6Entre os sons e os sentidos: quando o simbólico faltaPsicoanálisis, Infancia y legalidad author indexsubject indexsearch form
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On-line ISBN 978-85-60944-08-8

An 6 Col. LEPSI IP/FE-USP 2006

 

Reflexões acerca do tratamento e escolarização de crianças psicóticas

 

 

Camille Apolinário Gavioli

E-mail: camillegavi@yahoo.com.br

 

 


RESUMO

Esse texto surge de inquietações vividas no tratamento de crianças psicóticas atendidas na Pré-escola Terapêutica Lugar de Vida, instituição situada no IPUSP, e tem como propósito precisar o lugar do analista nesse trabalho através da discussão teórico-clínica de algumas cenas da clínica.
Há muitos analistas que, ao trabalharem com crianças percebem a presença da dimensão educativa. Lajonquière fala que toda relação estabelecida entre um adulto e uma criança passa pela dimensão educativa. É preciso estar atento ao que isso quer dizer quando pensamos na especificidade da educação e da psicanálise com crianças, mais precisamente as psicóticas – que é o campo onde essas duas práticas parecem estar mais próximas – assim como, no trabalho do educador e do analista.
Indagar sobre a posição do analista é uma questão que diz respeito à ética da psicanálise, então é importante perguntar de que maneira tal posição se conjuga com a do educador. Qual o papel do analista no tratamento de crianças psicóticas? Sustentar essa indagação parece relevante quando se considera a complexidade que a psicose infantil implica, e que na prática faz surgir um mal entendido: analista e/ou educador? Se de um lado, está colocada a problemática em termos da ética dos profissionais, especialmente atualizada com a política de inclusão, de outro, está a criança que sofre e é nome dela que se justifica tal discussão.
O terreno dessa discussão é polêmico e árduo, mas fértil. A história revela os inúmeros encontros entre psicanálise e educação. Pois bem, discuti-los ainda hoje é pertinente já que as práticas de educação e tratamento são fruto de uma tradição, ao mesmo tempo, que por continuarem a existir na modernidade, tais impasses evidenciam um mal estar. E Freud no ensina que, diante do mal estar, a psicanálise não deve recuar.
Enfim, se é a experiência clínica que alimenta a teoria e, é do sujeito, do singular que a psicanálise se ocupa, parece que a discussão de caso pode ajudar não no imediato esclarecimento, mas na reflexão sobre a práxis. A teoria deve ser posta à prova pela clínica e por isso não deve ser lugar de conclusão, mas um lugar de descobertas.

Palavras-chave: Psicanálise; Educação; tratamento; psicose infantil.


 

 

Um pouco da história de uma criança

Matias tem 08 anos. É uma criança sorridente e falante. É filho único de uma família nordestina. Nasceu de parto normal no Maranhão após um aborto espontâneo da mãe e aos 04 anos de idade M desembarca em São Paulo com seus pais.

A família desse menino chega ao Lugar de Vida para a triagem em outubro de 2003. O encaminhamento foi feito por uma psicóloga da Unifesp, onde foi feita uma avaliação e foi levantada a hipótese diagnóstica de psicose. Lá foi atendido durante o primeiro semestre de 2003 enquanto aguardava vaga no Lugar de Vida. Também foi avaliado em 2002 na Apae, fez vários exames, incluindo um estudo genético e foi diagnosticado como deficiente mental. Lá é feito o acompanhamento neurológico e psiquiátrico até hoje. O pedido que a família faz ao Lugar de Vida é saber o que Matias tem.

A mãe supõe que houve algum problema no parto o que, segundo ela, justifica a problemática do filho. Entretanto, foram feitos exames e os resultados não apontaram qualquer problema. A mãe fala que o filho teve atraso no desenvolvimento, que ele não brincava com as outras crianças. O pai não concorda com o diagnóstico de deficiente mental, ele acha que o filho tem "problema de comunicação", que tem dificuldade para acompanhar, mas acrescenta que "os doutores é que sabem e, quem é ele para discordar". Essa fala revela a posição do pai, ele se retira do tratamento, não encontra um lugar nessa situação senão o de estar fora. O pai não dialoga com os "doutores". Ele vem à primeira entrevista e só reaparece 02 anos mais tarde.

