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ISBN 978-85-60944-12-5 versão

An 7 Col. LEPSI IP/FE-USP 2009

 

7/11 - COLÓQUIO - MESAS REDONDAS
ENTRE O TRATAR E O EDUCAR: O MESMO SUJEITO?

 

Entre o tratar e o educar: o mesmo Sujeito?

 

 

Leny Magalhães Mrech

Professora Livre-Docente da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo; Coordenadora Geral do Núcleo de Pesquisa de Psicanálise e Educação da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo e do Instituto da Psicanálise Lacaniana

 

 


RESUMO

Qual é o sujeito da Educação? Será o mesmo da clínica psicanalítica? Para responder a essas questões, consideraremos os diferentes momentos na obra de Sigmund Freud e Jacques Lacan. Privilegiaremos, em especial, as discussões relativas aos três ensinos de Jacques Lacan, ou seja, a passagem do conceito de sujeito cindido ao falasser, demarcando as mudanças nos laços sociais, a partir das transformações na cultura. A linguagem será o grande eixo de articulação entre os dois autores e, por meio dessa, tentaremos responder o que caracteriza o tratar, o educar e o sujeito nos dias atuais.

Palavras-chave: Sujeito da Educação, Sujeito na Psicanálise e do Sujeito ao Falasser na Psicanálise e na Educação


 

 

Introdução

Em primeiro lugar, gostaria de agradecer ao Dr. Leandro de Lajonquière e à Comissão Organizadora, pelo convite para participar dessa mesa-redonda cujo tema é Entre o tratar e o educar: o mesmo sujeito? O mesmo que escolhi para apresentar e, para iniciar minha apresentação, gostaria de fazer uma pequena digressão a respeito do conceito de sujeito, já que esse aparece tanto em relação ao tratar, na Psicanálise, quanto em relação ao educar, na própria Educação.

 

O conceito de sujeito

O conceito de sujeito tem sido objeto de uma grande diversidade de epistemes, a saber: a linguística, a semiótica, a antropológica, a filosófica, a psicológica e, de maneira mais específica, no que interessa imediatamente ao nosso tema, em relação à educação. Em cada uma dessas disciplinas, um conceito de "sujeito" tem sido forjado e o aspecto mais importante em relação a esses conceitos é o fato de que esses sempre partem de determinados princípios axiomáticos constituídos graças a práticas e referenciais teóricos.

Albano, Levit & Naughton (2005, p. 45) destacam que o conceito de sujeito nas diferentes disciplinas costuma trazer um programa teórico e epistemológico. E, na grande maioria dos casos, o "sujeito" é apresentado como o "agente" de determinadas práticas.

Dessa forma, ao falarmos do sujeito em diferentes disciplinas,1 estamos nos referindo a um denominador comum que remete àquele que age e atua a partir dos pressupostos de um dado referencial teórico.

 

O sujeito do Educar

Tentarei delinear um conceito de sujeito em relação ao ato de educar e à educação. Privilegiei o conceito de educar porque, atualmente, ele aparece de forma mais ampla que os próprios contextos educativos formais, surgindo também nos contextos informais de educação, tais como em igrejas, clubes, cinemas etc.

Beillerot (1985) apontava essa mudança radical da sociedade ainda no fim da década de 1970 do século passado, em sua tese de doutorado. Naquela época, ele antevia o que se consolidou em nossos dias: vivemos em uma sociedade pedagógica, na qual a educação e o ato de educar se apresentam como educação continuada.

Como esse processo é amplo, preferi estabelecer um pequeno recorte e escolhi uma linha teórica – a foucaultiana, nesta pequena parte do trabalho – por considerar fundamental a crítica desse pensador em relação aos processos pedagógicos e ao próprio conceito de sujeito do ato de educar e da educação, a partir do conceito de discurso.

Segundo Bové (1990), Foucault não se preocupa em privilegiar o sentido e a significação, mas sim, a própria forma como as palavras se estruturam, compondo conjuntos de sentenças e práticas que funcionarão de determinada maneira.

Um aspecto destacado é que os discursos não funcionam de forma isenta e acabam estruturando os regimes de verdade, os quais aparecem também em cada uma das disciplinas e geram formas padronizadas que estruturam as ações dos seus participantes, sobretudo, em relação a pensamentos e ações dos sujeitos.

