7Prevenção: saúde mental e psicanáliseEntre o tratar e o educar: o mesmo Sujeito? author indexsubject indexsearch form
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 ISBN 978-85-60944-12-5

An 7 Col. LEPSI IP/FE-USP 2009

 

7/11 - COLÓQUIO - MESAS REDONDAS
PREVENÇÃO: O HÁ DE VIR DO SUJEITO

 

Da representação plural do Outro na primeira infância e suas conseqüências

 

 

Leda Mariza Fischer Bernardino

USP

 

 


RESUMO

Na contemporaneidade o bebê muito precocemente entra em contato com o mundo social, tendo de lidar com um real fragmentado, com a proliferação de imagens e com a entrada num campo de significantes extra-familiares. Indaga-se os efeitos destes elementos no processo de constituição do sujeito, em curso nos bebês. Propõe-se o psicanalista e sua escuta como importantes no trabalho com os pais e equipes que se ocupam da primeira infância.

Palavras-chave: primeira infância, Outro, psicanálise.


 

 

Se até o século passado aos bebês e crianças pequenas era concedido um "tempo de quarentena", de proteção no meio familiar, até sua prontidão para a entrada na comunidade com suas leis e regras gerais; atualmente acompanhamos a convocação para a criança entrar no campo social ainda enquanto bebê. Não é mais um privilégio da família a educação inicial de seus rebentos.

Nosso objetivo é refletir sobre os possíveis efeitos destas contingências, que tomamos como um dos efeitos da mutação cultural em curso, tendo como fio condutor o processo de constituição do sujeito tal qual foi proposto por Lacan. Pretendemos interrogar as possibilidades do advir do sujeito contemporâneo, tendo em vista este cenário de tantas mudanças no campo Simbólico, este campo denominado por Lacan de Outro, conceito que inclui a função estrutural da linguagem, com a cultura e as leis que a regem.

Em seu artigo sobre Os complexos familiares na formação do indivíduo, Lacan (1938, 2003) especifica que "entre todos os grupos humanos, a família desempenha um papel primordial na transmissão da cultura" (p. 30), indicando que "a família prevalece na educação precoce, na repressão dos instintos e na aquisição da língua, legitimamente chamada materna" (p. 30). Por isso, ele atribui à família uma função ímpar: "ela rege os processos fundamentais do desenvolvimento psíquico"(p. 30).

A alta modernidade que hoje impera traz como suas principais características o questionamento da tradição; o declínio efetivo da função paterna; a mudança dos papéis sociais de homem e de mulher – o que, por sua vez, altera o exercício das funções paterna e materna. Assistimos ainda a um desenvolvimento tecnológico galopante, com as perturbações que são introduzidas pelas novas tecnologias. Basta lembrar que somente nos últimos 50 anos foram feitas 80% das descobertas científicas mais importantes, o que criou um impacto muito grande na vida humana. Além disso, o deslizamento a que assistimos do ponto de ancoragem da cultura - que passa da palavra para a imagem -, deixa a família em dificuldades para cumprir sua função de transmissora da cultura.

A família passa a dividir com as instituições para a primeira infância, com a internet e com a televisão, as várias representações do Outro na vida atual dos bebês e das crianças pequenas. O ambiente familiar, antes prevalentemente marcado pelas palavras, torna-se hoje cada vez mais um lugar de fabricação de imagens: celular, câmera digital... Os mais filmados e fotografados são as crianças, pequenos modelos sempre disponíveis.

Segundo Serge Tesseron (2008), o virtual no domínio familiar modifica a percepção que cada um tem de si mesmo em dois pontos:

1) Modifica a relação com o desconhecido e com as imagens. As crianças crescem tendo de lidar com dois tipos de imagens de si: a do espelho, que tem uma imagem invertida; e a imagem que descobrem nas fotos e nos filmes, que não é invertida, mas que tampouco é simétrica.

2) Modifica a relação com os outros nas famílias, hoje as pessoas encarregadas de avalizar as identidades dos filhos não são mais preferencialmente os pais, eles tomam muitas referências de seus colegas maiores e também da mídia e da internet.

Cada vez mais as instituições dirigidas à primeira infância são encarregadas de dividir com os pais e outros familiares as funções da educação no sentido amplo, de inscrição no campo Simbólico, tal como entendida por Kupfer ( 2000). Entretanto, em sua Nota sobre a criança (1983, 2003), Lacan apontava "a irredutibilidade de uma transmissão" a ser realizada pela família conjugal, que ele situava nos seguintes termos: "é de outra ordem que não a da vida segundo as satisfações das necessidades, mas é de uma constituição subjetiva, implicando a relação com um desejo que não seja anônimo" (p. 369) (grifo nosso).