A vida escolar de Matias conta um pouco da dinâmica dessa família. Aos 03 anos, Matias vai para a escola, de onde logo é retirado pela mãe. Embora Matias goste muito de lá, a mãe justifica sua atitude por não ser informada a respeito do andamento da escolarização de seu filho. Ele passa a freqüentar uma outra escola particular, que denota um baixo desempenho dele, um atraso e, se queixa que o menino não fazia tarefas. Isso chama a atenção dos pais no sentido de que alguma coisa está errada com o filho. Entretanto, nada foi feito quanto a isso até aquele momento. Em São Paulo, ele passa a estudar numa escola da prefeitura, mas, segundo o pai, Matias tem dificuldade de acompanhar, "não consegue falar coisa com coisa", ele fala muito e não tem assunto específico. Em 2004, ele é matriculado numa escola do tipo cooperativa próximo de sua casa. Em 2005, mais uma vez, ele muda para uma escola da prefeitura, mas nessa, ele pôde permanecer até o presente momento. Lá, freqüenta uma sala especial.

Na triagem no Lugar de Vida, a mãe fala que não sabe o que fazer com o menino e o pai diz que quem sabe são os doutores. Matias parece estar tentando fazer alguma coisa, mas está sem rumo, sem ponto de basta estável para poder organizar-se. Parece ser preciso oferecer a ele uma referência a partir da qual ele possa se organizar. Assim, a equipe aposta num atendimento individual, supondo que com o tratamento ele poderá contar com um lugar estável para construir um saber a respeito de como é viver nesse mundo com os seus recursos.

A mãe diz que se sente perdida, isso fica evidente desde a triagem. Ela leva o filho aos médicos ou especialistas, e circula com os relatórios desses profissionais. Como mãe, suas atitudes para com o filho denunciam que algo não vai bem. O que uma mãe deve fazer com um filho como o dela? O pai de Matias não apóia a esposa em suas idas e vindas com a criança para os médicos. A mãe diz que ele não acredita em qualquer tipo de tratamento. Dessa maneira, interessa questionar o lugar que essa mãe dá ao pai de Matias em seu discurso, à medida que é ela quem sustenta o tratamento durante um longo período. Do lado da escola, podemos pensar no efeito promovido pela apresentação dos relatórios de médicos e especialistas. A escola espera um menino deficiente que precisa de tratamento especial, tratamento desconhecido pelos educadores, que acabam se retirando de seu lugar. E ao Matias resta responder de que lugar? Ninguém sabe o que fazer com ele, não há referência estável, regras ou limites. Matias é um menino "desinquieto", descreve a mãe, move-se quase todo o tempo.

É curiosa, entretanto, a posição desse menino, que parece em alguma medida não responder ao lugar que lhe é oferecido. Algumas de suas atitudes fazem pensar que ele consegue em alguma medida confrontar o desejo da mãe. A mãe de Matias se põe a fazer as coisas pelo filho, no lugar dele. Entretanto, Matias nem sempre responde concordando com as demandas de sua mãe, em tentativas mesmo precárias, ele fala, expressando verbalmente suas vontades. A confusão entre o que é seu e o que vem do outro aparece com freqüência e fica evidente em sua fala.O que isso quer dizer? A relação que o sujeito tem com o campo da linguagem revela sua posição. A particular posição do psicótico com o que vem do campo do Outro, da linguagem, é de absoluta colagem ou absoluta recusa. Assim, há momentos em que fica evidente que ele habita a linguagem, fazendo um bom uso dela para se comunicar, há outros, em que ele é literalmente habitado por ela. Ele repete falas de comerciais e mostra com isso o modo como se relaciona com o Outro. Lacan (1955) nos fala da particular relação do psicótico com a linguagem:

"Como não ver na fenomenologia da psicose que tudo, do início até o fim, se deve a uma certa relação do sujeito com essa linguagem, de uma só vez promovida ao primeiro plano da cena, que fala sozinha, em voz alta, com seu ruído e seu furor, bem como com sua neutralidade? Se o neurótico habita a linguagem, o psicótico é habitado, possuído, pela linguagem" (p.284).

É difícil para Matias administrar essas falas, assim ele acaba repetindo-as sem censura em muitos momentos, o que se evidencia também em sua agitação motora. Lembro o comentário do pai, "ele fala muito, mas sem um assunto específico, não fala coisa com coisa", e é isso que se observa em vários momentos. Uma coisa desliza para outra, de uma fala para outra, de uma brincadeira para outra. A hipótese diagnóstica da equipe é de uma psicose. Nesse sentido, poderíamos pensar simplesmente a agitação motora e o tipo de fala como fenômenos que dizem respeito a uma psicose, mas há que se considerar que é esse o modo como Matias responde a oferta que vem do campo do Outro, ou seja, que há um jeito particular dessa criança lidar com essa oferta.