Partindo da perspectiva psicanalítica, denominei esse processo, em meu texto Psicanálise e Educação: Novos Operadores de Leitura (2003), estruturas de alienação no saber, ou seja, de estruturas alienantes, as quais surgem em consequência de um discurso prévio em cada profissão. Essas estruturas são compostas por elementos imaginários e simbólicos.

Outra forma de se conceber esses processos é a utilizada por Jorge Larrosa (1994), que as denomina formas inerciais. Essas levam o sujeito à tendência de agir de maneira determinada.

Segundo Larrosa (op. cit., p. 35), há duas formas inerciais fundamentais na disciplina educativa que se perpetuam continuamente: a primeira é relativa à "idéia de homem" e de um projeto de "realização humana"; e a segunda é o ocultamento da própria pedagogia como operação constitutiva, isto é, como produtora de pessoas. Essas formas inerciais impelem os sujeitos da educação a se alienarem em relação a seu próprio processo, a partir de práticas instituídas previamente. Trata-se de um processo também identificado por Dreyfus & Rabinow (1982, p. xxii), os quais afirmam que, na educação, ocorre uma "a ordenação crescente em todos os domínios, sob o disfarce de melhorar o bem-estar do indivíduo e da população." (Dreyfus & Rabinow, 1982, p. xxii).

Esse vínculo das práticas educativas em relação ao bem-estar do indivíduo e da população e o seu vínculo escamoteado com o poder foram sempre muito questionados por Foucault, para quem as identidades seriam efeitos daquilo que denomina poder (saber), como explica James Marshall (1994).

A partir desta introdução, tentarei agora delinear algumas das principais características do sujeito na educação e no ato de educar:

1) Trata-se de um sujeito universal, cujas características são comuns a todos os sujeitos e que partem da idéia de "homem" ou de "realização humana".

2) Esse é um sujeito fundamentado na ordem simbólica e nos pressupostos da cultura.

3) É um sujeito que segue uma determinada lógica simbólica, aquela pautada pelos regimes de verdade ou estruturas de alienação no saber.

4) É um sujeito que apresenta uma identidade vinculada a sua própria disciplina.

5) É um sujeito que atua enfatizando a verdade e a certeza.

6) É um sujeito que estrutura um conhecimento a respeito daquilo que faz.

7) É um sujeito que procura se desviar de todo o erro, tentando eliminá-lo ao máximo.

Dessa maneira, quando se pensa em educar, o sujeito da educação é visto geralmente como um sujeito com características universais, direcionado para a ordem da cultura, para o simbólico e apresenta uma lógica que segue os determinantes da cultura, os quais são pautados na construção do conhecimento e possuem com uma identidade determinada pelo próprio contexto da Educação.

 

O Sujeito para a Psicanálise

O sujeito para a Psicanálise se distingue das formas expostas acima, pois é um conceito que, ao longo da história da Psicanálise, sofreu grandes mudanças, sobretudo, a partir do último ensino de Lacan. Em linhas gerais, pode-se afirmar que esse conceito, para a Psicanálise, não designa um ser como uma entidade substancial, segundo Kupfer (2007, p. 124):

Para a psicanálise lacaniana, o sujeito não se confunde com o ego ou, se quiserem, com o eu. Não responde a lógica ou ao tempo da consciência, não se faz regular pelo princípio da realidade. Este sujeito não coincide com o sujeito do cogito da filosofia cartesiana, tampouco com o sujeito-organismo de Piaget. Para a Psicanálise, o sujeito do inconsciente se constitui na e pela linguagem. Desta perspectiva, a linguagem não é instrumento de comunicação, mas a trama mesma de que é feito o sujeito. [...] Se uma criança se desenvolve, o sujeito de constitui. Estamos falando aqui da construção de uma estruturação psíquica que não coincide com a do corpo entendido como organismo biológico.

A ênfase recai na linguagem e, nela, o sujeito é continuamente remetido à cadeia de significantes. O sujeito não designará um ser substancial, mas será postulado como aquele que representa um significante para outro significante. E, assim, o conceito de sujeito não pode ser entificado por meio de um ser ou de um ente: ele é o sujeito que emerge por meio do atravessamento da linguagem.