Como o bebê enfrenta este desafio de lidar com um real fragmentado, com a proliferação de imagens e com a entrada num campo de significantes extra-familiares, pleno de outros anônimos, saindo-se bem deste processo, ou seja, advindo como sujeito?

Certamente, a representação de bebê que hoje temos é de um bebê cada vez mais competente. Entretanto, veremos que também para a psicologia do desenvolvimento e mesmo para os cognitivistas, estas competências necessitam do encontro com um campo de interações, no qual a formação dos laços iniciais com o adulto cuidador aparece como essencial.

Por exemplo, no entendimento do Colwyn Trevarthen (2003), "é a motivação para a cultura" que nos faz diferentes das outras espécies. "O bebê é capaz de encontrar-se psicologicamente com a mãe, muito precocemente, e reconhecer nela uma pessoa com motivos e sentimentos". As pesquisas sobre a "provocação" de que são capazes os bebês de apenas 2 dias demonstram "a prontidão humana para a alternância de estados de questionamento, ou asserção e apreensão, no diálogo face-a-face". Ora, todas estas descobertas colocam em cena um bebê ativo, já "falante" , desde que encontre um parceiro de interações.

Nesta retomada do valor das interações e das relações intersubjetivas, autores como Wallon (1963), que realçava o papel da afetividade na construção da vida mental, Ajuriaguerra (1973) com sua noção de diálogo tônico e Stern (2003) com seus conceitos de transmodalidade e acordo sensorial voltam a ser centrais. Para Wallon (1963) a atividade de repetição permite a elaboração de núcleos representativos, pontos de apoio para novas emoções que vão progressivamente se diversificar. Estas contribuições dizem respeito aos aspectos tônicos e emocionais (como o do equilíbrio sensório-tônico), ligam as dimensões biológicas, físicas, sociais e cognitivas, e são indispensáveis para compreender o bebê. Ajuriaguerra (1973) descreveu a interação entre o bebê e a pessoa que o carrega, concepção que encontramos em Winnicott (1980) – o holding e que é primordial. Em uma situação de acordo afetivo, o bebê tem a capacidade de reproduzir o estado emocional do adulto transmitido segundo um modo sensorial, transpondo-o em uma outra modalidade sensorial: é o que Stern (2003) chama de transmodalidade. Para este autor, a criança é muito sensível, não somente à afetividade, mas também em termos motores; o importante deste conceito é que é multimodal, ou seja, o adulto que interage vai utilizar um meio de comunicação que não é o mesmo recurso. Exemplo: esforço físico do bebê, expressão vocal do pai.

As idéias de Lacan, por sua vez, principalmente no Seminário XI (1964) permitem-nos encontrar uma ótica diferente para encarar estas competências dos bebês. Para ele, o que devemos pensar é que estamos diante de uma possibilidade, por parte do bebê, de relação intersubjetiva – o bebê aguarda encontrar no mundo externo outro com quem se relacionar – e não no plano da satisfação de necessidades físicas, mas no plano de suas necessidades simbólicas.

Ao referir-se ao surgimento do sujeito, Lacan (1964) propõe no Seminário XI que haveria por um lado o recalcado primordial, um significante que inaugura a entrada do sujeito no campo da linguagem enquanto tal; por outro, haveria a interpretação, a possibilidade única de acesso ao desejo, inapreensível enquanto tal. No intervalo entre os dois extremos estaria a sexualidade, a partir das pulsões parciais. Temos aqui um ponto chave: o papel central da entrada na sexualidade infantil, fundamental para a entrada no campo fálico enquanto tal, o campo das significações.

No mesmo Seminário XI, Lacan (1964) observa: "No mundo do Real Ich, do eu, do conhecimento, tudo pode existir como agora (...) sem que haja para isto, o que quer que pensemos, o mínimo sujeito" (p. 187). Trata-se de um aparelho biológico, o Sistema Nervoso Central. Pensamos que seria esta a definição do proto sujeito por ele proposta.

O bebê nasce com vocação para ser sujeito – é um proto sujeito -, mas vai ter de receber do Outro o significante e esta recepção só se efetivará se passar pelo corpo e neste receber do Outro a marca do desejo. O bebê disporia de algumas coordenadas imaginárias. Algumas pré-condições para a entrada no campo Simbólico estariam dadas ao nascimento. Neste sentido, a dimensão do encontro com o Outro seria fundamental para colocar em funcionamento um dispositivo já emergente.

Lacan conclui que o exercício da sexualidade, ou seja, do desejo, resulta desta conjunção entre o sujeito no campo da pulsão e o sujeito no campo do Outro. É da entrada nestes dois campos – do desejo e da linguagem – que depende o advir do sujeito.

