroso o movimento de tornar-se independente. Sabe-se que nos primeiros meses de vida ele teve que dividir a atenção da mãe, Ana, pois além de ter dois irmãos mais velhos e de sua mãe estar muito mobilizada com a doença da avó, a família processava uma mudança de ocupação profissional e de cidade para uma fazenda-escola com 30 adolescentes sob sua responsabilidade. A mãe relata ainda, que Pépi ficava sob os cuidados de uma babá adolescente que geralmente o deixava diante da televisão. Hoje, Ana não é capaz de recrutar sua lembrança sobre a relação que estabelecia com a criança nesse período. Apenas refere que ele "era muito bonzinho e não reclamava de nada". Ela dava-se por satisfeita: "quando ele era bebê e andava (desde os dez meses), pegava o que queria e não tinha nenhum problema motor". Não supôs que ele precisasse de mais para tornar-se um sujeito.

Aos dois anos a avó paterna localiza uma estranheza ao fato da criança não chorar, não prestar atenção aos outros e não falar.

Estamos hoje diante de uma criança que por várias vezes exibe manifestações em que exclui ativamente o outro. No entanto, algumas vezes fomos surpreendidos por manifestações de apelo dirigido ao outro, tais como choro quando a mãe sai da sala em que se encontram ou o oferecimento de um brinquedo à terapeuta.

Pépi é seletivo em relação aos alimentos. Produz artimanhas para evitar o que não quer. Ana afirma que consegue enganá-lo fazendo bolinhos mais nutritivos contendo alimentos que ele não comeria.

A criança serve-se muito do recurso visual para controlar o espaço a sua volta e despistar sua intenção. Assim, no momento em que um brinquedo lhe é negado, ele vira-se de costas como se tivesse desistido e sorrateiramente coloca a mão para trás, capturando o que lhe interessa. Sua motricidade eficiente apresenta-se em geral voltada para classificar e separar cores, números, formas, eleger objetos e excluir-se da relação com o outro.

Desde o início do atendimento clínico a criança emite vários sons enquanto brinca, embora articule poucas palavras. Tais sons parecem reproduzir ruídos do ambiente e os que ele provoca ao manipular objetos. Esse tipo de sonoridade produzido pela criança não faz parte do espectro de fonemas da língua portuguesa.

Percebe-se nas sessões que Pépi permite mais a entrada do outro no jogo quando uma música ou um ritmo é associado. Repete movimentos, palavras, manifesta contentamento e movimenta o corpo deixando ressoar em si os elementos rítmicos. Regozija-se, junto à terapeuta ao brincar com ritmos, intensidades e sons batendo em objetos distintos e entoando melodias. Demonstra preferência por freqüências extremas (aguda ou grave), diálogo tônico-corporal e exageros prosódicos próprios ao "manhês". Nesses momentos, seu olhar de soslaio é substituído pelo olhar direto, acrescido de uma expressão de pactuação.

Sempre que parece se envolver muito no jogo, reage com manifestações de protestos, tapando os próprios ouvidos ou a boca da terapeuta.

Manifesta quando está sujo ou com fome, sem, entretanto, convocar a atenção do outro diretamente para o que lhe causa mal estar. Geralmente não fica doente e nunca reclama de dor ao cair ou ao ser atingido. Esse fato de não queixar a dor como algo ruim diz da sua condição de sujeito distante da cultura.

Ao final das sessões responde algumas vezes ao abraço oferecido pelo outro, virando-se de costas para recebê-lo. Nesses momentos, seus comportamentos parecem ser amparados pela mãe.

No curso dos atendimentos, houve a oportunidade de estreitarmos a relação somente com a mãe. Na única sessão a que compareceu, o pai apresentou comportamento e fala aparentemente bem articulados, mostrando-se consciente da situação. Afirmou que, embora veja as dificuldades do filho, lhe atribui um saber. Salienta que Pépi constrói estratégias para conseguir o que quer mesmo sob a interdição do outro: "quando quer pegar um biscoito que lhe foi proibido, espera o desvio da atenção do adulto para pegá-lo".

Durante as sessões, a mãe parecia extremamente interessada e engajada no tratamento do filho, oferecendo inúmeras informações sobre sua história e estilo de vida, ainda que com importantes lacunas. Toda essa disponibilidade teve por conseqüência uma espécie de "sedução" das terapeutas.

Ana aponta alguns comportamentos e preferências de Pépi, que ela identifica aos seus próprios. Sua formação em medicina veterinária é reproduzida pelo menino por meio do grande interesse por livros científicos de zoologia e animais. Ademais, afirma: "quando estou irritada ele fica nervoso". Revela assim uma relação indiferenciada em que um é a extensão do outro.