Lacan afirma, no Seminário XI, que o sujeito não tem um estatuto ôntico, mas sim, ético, ou seja, ele não tem um estatuto vinculado ao ser e ao ente, de modo que ele não é ser ou não-ser, pois se apresenta como um sujeito cindido, atravessado pelo Outro, se vendo sempre diante de uma hiância em relação aos processos de representação. Por esse motivo, Lacan insiste em que o sujeito é uma resultante, o resto do seu atravessamento pela linguagem.

Em suma, para a Psicanálise, o sujeito não pode ser representado em categorias existenciais, pois está vinculado à falta, pois é sempre em um vir-a-ser. E é por esse motivo que a linguagem não dá conta de dizer o sujeito, já que, por um lado, o sujeito é representado de alguma forma pela cadeia de significantes e, por outra, há uma afânise, um desaparecimento, em relação a essa própria cadeia de significantes, embora haja algo que escapa e que o significante – ou seja, a linguagem – não consegue apreender.

Apresento a seguir algumas das características desse sujeito em contraponto ao sujeito do educar, do sujeito da educação:

1) O sujeito para a Psicanálise é singular, se distinguindo em relação ao particular que remete sempre a uma ordem, a um todo.

2) A ordem simbólica se apresenta como falha ou como furo, ou seja, não se concebe a ordem simbólica como tendo a verdade do sujeito.

3) A lógica da Psicanálise é da ordem do não-todo e é uma lógica que nunca se fecha nela mesma, como nas demais disciplinas.

4) O sujeito apresenta processos de identificação que nunca se fecham neles mesmos como uma identidade específica. O sujeito está sempre em um estado de vir-a-ser.

5) O sujeito atua a partir da verdade, mas essa verdade não pode ser tida como total. Lacan ensina que a verdade é sempre uma meia-verdade.

6) O sujeito estrutura seu saber. E ele é uma construção do sujeito, e não, um conteúdo preparado previamente.

7) O sujeito lida com os seus erros, equívocos, mal entendidos, atos falhos etc. e esses revelam o inconsciente.

Então, percebemos que, do ponto de vista da Psicanálise, o sujeito da Educação e da Psicanálise apresentam uma diferença radical: enquanto a Educação tende a entificá-lo sob a forma de um eu – pessoa, indivíduo, espécie (o aluno, o aprendiz, o aprendente etc.) –, a Psicanálise vai na direção inversa, revelando que o sujeito é atravessado pela linguagem, que ele está entre significantes, que ele é um sujeito cindido.

 

Do Sujeito ao falasser

Ao longo dos últimos anos, nós nos baseamos nas afirmações mais clássicas de Lacan, contudo, a partir do contato com suas últimas obras, constatei a necessidade de dar um passo a mais, pois ele não parou no conceito de sujeito e acabou privilegiando em seus seminários finais o conceito de falasser. Esse foco é decorrência do processo contínuo de retomada de Lacan em relação à clínica psicanalítica e à própria Psicanálise. E, como a última etapa do ensino de Lacan é menos conhecida, eu me proponho a descrever de maneira mais descritiva, partindo do delineamento dos três ensinos em Lacan e, para tanto, utilizarei a periodização proposta por Jacques-Alain Miller (2003).

Alguns desses conceitos foram anteriormente referidos por mim, no livro O impacto da Psicanálise na Educação, no qual estabeleço uma primeira discussão a respeito desses três ensinos (Mrech, 2005, p. 146).

 

Os três ensinos e a Educação

O primeiro ensino encontra-se atrelado aos dez primeiros seminários de Lacan e é o momento mais freudiano de sua obra. O autor se apóia na autonomia do simbólico para estabelecer a estruturação do pensamento e o faz a partir da cultura e do Outro como representantes do circuito da linguagem. O Outro se apresenta vinculado às regras de parentesco, aos automatismos e às repetições linguageiras dos sujeitos que vivem em uma mesma cultura.