Colocar a cena dessa maneira faz com que o olhar se dirija para a criança que tem lá seus problemas e que com o tratamento poderá criar outras condições para viver, para circular pelo mundo. A direção então não é de confirmar a teoria, mas de colocar a clínica no lugar de questionadora da teoria. Essa é uma questão ética para a psicanálise. Tal tipo de abordagem parece simples e, até mesmo óbvia quando dita dessa maneira, mas requer grande esforço do analista no trabalho clínico. Questiono-me freqüentemente para pensar de que lugar falo depois de ter feito uma intervenção. Assim, ao considerar a questão motora e a da fala, cabe ao analista ao tomar a criança em tratamento estar atento para perceber quais são os recursos da criança e com quais ela ainda poderá contar para se organizar e lidar com aquilo que vem do Outro. A idéia é refletir de que maneira se olha para a clínica. Dunker (2006, p.122) fala que "... a clínica é uma experiência aberta e que, como tal, deveria estar em condições de criticar e fazer objeção à teoria de onde precede".

Nas entrevistas com os pais, a mãe descreve detalhadamente o que e como diz qualquer coisa a seu filho, reportando-se a todo momento às orientações que recebe dos especialistas. O pai comparece somente à primeira entrevista, enquanto Matias responde prontamente ao ser convocado. Seus pais falam de algumas coisas que o filho gosta, entre as quais, vale destacar o gosto pelos ônibus. A mãe conta que quando menina adorava passear de ônibus e o pai fala de seu sonho, desde a infância, em ser motorista de ônibus. Isso nunca foi dito ao Matias, ou seus pais se quer imaginaram que o gosto do filho pelos ônibus pudesse estar relacionado ao gosto deles, ou ao que acontecera em suas vidas, conforme eles mesmos relatam em entrevista. A mãe duvida que Matias entenda o que ela diz. Então quando Matias a desobedece, ela explica que não pode, desde uma posição totalmente destituída de autoridade. O pai não considera o filho doente, ele acha que o filho tem "problema de comunicação", portanto, o pai diz que "fala firme" com Matias, e que o filho fica chateado, mas passa. E acrescenta a respeito da fala da mãe, que "ela não sabe comunicar". O que a mãe transmite em sua fala? A dificuldade com os limites, para ela e para seu filho. Ela duvida que seu filho a compreenda e acaba fazendo as coisas por ele, mesmo quando o filho lhe pede para realizar alguma tarefa sozinho. As entrevistas com a mãe vão promovendo sua implicação na problemática do filho, porque servem a ela como um lugar para trabalhar e elaborar o não saber que ela referia. Atualmente, a mãe justifica suas atitudes com o filho dizendo o que pensa a respeito daquilo que lhe é dito sobre a criança. Não se trata mais de uma mera reprodução da fala do outro. Tomo uma expressão que ela usa e que revela uma mudança de posição. Ela diz: "Eu falo firme com ele, o que é certo é certo".

 

Sobre os atendimentos de Matias

Ele faz inúmeras brincadeiras, as quais fornecem um importante operador de leitura para pensar a posição dele na relação com o Outro. É interessante fazer uma articulação entre a teoria sobre as psicoses e o que se passa com essa criança, bem como é importante, discutir as intervenções e seus efeitos e pensar a direção de tratamento. Será um caso de psicose? Qual a relação que o psicótico tem com a linguagem? Em outras palavras, como é o Outro para o psicótico? O que é a função paterna nesses casos? Cito Dunker novamente, pois sua colocação me ajuda a sustentar a direção da minha escuta. O autor diz que, "... não se trata apenas de uma descrição da estrutura, mas de intervenção. A estrutura inclui o outro (analista) conforme a tese de que o analista faz parte do conceito de "inconsciente" (Dunker, p. 126)".

Já mencionei anteriormente o interesse de Matias pelos ônibus. A princípio, ele se entretinha com algum material dentro da sala, mas mal isso acontecia, bastava ele escutar o ronco do motor dos ônibus que era incontrolável o impulso de dirigir-se rapidamente à janela, para vê-los passar. Daí seu movimento era de ir da janela à outra atividade ininterruptamente. Diante de seu grande interesse pelos ônibus fui propondo brincadeiras em torno desse tema. Quando ele estava na janela, eu propunha brincadeiras como nomear os ônibus, nomear os terminais mencionados no pára-brisa, cores, números nos ônibus ou o número de ônibus que passavam diante de nós. A tentativa era de circunscrever uma atividade, de ir pondo alguma delimitação à desordem que ele revelava e que lhe impedia de sustentar sua escolha por alguma brincadeira. A resposta de Matias a esse tipo de intervenção foi muito interessante. Ele passa, muito lentamente, a ficar mais tempo na janela observando os ônibus. Esse tema permaneceu muito tempo no interesse de Matias, e a abordagem foi ficando cada vez mais elaborada. Ou seja, falávamos, desenhávamos, brincávamos com miniaturas de ônibus. Mais recentemente ele aprendeu a ler e, agora, ao ver os ônibus passando ele lê as palavras e números inscritos na carroceria. É possível dizer que o ônibus é um objeto investido, ele não lê qualquer coisa, escolhe o ônibus. Nesse sentido, poderíamos dizer que o ônibus é um significante que representa Matias.