Assim, podemos sistematizar:

- o bebê apresentado pelas pesquisas desenvolvimentais de base cognitivista é o bebê enquanto sujeito do conhecimento – há algo que ele sabe ao nascer e haveria uma predisposição para entrar no mundo da linguagem. Isto não pressupõe um sujeito no sentido lacaniano do termo – desejante e falante em nome próprio;

- o bebê da intersubjetividade não é um bebê já sujeito, capaz de reconhecer no outro também um sujeito. Trata-se de um ser dotado de potencialidades comunicacionais, à espera de desenvolvê-las no encontro com o Outro. Neste sentido, terá que encontrar neste que representa o Outro e que o introduz na estrutura a significação fálica que lhe permita dar sentido ao que vive e descobre;

- quais seriam as condições para este encontro? Tanto as competências do bebê quanto as competências do seu Outro. Não podemos mais restringir as falhas apenas aos outros parentais, pois o bebê é realmente um parceiro ativo da relação.

Todos estes conceitos aplicados aos bebês adquirem grande relevância na clínica e na formação dos profissionais que têm, por sua parte, o desafio de trabalhar com a primeira infância. Françoise Dolto foi pioneira neste campo, ao propor iniciativas em diferentes instituições, como as Casas Verdes, os Abrigos para bebês abandonados, além de inspirar trabalhos em Maternidades, UTIs Neonatais, Unidades de Acolhimento mãe-bebê. Ela propunha como tarefa essencial àquele que se proponha a trabalhar com bebês e crianças pequenas "oferecer um encontro válido para seu psiquismo, um encontro com um outro que respeite seu ser, que mostre um desejo diferente" (Dolto, 1999, p.18). Ela defendia um trabalho no qual a enunciação do profissional estava na primeira linha: "é isto que é importante na linguagem que usamos com o bebê, por menor que seja: é de sermos verdadeiros, qualquer que seja a verdade" (Dolto, 1999, p. 18).

Guedenay, Mintz e Dugravier (2007) propõem elementos que, segundo eles, "concorrem para o desenvolvimento precoce": a existência no bebê de capacidades inatas que lhe permitem compreender, apreender o mundo, formando categorias e, mais tarde, desenvolver a linguagem; o contexto relacional, as relações pais-filhos que permitem desenvolver estas capacidades precoces; e a curiosidade própria da criança e seu desejo de dominar as coisas. Para eles, " são estas 3 forças, agindo juntas ou de modo oposto, que concorrem para tornar o desenvolvimento tão potente e capaz de auto-correção". (p. 1,2) (grifo nosso).

Quais podem ser os entraves neste processo? Como detectá-los? Como tratá-los? É possível pensar em uma prevenção?

Pensamos que o psicanalista tem um importante papel tanto na detecção quanto na intervenção precoce, justamente por dar lugar ao sujeito em todas as suas expressões. Aonde quer que atue, promove lugares de fala, nos quais há possibilidade de circulação de palavras, os sujeitos são chamados a refletir e são escutados no que têm a dizer, isto é, são reconhecidos como seres discursivos, que têm um lugar simbólico próprio a ocupar.

Para Nezelof, Ropers e Duquet (2002), "A intervenção do especialista 'psi' pode assim se declinar em uma ampla gama entre dois pólos. Um, de continência dos profissionais. O outro, mais específico, junto a alguns pais ultrapassados, em razão de sua própria história, pelo fluxo regressivo e rememorativo doloroso engendrado pela chegada de uma criança, e que vai ser necessário ajudá-los a se separar destes conflitos (p. 25,26).

Neste contexto da primeira infância, além da sua atuação clínica em consultório, atendendo pais e bebês, podemos citar alguns espaços de inclusão possível da escuta psicanalítica para equipes interdisciplinares. Por exemplo, no trabalho em UTI Neonatal, com bebês prematuros. É essencial que a equipe disponha de um lugar para falar dos impasses de sua prática no limite da vida. O ambiente de urgência, a delicadeza dos procedimentos, a fragilidade da clientela podem produzir efeitos de desconhecimento da condição de sujeitos dos bebês, como forma de defesa destes profissionais, mas que podem ecoar na própria subjetividade deles, ao não considerarem os aspectos inconscientes em jogo, produzindo inúmeras situações de estresse. Da mesma forma, a escuta dos pais e dos bebês internados possibilita um trabalho de intermediação entre eles quando a constituição do laço de filiação se encontra em dificuldade

Outro ambiente no qual a promoção de uma circulação da palavra se faz necessária é nos centros de estimulação precoce, locais que desenvolvem o atendimento aos bebês que nasceram com, ou desenvolveram muito precocemente, problemas de desenvolvimento. Poder trabalhar com estes bebês, com seus pais, através de uma abordagem que considera o sujeito ali esperado e antecipado, requer uma possibilidade de discussão entre colegas, de investimento nas potencialidades da clientela, que pode ser decisiva para impedir um encaminhamento psicótico associado e pode implicar até mesmo a reversão de um quadro lesional.