Nesse primeiro período, temos o conceito de sujeito clássico, tal como o apontamos anteriormente: um sujeito cindido, que sofre o impacto da ordem simbólica que o determina. Porém, aos poucos, Lacan vai aprofundando suas discussões relativas à ordem simbólica e à teoria de Lévi-Strauss. É o momento em que ele passa a refletir mais detidamente a respeito das mudanças relativas ao Outro, sobretudo, ao Outro social. Esse processo se inicia no Seminário XI – Os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise (Lacan, 1988) – e se estrutura de forma mais articulada no Seminário De um Outro ao outro.

Nesse estudo, Lacan (2006, p. 31) repensa mais criticamente a questão do Outro, o que o leva a fazer, provavelmente, uma série de reflexões mais críticas às afirmações de Foucault, ao assinalar que:

(...) o que o discurso visa é a causa do próprio discurso. Se alguém quiser explicar o discurso de outra maneira, como expressão ou como relação com um conteúdo para o qual se inventa a forma, fique à vontade. Mas observo então que é impensável, nessa situação, que vocês inscrevam nela, (...) seja a que título for a prática da Psicanálise. Entendam que, quanto à Psicanálise, a questão é saber se ela existe. É isso que está em jogo.

Essa afirmação significa que o conceito de discurso para Lacan não corresponde ao de Foucault, já que esse privilegia a forma e o conteúdo, enquanto aquele começa a desencarnar o significante.

[A psicanálise apresenta] uma coisa pela qual ela se afirma indiscutivelmente. É que ela é sintoma do momento temporal a que chegamos ao que chamarei, com uma palavra provisória, de civilização.

Não é brincadeira. Não estou falando de cultura. A civilização é algo mais vasto. Aliás, é apenas uma questão de convenção. A cultura, tentaremos situá-la no uso atual que se faz desse termo num certo nível, que chamaremos de comercial. (LACAN, 2006, p. 31)

Lacan constata a fluidez do significante e reconhece que a cultura tornou-se comercial. Ela não tem mais o mesmo status do conceito de cultura anterior, tal como no tempo de Freud. Desse modo, o conceito de discurso, que parecia tão claro em Foucault quanto aos seus efeitos ideológicos, recebe de Lacan (2006) um outro olhar, ao identificar que essa cultura comercial criou o mercado de saber (Lacan, 2006, p. 39-40), a partir do discurso da ciência, alterando drasticamente os contornos da própria cultura, para o estabelecimento desse novo mercado. A partir daí, Lacan não trabalha mais com a cultura comercial da mesma forma como o fazia anteriormente, pois ele não mais se propõe a ler o discurso a partir de significados e sentidos estabelecidos. O discurso passa a se apresentar de uma forma enigmática.

Todo discurso se apresenta como prenhe de consequências, só que obscuras. Nada do que dizemos, em princípio, deixa de implicá-las. No entanto, não sabemos quais são. (Lacan, 2006, p. 33)

Esse enfoque leva Lacan a se interessar, cada vez mais, por aquilo que se inscreve por meio do Outro e da linguagem e, segundo Miller (2000), Lacan faz uma passagem do Outro ao objeto a, aprofundando seu próprio conceito de inconsciente, o qual opera sob a forma de uma pulsação que abre e fecha, desde o Seminário XI – Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise – e, graças a essa mudança, ele propõe um dos seus axiomas fundamentais: o inconsciente estruturado como linguagem (Miller, 2003, p. 9).

Miller percebe que Lacan se volta ainda mais para o aprofundamento da experiência psicanalítica, na qual o inconsciente não aparece mais como o inconsciente da lei e da norma, mas sim, como aquele que funciona como uma suposição (Miller, 2003, p. 9).

Com isso, o objeto a surge como uma contrapartida ao Outro e representa o símbolo da falta. O Outro já não traz mais um universo simbólico que propiciará ao sujeito o acesso à verdade última como uma crença e um desejo que apareciam em Freud na Psicopatologia da vida cotidiana, buscando chegar ao sentido último, à última significação.

Lacan se dá conta de que o inconsciente apresenta uma contínua hiância diante da cultura (Lacan, 1988, p. 137) e, aos poucos, posteriormente ao Seminário XI, sua nova maneira de considerar o Outro se radicaliza e será o lugar da dimensão daquilo que é universal, enquanto ele reservará o que é da ordem do singular para o objeto a (2003, p. 9).