Para falar em significante é preciso esclarecer que a representação, nesse caso, ou seja, numa psicose, guarda especificidades. Na neurose, falamos de sujeito como efeito da cadeia significante. Em outras palavras, de um significante que representa o sujeito para outro significante. Trata-se de uma operação que conta com o registro simbólico, então, fica clara a idéia de representação, pois é justamente pela incidência do simbólico que a substituição, a flexibilidade e o deslizamento na cadeia significante são possíveis. A retroação aparece e o equívoco se revela, justamente pela incidência da metáfora paterna. A representação na psicose, que por estrutura não conta com o simbólico - em outras palavras, com a incidência da metáfora paterna - se dá imaginariamente, sustentando-se em situações isoladas. Matias faz uma construção em relação aos ônibus, mas essa construção se limita a esse objeto. Quando muda o objeto, uma nova construção precisa ser feita. Aparece, portanto, o sujeito da psicose. Soler (1999) diz que essas crianças respondem como "puro significado do Outro". Ou seja, o ônibus tem um sentido único, não há dialética das palavras. O ônibus é um tema trazido por Matias, a partir daí é feita uma oferta pelo analista. Ou seja, o tema dos ônibus tem uma função de referência, é um eixo organizador, destacado por Matias entre tantos outros. Matias engata na oferta, e só isso lhe interessa. Ele, então, incrementa a proposta, a partir da proposta incrementada da analista. Poderíamos dizer que se trata de pura colagem àquilo que vem do Outro. Entretanto, Matias não cola em tudo que vem do Outro. Há uma certa seletividade quanto àquilo que vai colar, ou servir-lhe de referência, e isso revela uma marca, algo particular nessa e dessa criança que a distingue das outras e é também o que permite falar em sujeito da psicose.

As cenas diante do espelho também revelam um importante movimento desse menino e que servem para ilustrar as particularidades da imagem corporal quando se fala em psicose. Aparece uma imagem estruturada, mas bastante frágil. Assim, Matias recolhe referências imaginárias para organizar seu corpo e que, por serem imaginárias, têm o caráter pontual. Ele mostra-se organizado, mas também há momentos que o eu e o Outro aparecem muitas vezes como uma coisa só. Ao ver sua imagem refletida no espelho ele sorri, engraçando-se, em júbilo com o próprio corpo. Ele se reconhece e busca o olhar do Outro para reconhecê-lo e para diferenciar-se de mim no espelho. Ou seja, ele convida o outro a olhar para um objeto em comum, incluindo e buscando o reconhecimento do Outro. Ele nomeia sua língua, sua cabeça, levanta sua camisa e nomeia sua barriga. Antes ele se dizia quase sempre em nome da terceira pessoa: "olha a barriga do Matias", essa fala dirigida a um terceiro ainda aparece, mas está intercalada com uma fala como: "olha minha barriga". Mais tarde, ele me inclui na brincadeira, lugar onde ele encontra subsídios para organizar o ‘eu’, o que sua fala também evidencia. O pronome ‘eu’ vai aparecendo cada vez mais. Fica clara a exploração e a construção que esse menino faz. Ele fala da minha barriga ao ver minha imagem refletida e fala da sua barriga também refletida no espelho. Essa cena é um bom exemplo para ilustrar como se dá a construção da imagem corporal na psicose. É preciso um outro literalmente presente, que ora parece bastante distinto do eu, e ora revela a fragilidade dessa construção, momento em que claramente o psicótico e o outro formam uma coisa só, uma imagem só.