Nas creches, a proposição de reuniões para a formação ou a sensibilização dos profissionais que cuidam dos bebês pode permitir um estilo de cuidar no qual o sujeito é considerado em sua singularidade, em seu ritmo, tendo o brincar como o eixo principal da Educação Infantil. Somente assim a creche poderá cumprir seu principal papel junto aos bebês: uma função de continência.

Em recente pesquisa realizada em um Centro de Educação Infantil (Bernardino et alli, 2008), através da aplicação do protocolo IRDI - que se propõe a avaliar riscos para o desenvolvimento em bebês até 18 meses -, os resultados mostraram como o trabalho das educadoras da creche pesquisada, quando comparado com as funções que devem ser desempenhadas para propiciar a constituição do psiquismo do bebê, nem sempre conseguem atingir este propósito. Na amostra pesquisada, o alto índice de respostas não verificadas ou ausentes no IRDI apontam para a quantidade de tempo que os bebês, neste ambiente de creche, ficam à mercê de uma espécie de "limbo subjetivo", à espera de um outro que realmente possa exercer o papel de Outro necessário à sua constituição. Estes dados apontam para o alto investimento que o profissional da educação deve fazer na execução do seu trabalho junto aos bebês, pois é convidado a se voltar para cada bebê como sujeito único, estabelecendo com ele uma relação qualitativamente suficiente para incidir em sua constituição subjetiva; trabalho, portanto, que lhe exige uma implicação de desejo e de investimento de energia psíquica. Neste sentido, uma formação sólida destes profissionais deveria incluir conhecimentos sobre a constituição do sujeito e discussões constantes de seu trabalho através da criação de lugares de escuta no ambiente escolar.

Quando o profissional da primeira infância – seja de qual serviço for - se envolve com o trabalho ao ponto de implicar seu desejo; quando compartilha com o bebê uma situação de brincadeira ou cria um momento lúdico em torno de um procedimento técnico; quando propõe e compartilha algo que se torne prazeroso para os dois, está totalmente presente como sujeito de sua prática. Nesse momento, ele passa para o âmbito do transdisciplinar: transpõe sua disciplina, referencia-se a outras áreas, renova-se enquanto profissional.

Para concluir, pode-se dizer que a principal contribuição da Psicanálise neste âmbito da primeira infância, como não poderia deixar de ser, vincula-se à promoção da palavra verdadeira e do desejo. Estes dois elementos se contrapõem ao anonimato das técnicas e dos treinamentos e apontam para a antecipação, a sustentação e a preservação do lugar de sujeito. Neste momento precoce, a subjetividade nada mais é do que uma suposição e depende absolutamente daqueles que representam o Outro da primeira infância. Eles podem, sim, ser plurais. Mas na interação com os bebês e crianças pequenas, devem sê-lo um a um, com sua presença singular e com a qualidade das suas palavras e desejo próprios.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AJURIAGUERRA, J. Manual de psiquiatria infantil. Barcelona: Toray-Masson, 1973.

DOLTO, F. Tudo é linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

GUEDENAY, A., MINTZ, A.S.; DUGRAVIER, R. Risques développementaux chez Le nourrisson de La naissance à 18 mois. Psychiatrie/Pédopsychiatrie. Paris: Elsevier Masson SAS, 2007, 37-195-A-20.

LACAN, J. (1938) Os complexos familiares na formação do indivíduo. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.

LACAN, J. ( 1964) Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.

LACAN, J. (1983) Nota sobre a criança. Outros escritos. Op. Cit.

NEZELOF, S., ROPERS, G., DUQUET, A. Soins psychiques em périnatalité. Qui demande quoi ? À qui ? Et pourquoi? Enfances Psy 30 – Lorsque l' enfant paraît . Paris: Harmattan, 2002

STERN, D. Le monde interpersonnel du nourrisson. Paris : PUF, 2003.

TESSERON, Serge.

TREVARTHEN, C, AITKEN, KJ. Intersubjectivité chez Le nourrisson: recherche, théorie et application clinique. Devenir 2003 : 15 : 309-428.

WALLON, H. Les origins de la pensée chez l'enfant. Paris : PUF, 1963.

WINNICOTT, D.W. A família e o desenvolvimento do indivíduo. Belo Horizonte: Interlivros, 1980.