Para entender o que ocorreu, lembremos mais uma vez que Lacan não considera mais a cultura como portadora da verdade do sujeito: a cultura agora está vinculada ao mercado de saber, ao contexto comercial e pode enganar.

O último ensino de Lacan tem início com o Seminário XX – Mais, ainda – e Miller assinala que seu autor introduz aí mudanças radicais, passando a se orientar para aquilo que é próprio a cada um e que não se partilha e introduzindo, para se contrapor ao conceito de linguagem, a lalíngua, ou seja, o idioleto de cada sujeito.

A lalíngua está ligada às formas de gozo do sujeito e é introduzido esse conceito porque seu autor o identifica aos limites da linguagem, dando-se conta do quanto a linguagem encontra-se vinculada ao geral, de modo que a lalíngua se volta para o que é específico e singular a cada sujeito.

Lacan estabelece uma mudança radical em sua forma de conceituar a linguagem: ela não serve apenas para comunicar, mas também, para gozar, de modo que ele afirma, no Seminário XX – Mais, ainda – que a realidade é abordada com os aparelhos de gozo (Lacan, 1982, p. 76)

A partir desse marco, Lacan revê a articulação entre os três registros: o real, o imaginário e o simbólico, lembrando que, anteriormente, ele privilegiava o registro do simbólico, mas passa a destacar o nó borromeano, com os três registros enovelados.

Outra mudança importante é que o próprio conceito de estrutura deixa de ser considerado apenas a partir do simbólico para ser concebido a partir do real: "A estrutura deve ser tomada no sentido em que é mais real, em que é o próprio real." (Lacan, 2006, p. 30). E o registro do real diz respeito àquilo que escapa, que faz furo e possui várias formas de apresentação em Lacan: o real como o impossível, sem lei e que não cessa de não se inscrever. E é preciso assinalar aqui: trata-se de um furo, e não, de uma falta.

Lacan explica que a falta diz respeito ao simbólico, como um livro que tem o seu lugar na biblioteca e foi retirado de lá: seu lugar está lá, mesmo que ele não esteja; e o furo diz respeito a algo com o qual nós não conseguimos lidar e que é da ordem do real, que não pode ser capturado (Miller, 2003, p. 12).

A decorrência maior é que tudo isso modifica sua forma de conceber o Outro: ele não é mais visto como da ordem do Outro absoluto – aparece como um A barrado, no qual se evidencia um furo no real, e não, apenas uma falta no Outro. (Miller, 2003, p. 12).

 

O conceito de falasser

Essa digressão possibilitou chegarmos ao conceito de falasser e Lacan, em seus seminários finais, irá contrapô-lo ao conceito de sujeito. Esse sujeito encontra-se vinculado a uma vertente mais linguageira, fundamentada nos significantes vinculados aos sentidos e às significações, com um direcionamento maior para o simbólico. Ao longo de sua obra, como já nos referimos, Lacan passa a desconfiar desses encaminhamentos, levando-o a afirmar que a essência da teoria psicanalítica é um discurso sem palavras (2006, p. 11).

A sua radicalização maior ocorre no Seminário O sinthoma, no qual Lacan reduz o sujeito a uma suposição: "[...] Em análise, todo sujeito conta o seguinte: ele é sempre e nada mais do que uma suposição." (Lacan, 2007, p. 30), levando-o a propor o conceito de falasser em seu lugar – por falasser, ele entende o sujeito e o corpo. .

Lacan revela que "O falasser adora seu corpo, porque crê que o tem. Na realidade, ele não o tem, mas seu corpo é a única consistência, consistência mental, é claro, pois seu corpo sai fora a todo instante." (Lacan, 2007, p. 64)

Assim, onde antes havia um sujeito que deslizava entre as cadeias de significante, há agora um sujeito que sai de seu corpo a todo o instante. A única consistência possível para o falasser é da ordem do imaginário, instituída pela crença de que ele tem o corpo.

E Lacan apela para o corpo porque é ali que ele vai encontrar o sexual: é nesse corpo que ele, de maneira distinta daquela apresentada por Freud, lê o sexual: "É o sexual que mente lá dentro, ao ficar relatando demais." (Lacan, 2007, p. 64). Assim, onde Freud vê a verdade, Lacan vê a mentira e esse fato o leva a dizer que não há relação sexual, ou seja, não há possibilidade de inscrever a relação sexual no falasser.