Em alguns momentos observa-se o forte vínculo mãe-filho. A começar pela dificuldade dela em separar-se dele para a sessão. Este mesmo movimento é reafirmado por ela ao falar sobre sua dificuldade em desmamar os filhos, temendo que fiquem independentes: "gosto que precisem de mim.".

Deve-se dizer também que por vezes Ana e Pépi interagem de maneira bem afinada, sustentados por jogos musicais e corporais, apesar da dificuldade lingüística do menino. Quando brincam assim, Ana isola-se no laço com ele, excluindo possibilidades de participação da terapeuta e de alusões a outras pessoas. Entretanto, só o suporte da fala e dos brinquedos sem o contato físico ou rítmico é insuficiente para manter o laço.

Cabe considerar que apesar de haverem jogos corporais elaborados entre mãe e filho, estes são geralmente acompanhados de uma linguagem paradoxal cuja significação não encontra ressonância no corpo da criança. Assim, num jogo em que a mãe envolve muito a criança, o refrão "chorou" é sincronizado ao ato de fazer cócegas e rir. Quando está chegando ao último verso, ele já sorri, sabendo que vai ganhar cócegas. As palavras "Só quis" são pronunciadas devagar com as mãos da mãe para o alto, preparando para as cócegas que virão de uma vez com o "chorar" que é entoado mais agudo.

Ao brincar com o filho diante de um observador, sua preocupação em mostrar o mundo íntimo dos dois prevalece sobre a relevância do jogo que pode ser constituído com Pépi. Devido a sua referência no saber do observador, a que tenta corresponder, afasta-se da consideração de aspectos importantes do jogo da criança, que se esvai.

Além dessa contradição recorrente, interessa notar a semelhança do movimento materno de conter o filho em seu corpo diante do investimento do terapeuta e uma sistemática manifestação de Pépi: em todas as sessões realizadas ele também cerca os brinquedos com os braços assegurando-se de que ninguém se apropriará de algum.

A dubiedade da relação mãe-filho configura-se da seguinte forma: se em alguns momentos nota-se forte aderência dos corpos e mesmo a presença de jogos corporais organizados, em outras situações nenhum acolhimento é feito ao discurso lúdico-motor do outro – funcionam isoladamente.

Ana não acredita na capacidade de seu filho para compreender o discurso verbal. Diz: "Às vezes acho que não adianta falar com ele. Você acha que ele entende?" E efetivamente Pépi apresenta suas demandas por meio de uma realização motora: quando quer algo que não alcança, dirige a mão dela ao objeto, em vez de dirigir-se a ela.

Ela compete com ele na brincadeira e, em vez de colocar-se num lugar complementar ao dele, mantém um jogo espelhado, mas paralelo, sem acolhimento ou sem dar extensão aos movimentos que ele faz. Anula o filho ao desprezar as manifestações deste. Ao anulá-lo, funde-se a ele.

A substituição do filho pela mãe também se manifesta nos momentos em que ela toma o espaço da análise para si, atraindo a terapeuta com perguntas e informações, provocando a dispersão do foco, a criança. Interessa notar que nesses momentos a criança aumenta seu tom de voz permitindo supor tanto que ela é trazida à posição de falante ao perceber a fala da mãe, quanto à manifestação de um protesto pela intromissão da mãe, pois afinal esta se serve dele para se introduzir. De todo modo, não se pode negligenciar o valor subjetivo da criança que se manifesta aí.

Os jogos estabelecidos entre mãe e criança são unilaterais por partirem sempre de um deles para outro que não responde (um não se insere no jogo do outro), mas são especulares porque Ana cria, inventa Pépi na posição de excluído. Afinal Pépi reproduz a mesma modalidade de jogo de sua mãe ao posicionar-se em exclusão ao contato com o outro e ainda ao evitá-lo quando este tenta se introduzir.

Ana quer ler o filho em outro lugar, que não nele mesmo. Não busca sua singularidade, não dá atenção ao detalhe. Olha para a criança como se fosse um bichinho. Quer reconhecê-lo em algum tratado médico e que algum especialista lhe diga quem é seu filho. Interessa notar que alguns insights aparecem, por vezes, no seu discurso. Ana conta que Pépi suja as paredes da casa com coco, como se a intencionalidade da criança pudesse ser assim atestada. Ela tem certeza, nesse momento, que ele quer sujar. Entretanto, sob as observações do marido, Ana começa a emitir uma nova hipótese: talvez ele almejasse "desprender-se das fezes com as mãos, limpando-as a seguir nas paredes". Ana parece, portanto, capaz de distanciar-se do filho para reconhecer que talvez a impressão que ele causa nela não coincida com o que manifesta.