Nas brincadeiras o tema em jogo é a separação e a ordenação e o túnel é o brinquedo escolhido. Primeiro ele se esconde no túnel e eu o encontro, depois eu me escondo e depois outros objetos - como um ônibus de brinquedo -, também são escondidos e depois encontrados. Ele desenha um ônibus para mim e outro para ele, e ainda um outro para sua mãe. A organização que ele vai construindo é evidente em sua fala. Ele passa de uma grande indiferenciação das pessoas para um certo discernimento. Descrevo duas falas em momentos distintos do tratamento. Primeiro: "a Joice é a Camille, a Darlene é a Camille". Depois ele diz: "a Darlene tá na sala de espera, o Matias tá aqui, não a Darlene tá aqui, não a Darlene tá na sala de espera". São várias idas e vindas que ele revela ao falar, enquanto vai também elaborando os lugares dos personagens nas cenas. Uma outra cena clínica. Brincávamos com carimbos de animais e cada um tinha sua folha, e Matias estava muito atento a minha produção. Digo: "Esse é o cão", ele olha, e pergunto se ele quer saber como escreve. Ele responde: "Acho que quero". Então, escrevo "CÃO", ele copia a palavra sob a imagem de cão em sua folha. Em seguida, vira sua folha e carimba a figura do leão, embaixo ele escreve sem copiar ")AO", ou seja, a diferença é a letra "C" invertida. Na seqüência, eu carimbo o leão e escrevo como o leão fala, e ele carimba o cavalo e escreve como o cavalo fala, no caso é como o leão. Como analista, fico como testemunha de suas articulações e também na posição de garantir pela minha fala e presença um lugar de sustentação da construção ativamente imaginária, às voltas da qual esse menino está. A posição que ocupo se faz por minha presença real, o outro semelhante e, como Outro possível. Com isso a intervenção visa garantir ao Matias uma relação com o Outro de modo que ele não se desorganize.

Proponho a ele também que fale o que deseja fazer antes de simplesmente mudar de atividade. Isso porque ele se expressa bem e, me parecia que esse era um recurso do qual ele poderia usufruir e, principalmente, a aposta era de que isso teria um efeito organizador para ele. Ao falar fica clara nossa submissão ao Outro, mas também uma diferenciação, já que falamos uma coisa entre todas as outras. Ao falar, Matias, é confrontado com o Outro e aí precisa tomar uma decisão. Assim, o ato de falar é em si um ato de separar-se do Outro. Matias hesita ao falar, não se trata de uma gagueira. A hesitação dele evidencia o confronto diante do Outro. O que hesita em aparecer ai? O sujeito? O Outro? Além disso, à medida que ele diz o que irá fazer a seguir, ele promove um intervalo no deslizamento puramente motor de uma coisa para outra, o que também permite a possibilidade de interlocução com o outro. Ou seja, com essa intervenção eu lhe oferecia recursos, por representar o que vem do campo do Outro, para que ele pudesse assim lidar com o Outro desregrado que se lhe apresentava. O efeito da intervenção confirma minha hipótese de que essa intervenção era produtiva para ele. Cabe indagar nesse momento de que posição me dirigia a essa criança. Ou seja, se ao lhe propor um determinado modo de relacionar-se com as regras e leis do mundo, eu não estaria colocando-o no lugar de objeto? O psicótico sempre responde do lugar de objeto, pois isso é próprio da sua estrutura. A diferença que interessa apontar aqui é que a convocação que o outro lhe faz pode ser diferente, ou seja, a convocação pode ir na direção do sujeito. Pergunto: se o psicótico responde do lugar de objeto, porque é importante convoca-lo diferentemente desse lugar? Parece que só assim abre-se uma brecha para que haja alguma apropriação com uma marca, um traço, e algo da singularidade do sujeito da psicose possa surgir. Isso tudo é importante porque diz respeito à ética da psicanálise. Não se trata de conduzir o sujeito, isso seria da ordem do imperativo. O analista deve conduzir o caso, oferecendo referências a partir das quais o psicótico possa construir suas próprias referências e viver no mundo. De que maneira isso aparece nos atendimentos? Primeiro, eu falo com ele desde uma posição que toma a mesma regra para dirigir-me a ele, ou seja, eu também, literalmente, falo com ele antes de qualquer mudança. Esse passou a ser um combinado, primeiro falamos e depois fazemos. Segundo ponto, ao propor que falemos antes de agir, faço uma oferta e espero para ver como Matias responde a ela. Não se trata de uma regra que deve ser obedecida. Pergunto a ele: "vamos fazer um combinado quanto às nossas brincadeiras?". A resposta dele é: "vamos". Desde então o meu papel é garantir o combinado, toda vez que Matias não toma o combinado como referência - e isso acontece com freqüência -, eu repito o que combinamos, eu e ele. O efeito é que ele vai se apropriando disso. Matias passa de uma posição em que a minha fala é o que lhe organiza, para uma posição que ele mesmo repete oralmente o combinado. Já não preciso mais enuncia-lo. Parece que a apropriação do combinado lhe garante a possibilidade de organizar-se diante das regras que regem a relação com o outro, ou seja, com o Outro. Ele pode assim contar com recursos seus para lidar com o seu tempo e o tempo de cada coisa.