Miller (2003b, p. 2008) destaca que essa passagem ocorre porque o conceito de sujeito se pautava pelo simbólico, excluindo o corpo.

A teoria do sujeito trata fundamentalmente dos efeitos do significante enquanto significação e tem uma referência essencial nos mecanismos de metáfora e metonímia, feitos justamente para evidenciar os distintos modos de produção da significação em função do significante. Estes mecanismos orientam a cifragem do texto da palavra, mas do texto como tal, separado de toda enunciação, "em corpo", se me permitem. Em troca, a teoria do ser falante trata dos efeitos do significante como afeto e não como significação, quer dizer, de seus efeitos no corpo. E, rapidamente, direi que este efeito maior é o que Lacan chamou de gozo, o qual necessita o suporte de um corpo. Por isso ele denomina substancia e, se quisermos nomeá-lo no grego de Aristóteles, por exemplo, ousia.

 

Considerações Finais

Como vimos, o sujeito no educar, na educação, aparece do ponto de vista do discurso graças às tessituras teóricas. Ele é distinto daquele encontrado na clínica psicanalítica que pressupõe um sujeito cindido, representado pelo significante, em certa medida e que, ao mesmo tempo, não dá conta de dizê-lo.

Quando nós passamos para o conceito de falasser, esse processo se radicaliza ainda mais e há um ser que é corpo – e se sabe que é um corpo porque sofre os efeitos da fala. No falasser há algo que o ultrapassa em relação à sexualidade e que não consegue ser dito nem exposto. O sexual, para Lacan, é da ordem do real.

No último ensino de Lacan, se evidencia que, diante do real e da sexualidade, o sujeito se defende, tal como Lacan o demonstra no Seminário O sinthoma.

Pode-se pensar em relação ao falasser diante do ato de educar e do tratar e essa é uma conceituação nova e pouco explorada até o presente.

Em seu último ensino, Lacan faz uma passagem do sintoma ao sinthoma. O primeiro lida com os sentidos e com as significações; o segundo, com o corpo, com a sexualidade e com o gozo – o corpo atravessado pelas modalidades de gozo.

Para terminar, assinalo que podemos nos referir de dois sujeitos: um para a Educação e outro para a Psicanálise. E, nesse caso, levanto esta hipótese: seria possível pensar, por meio do sinthoma, em um falasser para ambos os casos. Mas essa hipótese necessitaria ser trabalhada com bastante cuidado.

Sem mencionar, como destaca Lajonquière (2007), que nós nunca estamos diante de duas ou mais psicanálises. É sempre de apenas uma que se trata e que se desdobra em diferentes contextos:

Por que lembrar que falo a educadores? Para não esquecermos de que a Psicanálise é uma só, de que não há uma psicanálise para analistas, outra para educadores, outra para os quitandeiros e assim por diante.

Essa constatação se fundamenta nos três ensinos de Lacan, pois a Psicanálise surge sempre como aquela que se transforma o tempo todo, redefinindo-se e a seus praticantes. O difícil é estar à altura de tudo aquilo que ela continuamente nos apresenta.

 

Notas

1. Utilizamos o conceito de disciplinas, e não, de áreas do conhecimento a partir de duas vertentes: a primeira é a de Foucault, o qual utiliza "disciplina" e "bloco disciplinar" para se referir a um campo profissional, com o objetivo de desfamiliarizar o leitor e introduzir uma nova leitura das práticas cotidianas. E, nesse caso, é importante ressaltar que Foucault extrai esse conceito da própria psicanálise de orientação lacaniana. Destacando, o conceito é de ajutissement, que implica uma tentativa de capturar certos aspectos de poder e conhecimento que se encontram camuflados nas várias disciplinas (Marshall, 1994, p. 24). A segunda vertente é a da própria psicanálise de orientação lacaniana, pois, quando se refere à disciplina, geralmente, se privilegia o lado do enquadre (ajutissement, tradução livre) do sujeito a determinadas práticas profissionais. O conceito de disciplina tem sido muito utilizado nos laboratórios do Centro Interdisciplinar sobre a criança – o CIEN – no qual se trabalha dentro de uma perspectiva interdisciplinar.

 

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