Entretanto, é nesse mesmo movimento que todo interesse e participação de Ana no tratamento começam a esmorecer, mesmo que reafirme constantemente sua avaliação positiva do tratamento. Começa a atrasar-se para as sessões ou mesmo a ausentar-se, alternadamente. Em quase todas essas ocasiões, ela telefona para a terapeuta, apresenta uma justificativa sempre externa ao seu controle e solicita encarecidamente que seja aguardada ou que um novo horário seja agendado. O mais curioso é que ela faz promessas compensatórias das faltas que comete, comprometendo-se a trazer para a sessão seguinte elementos que sem dúvidas facilitariam o tratamento do filho, tais como: fotos antigas, filmes caseiros, participação do marido, presença da antiga babá, proposta de mudança para Belo Horizonte e interrupção de suas atividades laborais para ficar com a criança. Na maior parte das vezes, ela não cumpre a promessa anunciada e nem toca mais no assunto.

Ana tem grande dificuldade em organizar seu cotidiano. Perdida entre as demandas dos cinco filhos e do trabalho, dificilmente consegue respeitar horários escolares, manter cuidados básicos de higiene, de bem estar, e mesmo alimentares seus e dos filhos. Muitas vezes trouxe o filho com a fralda suja, sem alimentar-se ou com o alimento à mão, justificando-se diante da surpresa do outro: "não deu tempo...". Ela entende a necessidade de cuidados materiais, mas não simbólicos.

Considerando outros movimentos da mãe em relação a escolas e profissionais já consultados, movimentos estes sempre acionados por terceiros, constata-se que a mãe oferece o filho a tratamento, o leva a toda a sorte de profissionais, mas logo se mostra insatisfeita, cortando a possibilidade de manutenção dos laços sociais. Isso indica que ela estabelece sua relação com o filho a partir da cobiça do outro – o contém e o protege caso haja outro que o deseja, que ameaça seu controle, seu saber, seu afeto com a criança.

Observa-se grande mudança na criança desde o início de sua freqüência à escola e ao tratamento. Passou a suportar a presença de outras pessoas em casa, brincar com bonecos antes invisíveis a seus olhos, balbuciar, repetir fragmentos de enunciados dos outros, localizar-se e manifestar preferências pelos colegas de sala, etc.

Vale considerar também sua capacidade de aguardar, com expectativa, o movimento lúdico do outro que ainda lhe será dirigido. Estas configurações implicam uma noção de organização temporal e espacial, posto que articula seus atos em função de uma posterioridade. Afinal, estratégias e expectativas convocam necessariamente planejamento e antecipação, elementos necessários à representação.

 

O desenvolvimento psíquico infantil e o processo de autonomia na cultura

De acordo com o que pressupõe Winnicott sobre o desenvolvimento infantil, a evolução mental de uma criança tem início no começo de sua vida. Trata-se da trajetória numa transição gradual da fase de dependência absoluta, passando pela dependência relativa para se alcançar uma fase rumo à independência. Essa trajetória é fundamental para o alcance da organização da percepção eu/não-eu, possibilitando uma diferenciação do que é interno à criança e do que lhe é externo. Esse processo irá embasar a inserção da criança na cultura. A mãe, nesse momento, é essencial ao desenvolvimento psíquico e emocional do bebê. Necessariamente, ela precisará ser "suficientemente boa" para transmitir uma concepção não idealizada da função materna que será favorável ao bebê enquanto este aparece como dependente absoluto. No momento em que a mãe identifica-se com o seu bebê, se colocando na situação deste, é capaz de adaptar se às necessidades dele e criar o ambiente-holding. Esse ambiente é o suporte que ampara e protege o bebê frente a todo tipo de agressão e ainda, implica uma relação de confiança entre mãe-bebê. A partir daí, o bebê identifica-se com a mãe e torna-se capaz de reagir às posteriores exigências dela e do meio ambiente (Cf. Winnicott, 1994:77).

Na relação mãe-bebê, a primeira pode retroceder às formas de experiência infantil, mas o segundo não consegue apresentar a sofisticação do adulto. Desse modo, cabe à mãe falar com seu bebê numa linguagem maternante: "não é exatamente o que ela diz, mas como ela diz" (Winnicott, 1994:85).