A fala de Matias demonstra sua particular posição na linguagem. Há momentos em que ele se dirige a mim, ou seja, eu sou seu interlocutor. Entretanto, há outros momentos, que ele fala com um outro dele mesmo. Em alguns desses momentos lhe pergunto: "Com quem você esta falando?" Ao que ele, às vezes, responde: "To falando com a Camille". Nesse caso, claramente eu não era seu interlocutor, eu era simplesmente mais uma das vozes que lhe falavam. Entretanto, outras tantas vezes, ele responde: "To falando com você". Aí sim, sou o seu interlocutor, é o que sua fala revela. Digo-lhe então: "Olhe para mim enquanto fala comigo". Essa mesma pergunta que faço a Matias, ele já a fez para mim. Questiono: qual o estatuto de sua pergunta? Mera repetição? Arrisco responder que não, já que diante de inúmeras falas minhas ele escolhe essa para dizer. Além disso, perguntar ao outro: "Com quem você esta falando?", não é uma pergunta qualquer, já que ele mostra que a voz do outro não é a única que lhe fala. Seria essa uma tentativa de diferenciar-se? Diria ainda que se trata de alguma apropriação que ele faz, e que marca alguma singularidade. Ou seja, trata-se do sujeito da psicose.

Cabe dizer que não se trata aqui do mesmo conceito de sujeito quando falamos na neurose, mas diz respeito a algum tipo de escolha que, por sua vez, guarda particularidades em termos lógicos. Não estamos no campo das neuroses. Que modo particular é esse que o psicótico tem de se relacionar com o Outro? É possível falar em psicose? Em sujeito da psicose?

Falar em sujeito nos casos de psicose é um pouco curioso, à medida que o sujeito é efeito do jogo significante e, que a ascenção à condição de sujeito é decorrente de uma operação lógica, que a criança psicótica não faz. Nesse sentido, a leitura de Soler é esclarecedora quando fala do autismo (para essa autora, o autismo se situa dentro do quadro das psicoses). Segundo a autora, tais "... crianças são sujeitos, mesmo que não falem, uma vez que são tomadas no significante pelo fato de se falar delas; no Outro há significantes que os representam" (1999, p.221). Essa é a primeira emergência de todo sujeito, qualquer que ele seja.

Isto posto, parece que se justifica o uso do termo sujeito. Parece que também isso ajuda a sustentar a hipótese diagnóstica de psicose no presente caso, o que por sua vez, permite falar em sujeito da psicose, dadas as especificidades em questão. Ou seja, a flexibilidade de sentido que o jogo significante possibilita, não aparece na fala desse menino. O sentido é único, é aquele que vem do Outro de modo absoluto. É uma fala que revela certezas, não há dúvidas, não há dialética. Na fala aparece uma junção, uma indiscriminação, e nas brincadeiras também. Assim, se eu brinco de carrinho, ele repete o que fiz inúmeras vezes. Numa brincadeira com música, ele procura repetir a mesma música que canto, ou meus gestos. Essa dinâmica também diz de sua posição na linguagem, ou seja, de uma colagem ao significante, o que remete a uma relação imaginária com o Outro.

Um dia brincávamos de pega-pega, onde um se colocava como monstro e daí pegava o outro. O tal monstro tinha um pano na cabeça. Enquanto o monstro era o Matias e eu a presa, pudemos brincar, mas aí proponho a inversão dos papéis e, ele topa. Quando escondo meu rosto, eu literalmente viro o monstro. Ele sai correndo da sala, e disparado dirigi-se à rua. Ao encontrá-lo, pergunto onde ele foi, e o que aconteceu. Ele numa expressão muito assustada, responde: "O monstro". Ou seja, eu era um monstro naquele momento, não foi possível brincar de ‘faz de conta’. Isso se explica pelo estatuto do significante com valor simbólico ou imaginário. Um neurótico por contar com o simbólico pode brincar de faz de conta e com a flexibilidade do significante monstro. Na psicose, a flexibilidade do significante devido à incidência do simbólico não acontece e fazer-se de monstro é tornar-se monstro, portanto, não há mais Camille, não é Camille vestida de monstro, é monstro. A brincadeira não é uma representação, é a realidade.

É pelo efeito da intervenção, pela resposta da criança que se pode efetuar o diagnóstico. Matias é uma criança que faz perguntas, e como ele lida com a resposta? A resposta cola na pergunta, é sempre num sentido imaginário. Suas perguntas não trazem a idéia de um enigma, elas remetem a um vazio, a um nada. Esse modo particular de tomar a fala do Outro indica que Matias constrói seu saber, como pequenas estórias a respeito do funcionamento do mundo. Ou seja, é uma resposta para cada pergunta, numa lógica do um a um e que, portanto, não comporta dúvida. Ele pergunta o que é isso ou aquilo ou o porquê de uma determinada coisa, e a resposta encerra a cadeia de associações. Não se trata de um por que se enganchando em um outro por que.

Em um dos atendimentos, estamos diante da janela e ele pergunta: "o que é que aquele ônibus ta fazendo ali?" Respondo: "acho que está parado esperando os passageiros embarcarem". Ele continua: "como ele chama?" Digo: "é o Parque D. Pedro". Assim, o ônibus que está parado, é o Parque D. Pedro, e está esperando as pessoas embarcarem. A resposta resolve aquela cena, e se um outro ônibus parar ali, será necessário uma outra resposta. O que parece específico no modo de se relacionar dessa criança com o Outro é que a questão inicial não remete a uma outra questão, ou cena, ou ainda, a um algo mais, a um por que.

Matias dá a impressão de um menino organizado, entretanto, fica claro que essa montagem é bastante frágil. Ela funciona bem para lidar com as situações que ele já conhece. Ou seja, ele vai arranjando a cada nova situação um jeito de lidar com ela. Na lógica do um a um, o que ele aprendeu num lugar não serve de suporte, tal como um guia a ser consultado, para lidar com qualquer outra coisa.

Do ponto de vista da demanda dirigida ao Outro, é preciso lembrar que para se falar em demanda é preciso falar da relação com o Outro e como isso se dá na psicose. Como é a demanda na psicose? É difícil responder a essa questão. O Outro do psicótico é absoluto, a ele nada falta. Na psicose falamos de uma indiferenciação entre o eu e o Outro, é uma coisa só. É um Outro invasivo, ao qual o psicótico não vê outra saída, senão a de responder como objeto. Isto posto, talvez um indicador para pensar a questão da demanda seja observar se o sujeito faz alguma diferenciação entre aqueles com quem convive, e a quem ele se dirige. Ou seja, diferenciar o outro, o semelhante, é de alguma maneira diferenciar-se do Outro. Nesse sentido, cabe observar se o sujeito se dirige ao outro demonstrando notar alguma diferença entre um e qualquer um. Matias aos poucos vai construindo seu lugar e assim um lugar para os outros. Assim, ele se da conta de uma diferença entre as pessoas com as quais convive. Ele vai montando estórias para cada personagem de sua vida. A princípio tudo parece muito bagunçado em sua fala, mas ele se organiza conforme vai construindo sentido ou significações para o que vive. Não me parece possível precisar o que vem antes, isto é, as falas, a construção, a organização. É um movimento que vai se complexificando. Ele começa a se interessar pelo tema dos gêneros, ou seja, diferenciar coisas de menino e menina, de homem e de mulher, de fêmea e macho. Numa brincadeira de cabeleireiro, ele é o próprio cabeleireiro, e eu a cliente. Pergunto a ele: "Qual o seu nome?" Ele responde: "Ano Paulo". Ele fala do cavalo e da cavala, que a Amanda fica chateada, e "eu fico chateado".

E os efeitos da escolarização? Na escola se educa, se ensina, Formam-se hábitos, uma rotina e, assim, forma-se um corpo. E Matias responde bem a essa convocação escolar, depois de algum tempo de tratamento. Atualmente, ele lê e escreve e pede para aprender a falar direito. Ele omite as letras "R" e "L" em algumas circunstâncias e ele percebe essa omissão. Sua professora nota que ele está escrevendo como fala e pede um acompanhamento fonoaudiológico. Ele é então encaminhado para uma avaliação, onde se conclui que é indicado o atendimento fonoaudiológico, que já teve início.

No início do tratamento Matias freqüentava uma escola que dizia que lá não era lugar para ele, que seu lugar era uma escola especial. Matias não podia contar com a organização que uma escola oferece e que ele tão claramente lhe faltava. Os educadores dessa escola diziam não saber o que fazer com ele e hesitavam em tomar com ele, as atitudes que tomavam com outros alunos. Fiz algumas conversas com a professora e o que constatei era um desinvestimento. A mudança para uma escola regular parecia indicada, à medida que a aposta era de que ele se beneficiaria do ordenamento que qualquer escola propõe se puder tomar uma criança como ele como aluno efetivamente. A indicação foi correta. A escola se põe a questionar em que sala Matias deveria estar, regular ou especial. A instituição escolar resolve pela sala especial, e a mãe concorda. Matias e sua mãe vão à mesma escola. Sua mãe consegue um trabalho voluntário lá, o que a deixa muito contente. Ela diz que lá aprende muitas coisas ocupando-se com os afazeres que lhe atribuem e, que seu filho não a vê, pois ela fica na secretaria ou na cozinha da cantina. Faço inúmeras entrevistas com a mãe para falarmos do assunto da escola. De quem é aquela escola? Dela? Do Matias? Por que ela resolveu ter um trabalho voluntário na mesma escola que o filho? A mãe pode falar da sua dificuldade em deixar seu filho "só", que no caso quer dizer sem ela. Também conta de sua vontade de voltar a estudar e a trabalhar e que não pode fazer isso porque tem que cuidar do filho. Atualmente, o trabalho da mãe é levar e buscar de ônibus crianças de sua vizinhança que estudam na mesma escola de Matias. Ela também voltou a estudar numa escola diferente da de seu filho. Matias estuda no período da manhã e freqüenta a ACM à tarde, para onde vai de perua. E a mãe está fazendo supletivo à noite.