As contribuições winnicottianas sobre o processo de desvinculação mãe-bebê e o processo de percepção da realidade do bebê, exigem discernir o modo pelo qual a criança constrói a concepção de objeto. A primeira percepção do bebê sobre o objeto externo se dá subjetivamente, rodeado de ilusão sem a separação do interno. Ele precisará de um ambiente favorável (um holding adequado) e um objeto transicional, que possam sustentar o momento de ilusão vivenciado durante a separação do objeto de desejo, a mãe, substituindo-o. Esse objeto transicional será a via que sustentará a organização do self2 da criança. Mais adiante, será a partir da utilização do objeto transicional, num movimento de usar para perceber, que gradualmente a criança irá diferenciar a realidade interna daquilo que lhe é exterior3.

Constatamos em Pépi uma impossibilidade de vivenciar esses processos de inserção na cultura e de organização saudável do self, visto o modo pelo qual se passa o holding materno criado por Ana, o qual poderíamos supor distante de ser o "suficientemente bom" necessário à autonomia da criança.

A formação deste ambiente-holding pelo qual a criança operará a passagem de uma indiscernibilidade para uma diferenciação, referida por Winnicott, foi investigada por Bergès e Balbo, partindo de teorizações lacanianas. Os autores analisaram a especificidade das identificações estabelecidas entre mãe e filho. Consideram as implicações da entrada da criança na cultura por meio dos jogos de posições estabelecidos entre a mãe e a criança que implantam uma linguagem. Neste percurso rumo à diferenciação, os jogos identificatórios transitivistas fornecem suas condições de possibilidade.

A identificação transitivista entre a mãe e a criança remonta à identificação primordial apontada por Freud (1921/1986) como identificação por incorporação. Nela podemos localizar a lógica constitutiva do bebê e ainda diferenciá-la da identificação histérica, também abordada por Freud (1921/1986). A operação transitivista pressupõe uma dupla negação, ou seja, a mãe toma a posição da criança para fazer uma hipótese acerca do que se passa com ela (ou, como diz Winnicott, a mãe identifica-se à criança); e a criança, na medida em que se submete à representação simbólica oferecida por sua mãe para expressar o real que a afeta, também ocupa o lugar da mãe, identificando-se simbolicamente a ela. Por exemplo, a mãe olhando para o bebê, diz: "Ai que fria mamãe!" e o agasalha. A mãe, nesse momento, não sente frio, mas observando o filho supõe que seja isso o que se passa com ele. Assim, o bebê vai se introduzindo na linguagem, pois a mãe nomeou para ele aquilo que o afetava. Isso constitui um golpe de força, uma vez que, independentemente de como a mãe nomeia o real da criança, ela o faz de forma incompleta, tentando assim delimitar o que foi experimentado, que é indizível.

Enquanto a identificação histérica é imaginária e refere-se a uma apropriação de sintomas, já que a mãe diz em nome do filho seus próprios estados interiores, o transitivismo é uma identificação simbólica. Ele coloca em jogo um mecanismo contrário ao da identificação histérica. É literalmente uma identificação em que se identifica o discurso da mãe de modo ativo em um movimento de incorporação4. Afinal, interessa que o corpo experienciou algo.

Além de ser o que a mãe experiencia e demonstra, o transitivismo é também esse processo que ela introduz quando se dirige ao seu filho fazendo a hipótese de um saber nele. É em torno desse saber suposto nele que o filho lhe faz demandas, numa identificação ao discurso que a mãe lhe dirige. Necessariamente esta operação passa pelo corpo, que está envolvido em algo vivido que o afeta. O corpo é o lugar de receptação através do qual o mundo toma forma e consistência para a criança. Esse acesso ao simbólico, concerne ao corpo, na medida em que ele é corpo de linguagem. Com o discurso transitivista, a mãe força o filho a se integrar ao simbólico; ela o obriga a levar em conta os afetos que ela nomeia para designar as experiências dele em referência às suas próprias. Ela o constrange a limitar suas experiências, a avaliar o que ele experimentou em referência ao masoquismo dela. Nesse golpe de força a mãe nega o real experimentado pelo filho para forçá-lo a fazer a experiência. O filho vai experimentar realmente, num efeito de espelho, o que foi suposto pela mãe como o que ele deve experienciar5.

Interrogamos então, a partir do caso de Pépi, o esgarçamento da interação mãe-bebê. Nessa circunstância, uma ameaça ao sentimento de existência da criança provoca uma angústia exacerbada e configura risco a sua capacidade de vir a ser. São nos empecilhos à identificação simbólica que podemos constatar a manifestação desse risco.

Podemos traduzir a modalidade de interação materna como uma identificação histérica em que, portanto, o transitivismo não chega a se consolidar. Afinal pode-se constatar que a mãe diz, em nome do filho, seus próprios estados interiores. Não apenas porque dá o nervosismo para ele quando o nervosismo é dela, ou porque afirma uma certeza sobre ele sem antes ir até o jogo dele. Mais que isso, Ana desconsidera completamente os afetos que Pépi experiencia no corpo. Não é por acaso que ela entenda como intencional a sujeira das paredes, na medida em que isso a afeta, em vez de considerar a hipótese de um desconforto da criança que precede a tentativa de limpar-se, posição em que poderia situar um saber da criança. Nas ocasiões em que se oferece como paciente, impondo suas questões e sobrepondo-se à construção de um jogo, ela embaça a presença da criança, invadindo-a. Desprezando o saber do filho, e ocupando o lugar que ele ocupa, acaba por trazê-lo como sua extensão. Convicta de seu próprio saber, não faz hipóteses que descompletariam sua onipotência assim configurando um lugar em que ele pudesse comparecer.

De que ordem seria então o vínculo que os ata? Ficaria restrito a ordem de um gozo acéfalo? A criança entrega-se passivamente às manipulações e aos aconchegos do corpo materno como um apêndice.

Assim, posicionado como objeto, Pépi faz as vezes de objeto transicional materno. É através do filho que a mãe se manifesta. É por meio do investimento do outro dirigido ao filho que ela pode localizar sua posse – o filho, interpondo-se não apenas para reintegrá-lo, como também para tomar, para si, o que é endereçado a ele, reintegrando-se também ao campo social.

A identificação histérica da mãe com o filho é insuficiente para o estabelecimento do holding necessário ao vir a ser da criança. Verifica-se que a criança reage dentro da lógica da mãe. Ele engana como a mãe, sente o que ela sente sem distanciamento, gosta do que ela gosta, etc. Tudo isso comprovando a relação fundida e a falta de espaço para o surgimento de um eu da criança distinto do eu materno.

Como então é possível que um eu próprio seja constituído se há uma fusão, se a criança encontra-se à mercê de sua mãe, numa alienação completa?

Na clínica poder-se-ia tentar uma infiltração maior do terapeuta no cotidiano da criança, a fim de aumentar o tempo de constância de uma relação propriamente simbólica. Para isso poder-se-ia tentar maior número de atendimentos ou maior tempo das sessões.

 

Referências Bibliográficas

Bergès, J. e Balbo, G. (2002). Jogo de posições da mãe e da criança, ensaio sobre o transitivismo, Porto Alegre: CMC.

Freud, S., (1921/ 1986), Psicologia de grupo e análise do ego, Rio de Janeiro: Imago.

Klautau, Perla (2002). O conceito de objeto na obra de Winnicott. In: Encontros e desencontros entre Winnicott e Lacan. São Paulo: Escuta.

Winnicott, D. W. (1994). A dependência dos cuidados infantis. In Os bebês e suas mães. São Paulo: Martins Fontes.

_____ (1994). A comunicação entre o bebê e a mãe e entre a mãe e o bebê: convergências e divergências. In: Os bebês e suas mães. São Paulo: Martins Fontes.

_____ (1975). O brincar e a realidade, Rio de Janeiro:Imago

 

 

1 O atendimento foi iniciado a partir de uma demanda da diretora e da coordenadora pedagógica da escola da criança, que tiveram uma via de acesso mais direta à universidade, com a anuência de sua mãe. Sentindo-se despreparadas para atender as especificidades da criança, tais profissionais procuraram o Serviço de Psicologia Aplicada da UFMG, que ofereceu o atendimento assim que solicitado. O atendimento ficou configurado da seguinte maneira: sessões do menino, individuais ou na presença de sua mãe, com uma terapeuta e duas observadoras, e sessões quinzenais individuais da mãe com a supervisora, para coletar mais informações e oferecê-la orientações
2 "Para Winnicott, o termo self apresenta-se essencialmente como uma descrição psicológica de como o indivíduo se sente subjetivamente, sendo o sentir-se real o que coloca no centro do sentimento do self." (cf. Jam Abram, 2000, p221)
3 "De todo indivíduo que chegou ao estádio de ser uma unidade, com uma membrana limitadora e um exterior e um interior, pode-se dizer que existe uma realidade interna para este indivíduo, um mundo interno que pode ser rico ou pobre, estar em paz ou em guerra." (Winnicott, O brincar e realidade, p15)

4 A forçagem em jogo se repete também na gramática da língua, ao estabelecer para o verbo o objeto direto que faz o verbo "identificar" um verbo transitivo.
5 Bergès, J. e Balbo, G. Jogo de posições da mãe e da criança, ensaio sobre o transitivismo, Porto Alegre: CMC, 2002, pp.10-11