Essa mudança de posição da mãe parece estar relacionada também a uma mudança de posição do pai, que após 02 anos do tratamento analítico do filho (final de 2005) reaparece. A partir de uma situação ocorrida em casa conclui, "meu filho, precisa de mim". Ele pede para vir conversar comigo e ele mesmo conta a cena que lhe fez mudar de idéia. A partir desse dia o pai se compromete mais com os cuidados do filho, especialmente na questão escolar. Em nossas conversas ele diz que vai à escola do Matias para resolver sua inserção no próximo ano letivo, sala especial ou 1ª série regular, que era a questão que se impunha naquele momento, dado o período do ano. A escola resolve manter Matias na sala especial, porque ele é muito inquieto não consegue sentar-se e com isso não pode cumprir com as tarefas exigidas numa 1ª série. A escola pede que seja feito um acompanhamento psiquiátrico e informa os pais que se o filho deles estiver menos agitado, ele talvez possa ser remanejado para uma sala regular. Os pais concordam com a decisão da escola. Para Matias o pai passa a ser uma referência imaginária e tem um efeito organizador.

Como analista, atenta às conquistas desse menino a partir da mudança de escola e pela ampliação e enriquecimento do repertório dele tanto em termos de vocabulário, como nos jogos e na relação com os outros, tendo a pensar que ele poderia se beneficiar bastante das propostas da sala regular. Convoco o Grupo Ponte para um acompanhamento da instituição escolar e as idas do profissional da equipe do Ponte à escola produzem efeitos interessantes, em termos dos efeitos da implicação da instituição na educação desse aluno. Sala de aula regular ou sala especial?

Os pais procuram um psiquiatra na Apae por indicação da neurologista que o acompanha na referida instituição. A escola também se posiciona a favor de um acompanhamento psiquiátrico e comunica os pais que se Matias conseguir ficar mais concentrado em sala de aula ele poderá freqüentar uma sala regular no futuro. O resultado obtido pelo uso da medicação prescrita pela psiquiatra é interessante. A agitação motora diminui bastante e ele passa a ficar mais tempo sentado durante a sessão e na sala de aula na escola. Aos olhos da escola ele deixa de ser o menino com DGD, e passa a ser uma criança hiperativa, diagnóstico que soa mais interessante a todos. Seu pai lhe coloca para fazer aulas de reforço com uma professora particular.

Os efeitos dessas intervenções são muito importantes. Esses novos olhares para ele lhe permitem colocar-se diante do Outro de um modo mais organizado e com mais recursos. Os pais mudam de posição, mãe e filho aprendem a lidar com o ‘grude’ de outra maneira. Ele aprende a ler e escrever, e é ele que conta à analista sua mudança de sala na escola, bem como dos coleguinhas de sala.

 

Momento de concluir

Para que serve o tratamento desse menino? Parece que o tratamento analítico serve para Matias como lugar para construir referências imaginárias o que organiza e promove conquistas, mesmo que frágeis. Matias faz suas construções, suas pequenas estórias a respeito de como o mundo funciona e de como ele pode lidar com as questões que aparecem a todo momento. É evidente o ganho em termos de organização na relação com o Outro. Ou seja, no modo como se dirige às pessoas para obter o que deseja, na escola, na sua produção escrita, em suas perguntas. Para a família, o tratamento serve como lugar para falar de suas dificuldades nos cuidados e educação do filho, para promover a implicação dos pais e ajuda-los a sustentar esse lugar.

 

Referências bibliográficas

- Dunker, C.I.L. (2006) Estruturas clínicas e constituição do sujeito In: Bernardino, L.M.F. (org) O que a psicanálise pode ensinar sobre a criança, o sujeito em constituição São Paulo: Escuta

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- Lacan, J. (1955) O Seminário. Livro III. As psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar

- Soler, C. (1999) Autismo e Paranóia In: Alberti, S. (org) Autismo e Esquizofrenia na clínica da esquize Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos